2050: Brasil terá 30% da população acima dos 60 anos

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informam que em 2050 o Brasil terá 30% de sua população com idade acima dos 60 anos. O instituto contabiliza que, desde a década de 80, os brasileiros ganharam mais 12,4 anos de vida, graças a avanços como a diminuição das taxas de mortalidade, especialmente a infantil, controle da natalidade e melhoria da qualidade de vida. Além da mudança no perfil demográfico do país, a diminuição nos investimentos públicos no SUS e as iniciativas que visam o desmonte dos sistemas previdenciário e trabalhista trarão impacto direto na vida dessas pessoas e na forma de cuidar delas. O cenário pouco otimista vem se concretizando com a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 55, que limitou os gastos públicos por 20 anos (Radis 172), e a possibilidade concreta de aprovação das reformas na legislação trabalhista e na Previdência (Radis 173) — pautas prioritárias para a nova legislatura, que começou em janeiro.

Caso aprovada, a reforma previdenciária proposta pelo Governo irá manter o trabalhador por mais tempo no mercado, justamente na fase da vida em que ele está mais vulnerável aos problemas de saúde. “É um paradoxo que haja um crescimento vertiginoso da população idosa, e ao mesmo tempo, um corte de gastos que vai prejudicar muito essa população”, avalia o médico Luiz Alberto Catanoce, coordenador da Comissão Intersetorial de Atenção à Saúde nos Ciclos de Vida (Criança, Adolescente, Jovem, Adulto (a) e Idoso (a) do Conselho Nacional de Saúde (CIASCV/CNS). “Felizmente as pessoas estão vivendo mais — e o SUS é o grande responsável por isso. Mas essa conquista tem um custo, o que significa que podem aparecer mais demandas para a Saúde”, adverte o sociólogo Geraldo Adão Santos, coordenador adjunto da CIASCV/CNS.

Representante da Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas (Cobap), Geraldo considera que tanto a PEC quanto a reforma são medidas desumanas que irão prejudicar fortemente as pessoas idosas. “Um grande contingente da população vai necessitar de mais serviços e assistência. Como é que essas pessoas serão atendidas se o orçamento da Saúde não aumentar?”, questiona. O conselheiro lembra que haverá idosos que não terão renda, e muitos viverão com uma aposentadoria de apenas um salário mínimo.

Futuro incerto

Mesmo quem trabalha desde cedo vislumbra um futuro cercado de dificuldades, como o auxiliar de serviços gerais Júlio Sérgio Tavares, de 63 anos. “Eu fumo há 42 anos e isso comprometeu minha saúde. A médica quer me aposentar por invalidez. Como vou viver com o salário reduzido?”, pergunta. Em dezembro de 2016, quando conversou com a reportagem da Radis, ele fazia tratamento contra a dependência de tabaco no SUS no Rio de Janeiro e se mostrava preocupado. “Eu acho que vai ficar pior ainda depois da reforma da Previdência. Se nessa idade eu já estou ruim de saúde, imagina daqui a dez anos. Quando eu chegar lá, não terei mais condições de trabalhar”, previu. Júlio lamentava não saber quando poderá descansar do trabalho. “Não sei como vou viver”, desabafou, revelando também sua preocupação com o futuro da esposa e das duas netas, de 11 e 13 anos, que vivem sob sua responsabilidade.

Daniel Groisman, professor e pesquisador do Laboratório de Educação Profissional na Atenção à Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), considera que vai ser difícil garantir proteção social em um cenário de políticas de austeridade fiscal, corte de custos e engessamento dos investimentos. E enxerga dificuldades maiores para os mais velhos. “Eu acredito que os idosos serão muito impactados por políticas que não ampliam os recursos para o bem estar da população. A situação é dramática”, declarou à Radis, avaliando que não será possível garantir a dignidade das pessoas no fim da sua vida sem novos investimentos. Para o pesquisador, investir em seguridade social traz resultados amplos que beneficiam não só o idoso. “Precisamos de proteção e garantia de acesso a serviços em todas as fases da vida, especialmente naquelas em que as pessoas ficam mais vulneráveis”, disse. Segundo ele, diminuir o financiamento do SUS vai agravar ainda mais os problemas. “Se o sistema estiver mais fragilizado, as pessoas vão envelhecer com menos qualidade”, avalia.

A agenda de cortes ameaça as ações da Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI). “A implementação tem se dado de forma gradativa e apostamos no seu crescente. No entanto, precisamos destacar que a implementação da política no âmbito do SUS se dá de forma tripartite, portanto é fundamental a sensibilização para o tema e a inclusão do mesmo nos planos de saúde, integrando agendas estratégicas, a partir da pactuação entre os gestores das três esferas do SUS”, afirma Maria Cristina Hoffmann, coordenadora de Saúde da Pessoa Idosa do Ministério da Saúde. Para ela, a política pede uma mudança do modelo de atenção centrado na doença para o modelo centrado no cuidado. “O processo de envelhecimento da população brasileira nos apresenta uma mudança no perfil demográfico e epidemiológico. O não investimento em ações que considerem a heterogeneidade e as especificidades do processo de envelhecimento pode ser apontado como um dos principais fatores dificultadores na implementação da PNSPI”, diz ela.

A psicóloga Joana Finkelstein Veras, da Área Técnica da Saúde da Pessoa Idosa da Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul (SES-RS), vê com preocupação as consequências da implementação das medidas colocadas pela chamada “PEC dos gastos” e da maneira com que a reforma da previdência está sendo sugerida pelo Governo Federal. “Qualquer ameaça ao SUS ameaça a PNSPI, pois as pessoas idosas são em termos populacionais o segmento que proporcionalmente mais utiliza o sistema”, afirma. Ela lembra que, informações da Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE indicam que mais de 70% da população idosa brasileira conta somente com o SUS para ter suas necessidades de saúde atendidas. Joana ressalta a importância da PNSPI ao delimitar uma agenda SUS para a saúde das pessoas idosas.


(A dona de casa Maria da Guia da Silva (esquerda), com a irmã Josefa da Silva: saúde
afetada por uma vida distante do cuidado / Foto: Eduardo de Oliveira)

Lacunas e desafios

Instituída pela Portaria nº 1.395/99 e atualizada pela Portaria nº 2.528/2006, a PNSPI busca proporcionar não só um envelhecimento com qualidade como dar autonomia aos idosos. A política é apoiada por dois grandes eixos: a promoção do envelhecimento ativo e o enfrentamento da fragilidade. Segundo a geriatra Karla Giacomin, de Belo Horizonte, o primeiro eixo abrange todas as faixas etárias, pois interessa a todos envelhecer participando ativamente da vida e da sociedade. “Já o segundo reconhece que é preciso enfrentar as fragilidades da pessoa idosa, do sistema de saúde, da sociedade, das famílias e das outras políticas sociais”, explica. Em entrevista à Radis, ela diz que o documento é um marco na política de proteção ao idoso, mas é necessário que as leis existentes sejam materializadas “considerando o envelhecimento populacional em outra perspectiva mais realista e solidária” (ver na página 29).

Joana destaca que a portaria delineia o marco conceitual sobre o processo do envelhecimento, salientando a agenda com foco no envelhecimento saudável, a importância da estruturação das redes de saúde em todos os níveis de atenção e a necessidade de fortalecer da Atenção Básica, tornando-a resolutiva, tanto no que se refere ao atendimento oferecido, como aos encaminhamentos realizados para fora dela. Ela destaca, ainda, a importância de a PNSPI firmar o compromisso do SUS com o Sistema Único de Assistência Social (Suas) “Na prática, essa articulação é primordial para uma pessoa idosa que vive em uma Instituição de Longa Permanência para Idosos [ILPI], equipamento sob gestão do Suas, que necessita dos cuidados da Atenção Primária, ou seja, da unidade de saúde de referência territorial”, explica.

Angela Castilho, psicóloga do Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria, ligado à Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (CSEGSF/Ensp/Fiocruz), concorda que o documento é inovador. Ela ressalta que a PNSPI está organizada pelo princípio da integralidade e prevenção no cuidado à saúde para evitar que as pessoas adoeçam. “Chegar aos 65 anos com hipertensão ou diabetes pode ser considerado normal, comum, sobretudo porque não necessariamente o paciente fica acamado. Isso ocorre quando ele não recebe o tratamento adequado”, pondera. Aos 69 anos, Maria da Guia da Silva é exemplo de que como o envelhecimento pode ser afetado por uma vida distante do cuidado: seu histórico de adoecimento inclui cinco derrames, três enfartes e um aneurisma cerebral. Mesmo convivendo com crises convulsivas e dores constantes, a paraibana disse à Radis que nem sempre consegue atendimento na rede pública e hoje não tem acesso à parte das medicações de que necessita pelo SUS. “Minha qualidade de vida é péssima”, desabafou.

São justamente as doenças crônicas, como diabetes, problemas cardiovasculares, artrite, reumatismo e câncer, típicas dessa faixa etária, que mais atingem idosos como Maria da Guia. E, de acordo com Angela, a prevenção e a promoção da saúde são ações importantes para evitar suas consequências. “É fundamental que todos os profissionais de saúde, em todos os níveis de atenção, reconheçam que o idoso não é apenas um adulto de cabelos brancos, mas um usuário do sistema de saúde que tem especificidades e demandas próprias”, recomenda.

Maria Fernanda Lima-Costa, diretora do Núcleo de Estudos em Saúde Pública e Envelhecimento do Centro de Pesquisas René Rachou (Nespe/CPqRR/Fiocruz Minas), observa que a PNSI é um grande avanço por mudar o paradigma da atenção ao idoso, da abordagem baseada em doenças para aquela que prioriza a funcionalidade. Contudo, ela lembra que os idosos com limitação funcional realizam mais consultas médicas e são mais hospitalizados no sistema público e privado, o que vai gerar maior demanda de atendimento para esses serviços, com o envelhecimento da população. Para reverter essa tendência, ela recomenda que seja feito investimento na promoção do envelhecimento ativo e reabilitação precoce. “Uma restrição da PNSI é não estabelecer metas para redução da limitação funcional e seus determinantes, que permitam avaliações de efetividade”, reconhece. Outro problema apontado pela pesquisadora é que a política não estabelece medidas administrativas que facilitem a consulta deste idoso, tais como prioridade do atendimento e pré-agendamento e escolha do médico. “Esse é um aspecto importante porque a existência de um profissional de referência traz claros benefícios para o paciente como maior adesão ao tratamento, acompanhamento e gestão do cuidado, como por exemplo, para que ele evite combinações indevidas de medicamentos, observa.

Dilson José de Oliveira, coordenador Especial de Políticas para o Idoso da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais, reconhece que a PNSPI promoveu avanços, mas há ainda muito a caminhar. Ele aponta a escassez de estruturas de cuidado intermediário ao idoso no SUS, destinadas a promover intermediação segura entre a alta hospitalar e a ida para o domicílio; a escassez de equipes multiprofissionais e interdisciplinares com conhecimento em envelhecimento e saúde da pessoa idosa; e a implementação insuficiente das Redes de Assistência à Saúde do Idoso e o número insuficiente de serviços de cuidado domiciliar ao idoso frágil, medida prevista no Estatuto do Idoso, como desafios a serem vencidos. “Sendo a família, via de regra, a executora do cuidado ao idoso, é necessário estabelecer um suporte qualificado e constante aos responsáveis por esses cuidados, tendo a atenção básica por meio da Estratégia Saúde da Família um papel fundamental nesse cenário”, assegura.

Não faltam políticas, programas e ações específicos para a população idosa, mas não há uma destinação exclusiva de recursos para atendimento dessas pessoas, opina Ana Lucia da Silva, coordenadora geral do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI). Segundo ela, uma política voltada ao cuidado da pessoa idosa requer a aplicação de recursos e corresponsabilização dos poderes públicos municipais, estaduais e federal para a organização, a disponibilização e o custeio dos serviços de cuidado. Ela informou que tramita no Legislativo uma proposta para assegurar a destinação de recursos mínimos para o financiamento das ações e programas da Política Nacional do Idoso [Lei nº 8.842, de 4 de janeiro de 1994].

Luiz Alberto adverte que faltam recursos para que a PNSPI seja implementada. “Ela precisa entrar no orçamento geral da União urgente”, sentencia o médico. O financiamento na maior parte dos estados e municípios para implementar políticas dirigidas aos idosos também preocupa Rejane Laeta, coordenadora da Área Técnica de Saúde do Idoso da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro. “O idoso não é uma prioridade”, resume. Em sua visão, embora as propostas da PNSPI sejam boas, não há recursos para desenvolvê-las. “Quando falamos de ações, o gestor municipal sempre pergunta de onde virá o dinheiro”, observa. Rejane conta que estimula os gestores a desenvolverem ações a partir de políticas e programas já existentes, como o de pessoas com deficiência e a Academia da Saúde, por exemplo. Ela cita os resultados positivos da parceria firmada em 2016 com o projeto Saúde na Escola, quando estudantes do ensino fundamental foram incentivados a buscarem receitas de seus avós. “Em um único projeto foi possível abordar a importância da alimentação adequada, reforçar os laços afetivos entre gerações e valorizar o envelhecimento”, diz. As histórias serão reunidas e um livro será editado ainda em 2017.

Rejane destaca como positivo o fato de a política de proteção ser baseada em uma perspectiva integral e múltipla. “Há o idoso saudável, o frágil e o que está em processo de fragilização. A política consegue olhar para todos eles de forma bem específica”, avalia. Ela ressalva, no entanto, a pouca oferta de assistência para pessoas com quadros demenciais, que ocorrem com mais frequência em pessoas com mais idade. A geriatra Claudia Burlá, do Rio de Janeiro, ressalta a importância de uma rede de cuidado e proteção. “Essa doença tem curso prolongado e ameaça a continuidade de sua vida. Ela provoca múltiplas pequenas mortes e a pessoa não consegue recuperar a condição anterior. Por isso, necessita de uma rede de apoio bem estruturada. Um idoso nessa condição não sobrevive sem essa rede”, observa.

Rede de cuidados

Prevenção durante todo o ciclo de vida para que os idosos envelheçam com capacidade é o que recomenda a economista Ana Amélia Camarano. Pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ela entende que as ações de saúde envolvem cuidados de longa duração com idosos. “É preciso que as políticas fiquem atentas. Essa demanda [de cuidado] não está sendo atendida por meio de uma rede de serviços, que vai desde o cuidador domiciliar formal até instituições de apoio. O Brasil envelheceu antes de resolver as necessidades sociais básicas. Onde vai investir, é uma decisão política”, considera. A pesquisadora reforça que o Estado também deve cuidar, dando treinamento e capacitando cuidadores para a qualificação do serviço. “A família sozinha não dá conta cuidar de forma exclusiva. O cuidado com o idoso acontece 24 horas por dia, 365 dias por ano. E quem cuida precisa também de um ‘respiro’”, diz. Tempo foi o que faltou para Iolanda Ferreira Amaral, de 57 anos, que, durante três anos, cuidou da mãe, falecida em março de 2015. Moradora da comunidade de Manguinhos, no Rio de Janeiro, ela diz que carrega no corpo as consequências desse processo: “Eu tenho ansiedade, tendinite, bursite, essas coisas. Perdi peso e entrei em depressão”. Ainda em tratamento, dona Iolanda conta que faz exames regulares e toma medicação “Minha vida virou de cabeça para baixo. Só agora que estou me recuperando”, disse à Radis.

Para Geraldo Adão, essa perspectiva de cuidado ampliado está ameaçada pela Reforma da Previdência. Para ele, a medida promoverá retrocessos que impactarão diretamente a política de saúde do idoso. Uma das propostas da reforma é que o Benefício de Proteção Continuada (BPC), a que idosos e pessoas com deficiência de baixa renda têm direito, seja reajustado pela inflação e não mais pelo salário mínimo, como é hoje. De acordo com Geraldo, o benefício assistencial foi um dos grandes avanços da política e ajuda a preservar a saúde de pessoas desfavorecidas. “Essa foi mais uma conquista do Estatuto do Idoso que garantiu o benefício mesmo para quem não contribuiu para a Previdência Social. A inexistência do benefício vai afetar a saúde das pessoas. Sendo assim, como irão viver?”, pergunta.

Fonte: Radis