Equalização fiscal reduziria disparidades entre municípios

Especializado em federação brasileira, o economista Fernando Rezende (*), professor na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, da Fundação Getúlio Vargas (Ebape/FGV), explica nesta entrevista que o Brasil não fez o que em outras federações se mostrou fundamental: um regime de tributação federativo baseado no princípio da equalização fiscal, segundo o qual as transferências do governo federal para estados e municípios deveriam ter como objetivo principal ajustar a sua capacidade orçamentária ao tamanho e características socioeconômicas e demográficas de suas populações. Para ele, não é por acaso que há uma relação muito forte entre município e união e outra fraca entre municípios e estados.

 

Região e Redes – Quais os sinais contemporâneos de que há algo de errado com o nosso modelo de federalismo?

Fernando Rezende – Nós estamos atravessando uma fase que é consequência de alguns equívocos adotados no texto constitucional de 1988. Perdemos ali a oportunidade de rever alguns erros adotados no passado. Uma delas, a permanência de regimes diferenciados de tributação de mercadorias e serviços. Numa economia em que a produção de mercadorias representa uma parcela cada vez menor do Produto Interno Bruto (PIB), a base tributária dos estados encolhe de modo que se observa uma progressiva diminuição da participação dos estados no bolo tributário. Além disso, temos a guerra fiscal entre estados, fruto da ausência de uma política nacional de desenvolvimento regional. Os municípios também sofrem porque a arrecadação cresce mas se concentra em municípios de grande porte, onde estão os serviços de maior valor agregado, que geram mais arrecadação. Nós temos um quadro federativo bastante complicado de desequilíbrio entre estados e municípios em um cenário de recentralização da arrecadação no governo federal. O quadro é complexo e não temos mais espaço nem tempo para ficar discutindo questões pontuais. Precisamos recuperar a essência de um sistema tributário nacional.

 

RR – O que explica o esvaziamento dos estados e qual o impacto para políticas regionais?

FR – Houve uma centralização das normas que regulam a saúde, a educação e outras áreas. A gestão é descentralizada mas as normas são centralizadas. As políticas são definidas no âmbito do governo federal por meio do chamado Sistemas Nacionais de Políticas Públicas. Assim, cria-se uma situação de uniformidade num contexto de grande diversidade. No plano local encontram-se municípios com diferentes capacidades de mobilização de recursos para prestar serviços, porque todos são obrigados a vincular um percentual uniforme de seus orçamentos. Mas as disparidades orçamentárias entre municípios são enormes. Temos municípios com arrecadação maior e população menor e outros com orçamentos menores e maiores demandas por serviços de saúde. Não tratamos de corrigir isso. Não é por acaso que se tem dificuldade de articular a operação dos serviços no interior da rede e os estados não têm condição de administrar essa situação. Nós não fizemos no Brasil aquilo que em outras federações foi fundamental: um regime de tributação federativo, baseado no princípio da equalização fiscal. É um regime no qual as transferências do governo federal para estados e municípios deveriam ter como objetivo principal ajustar a sua capacidade orçamentária ao tamanho e características socioeconômicas e demográficas de suas populações para que se tenha em cada localidade uma capacidade mais equilibrada para atender as demandas da comunidade. Nesse contexto fica muito difícil conseguir algum tipo de acordo intrarregional que reúna estados e municípios para lidar com esse problema. Não é por acaso que há uma relação muito forte entre município e União e outra fraca entre municípios e estados.

 

RR – A postura centralizadora dos governos centrais seria uma manifestação da falta do que chamamos de Projeto Nacional de Desenvolvimento, que se sobrepusesse aos interesses políticos? O Estado brasileiro construiu este modelo de federalismo em virtude de formas de disputas políticas que ainda hoje vivemos e tão bem conhecemos?

FR – Esse fortalecimento do vínculo entre governo federal e município sempre ocorreu em regimes autoritários. É a primeira vez que ele ocorre na democracia. Para entender melhor é preciso uma discussão na Ciência Política. Mas alguns estudos mostram que há uma crescente influência das bases municipais na política nacional. Em grande parte por que os deputados e senadores concentram seus votos em bases microrregionais. Existe relação entre concentração eleitoral e um retorno na forma de os parlamentares defenderem mais os municípios que os estados. E, mais uma vez, existe uma disparidade na forma como os municípios se representam no plano nacional. Esses desequilíbrios não estão sendo discutidos.
RR – Falta um olhar mais estratégico sobre o Brasil que se deseja?

FR – É preciso pensar no Brasil que queremos daqui a 10 anos. Qual a estratégia do Estado brasileiro? É preciso um plano nacional de desenvolvimento que conecte essa preocupação com a redução das disparidades regionais e sociais com instrumentos financeiros e institucionais que viabilizem uma gestão eficiente dos serviços públicos. Hoje, todos reclamam que o serviço público é ineficiente e não entrega o que a população espera. Mas ninguém discute em profundidade o porquê de ser assim. Nos últimos 25 anos ficamos muito aprisionados numa discussão fiscal relacionada à questão macroeconômica. Agora está na hora de discutirmos o outro lado dos desequilíbrios fiscais, que é o desequilíbrio entre as prioridades. Quais as prioridades que o Estado brasileiro está atendendo e quais não está? E por que não está?

 

RR – Qual o impacto da Constituição de 1988 sobre a conformação do modelo de federalismo que temos hoje no Brasil?

FR – A Constituição não rediscutiu o nosso federalismo. Dois movimentos importantes ocorreram simultaneamente no debate da Constituinte. Do lado da federação houve apenas uma demanda de estados e municípios por fundos constitucionais e o aumento da competência do imposto estadual, que de ICM virou ICMS ao incorporar impostos sobre energia, telecomunicações e combustíveis. Do outro lado, corria todo o movimento que defendia a universalização dos direitos sociais. Isso levou à criação da Seguridade Social e a construção de contribuições específicas para financiá-la. Está na Constituição que a saúde deveria ficar com 30% desses recursos. Nunca ficou. Deveria ser regulamentada por lei complementar, mas nunca o fizeram. E a saúde só foi perdendo espaço à medida que as despesas com previdência e assistência só cresciam. Por isso, buscaram-se formas de socorrer a saúde: primeiro com a CPMF e mais recentemente com outras vinculações.

A consequência disso foi centralizar os recursos na área federal. Porque quando o governo foi forçado a fazer ajustes fiscais, desde 1998, quando entramos numa crise severa, a opção para fazer o ajuste foi aumentar as contribuições sociais. Por uma razão simples: se fosse aumentar impostos, a regra é que se tem de repartir quase metade para estados e municípios.

Ao mesmo tempo a relação entre estado e município foi sendo enfraquecida porque a base do ICMS não cresce, porque boa parte das receitas deste imposto está em áreas que estão sendo corroídas pela tecnologia. Essa receita cresce em valor nominal, mas não na mesma proporção do PIB. Isso fez a participação do municípios aumentar e a dos estados encolher.

 

RR – Qual seria o modelo adequado de federalismo para o Brasil atualmente?

FR – O regime de federalismo fiscal compatível com a maneira como os serviços são distribuídos na federação precisa combinar algumas coisas. Primeiro definir competências para tributar de forma a reduzir as disparidades. Quais as responsabilidades de cada ente da federação? Não se resolve tudo porque as bases tributárias estão concentradas em algumas regiões, alguns municípios e estados.

Outro componente deste modelo é um regime de transferência da União para os estado e municípios, que no nosso caso são os fundos constitucionais. Temos que definir qual é o percentual adequado para combinar competências e transferências para gerar o equilíbrio vertical.

A outra dimensão é o equilíbrio horizontal. Se tudo aquilo que é tributado se concentra em alguns estados e regiões é preciso discutir como as transferências serão repartidas. O critério básico para isso é a equalização fiscal, que é ajustar o local onde está o dinheiro ao local onde está o problema, fazendo com o que o critério de rateio das transferências busque essa equaliação. Nao fizemos isso no Brasil. Em 1989 criamos os fundos de transferências para estados e municípios, de lá para cá o Brasil mudou muito e os percentuais continuam os mesmos, com critérios de mais de 20 anos atrás.

Um quarto componente desse modelo é você ter instituições que promovam uma cooperação entre os entes da federação para garantir a qualidade na prestação dos serviços. Essa situação está longe de existir no Brasil.

 

RR – A relação direta entre governo federal e município consiste em uma espécie de trava para períodos mais duradouros de inclusão social e diminuição das desigualdades econômicas e sociais? Criou-se no bojo da Constituição um dispositivo que impede ou dificulta o cumprimento da própria carta constitucional?

FR – Eu não vejo dessa maneira. O problema é que o Brasil abandonou o planejamento e isso não foi culpa da Constituição. O Brasil deixou de fazer planos de médio e longo prazo. A maioria dos países faz pelo menos um planejamento fiscal e financeiro de 4 a 5 anos. E grande parte deles tem definidas quais são as suas políticas para a saúde, educação num horizonte de 10 anos. Qual é o problema que a gente quer resolver no prazo de 10 anos? Quais metas se quer alcançar? Como se gera as condições para que essas metas sejam atingidas?

Nós vivemos no Brasil, há mais de 20 anos, uma situação em que se administra o curto prazo. Esse é o problema. Com isso, não se garante estabilidade na implementação das políticas.

 

RR – Quais contribuições econômicas e sociais se pode esperar de um federalismo equilibrado e adequado às nossas necessidades como país?

FR – É possível reduzir as disparidades entre o que cada um tem de fazer e o quanto cada um precisa de recursos financeiros e institucionais para conseguir fazer direito. É preciso que o dinheiro esteja onde está o problema. Em alguns casos no Brasil encontramos situações em que o dinheiro está onde não está o problema, pelo menos nas mesmas dimensões.

Uma segunda contribuição é fazer com que instituições sejam capazes de fazer com que as jurisdições territoriais onde habitam populações possam cooperar. Por exemplo, permitir que o governo estadual organize a rede de prestação de serviços de saúde. Outra possibilidade é o governo federal utilizar alguns dos instrumentos de que dispõe para incentivar a cooperação. Se for dar financiamento para construção de hospitais e unidades de saúde, incluir uma condição que induza estados e municípios a cooperarem.

 

RR – O momento atual do Brasil, em que crises se retroalimentam, pode ser compreendido como sintoma de federalismo que também não serve mais?

FR – A crise atual conjuga vários elementos. Crises sempre ganham dimensões maiores quando as condições econômicas revertem.  Isso é histórico. Logo no após a Constituinte, o Brasil passou por uma crise difícil que na média provocou crescimento muito baixo. No início da década de 2000 também, com a crise da energia elétrica. Naquele mesmo momento foram assinados os contratos de renegociação das dívidas dos estados, outro fator que reforçou o controle das ações dos governos estaduais.

Na segunda metade da década de 2000 a economia ganhou um bônus do boom asiático, do boom das commodities e teve essa fase de crescimento que contribuiu para centralizar mais os recursos, porque os recursos municipais e estaduais não tiveram o mesmo desempenho dos federais. Então, essas coisas são elementos de um mesmo problema. Por isso que insisto: não adianta ficar querendo remendar o que está muito ruim. Precisa colocar em debate uma grande reforma, com “R” maiúsculo.

 

RR – Nesse momento de crise, é possível discutir alternativas ou uma concertação em torno de um novo modelo? Quais caminhos precisamos trilhar?

FR – Acho que é uma oportunidade de colocarmos no debate, mas políticamente vivemos um momento muito conturbado. Os antagonismos estão muito fortes para se conduzir uma discussão racional sobre o que precisa ser feito para que essa grande reforma surja. É preciso aguardar um pouco mais. Sou otimista de natureza. Quem sabe conseguimos caminhar nessa discussão para que o Brasil possa comemorar os 200 anos da independência em uma situação bastante diferente.

Precisamos pensar e refletir e ver se conseguimos, conjuntamente, colher uma leitura adequada do diagnóstico. Precisamos de uma convergência sobre o diagnóstico. Qual o grau de convergência que existe sobre as questões que afetam a nossa federação? Quais os problemas específicos das políticas prioritárias para a população? As soluções não virão só do volume de recursos, mas também da eficiência da gestão. Se houver esse entendimento, pode-se construir a proposta da reforma que precisa ser feita no nosso federalismo fiscal.

 

(*) Em maio, Rezende publicou o livro “Conflitos Federativos: Esperanças e Frustrações – em Busca de Novos Caminhos para a Solução”, no qual discute soluções para um problema que vem desde o período colonial: o conflito entre os que defendem o reforço do poder central e os que propõem maior descentralização.

 

Fonte: Região e Redes