Fronteiras tecnológicas não são neutras

“O Estado é a instância mais importante na determinação das fronteiras tecnológicas”, defende Marina Honorio de Souza Szapiro, professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Uma das autoras do estudo “Fronteiras Tecnológicas Subordinadas a Estratégias Nacionais de Desenvolvimento: as Experiências dos Estados Unidos da América, da China, do Japão e da Alemanha”, produzido pela RedeSist, do Instituto de Economia da UFRJ, com apoio do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), Marina palestrou sobre o tema no seminário “Iniciativas em Prospecção Estratégica Governamental no Brasil”, promovido pela rede Brasil Saúde Amanhã, no dia 27 de julho, na Fiocruz. Nesta entrevista, ela desfaz o senso comum sobre a neutralidade do progresso tecnológico: “Não há como copiar política tecnológica”, destaca.

A senhora defende que as fronteiras sobre as quais avança o progresso tecnológico não são neutras. Como isso deve interferir nas estratégias nacionais de desenvolvimento?

Em nosso estudo, analisamos como Estados Unidos, China, Japão e Alemanha definem, no âmbito das estratégias nacionais de desenvolvimento, suas fronteiras tecnológicas. Concluímos que, diferentemente do que o senso comum avalia, quando países desenvolvidos estabelecem suas políticas de tecnologia e inovação, a escolha das grandes áreas que mais receberão recursos não acontece com base em benchmarks internacionais, a partir de uma pretensa neutralidade da inovação tecnológica. Essa estratégia está baseada nas especificidades internas e nas capacitações acumuladas, do ponto de vista da indústria e da tecnologia.

A abordagem de sistema nacional de inovação utilizada no trabalho se baseia na ideia de que cada país tem determinadas especificidades históricas, culturais, institucionais que resultam em sistemas únicos. Cada país tem uma estrutura produtiva, um arcabouço institucional, uma série de outras características que são únicas àquela economia nacional e que determinam dinâmicas de interação entre agentes econômicos e sociais diferentes. Ou seja, não há como copiar política tecnológica. É possível, sim, olhar para exemplos e perceber quais dinâmicas são virtuosas, do ponto de vista internacional, mas a capacidade de desenvolvimento tecnológico e as fronteiras que cada país estabelece estão muito ligadas ao histórico local, à especificidade do sistema de inovação e às capacitações acumuladas.

Como essa dinâmica acontece, na prática, nos países analisados e quais as lições do estudo para o Brasil?

No caso dos Estados Unidos, por meio da análise do orçamento federal destinado às atividades de Pesquisa e Desenvolvimento, observa-se que a maior parte dos recursos alocados está direcionada para as áreas de Defesa e Saúde. Percebemos também, a partir das políticas e dos discursos dos gestores do governo federal norte-americano, a retomada da relevância da área da manufatura avançada, que perdeu capacidade ao longo dos últimos anos, uma vez que a produção e a montagem de equipamentos foram deslocadas para outros territórios mais competitivos em relação a custos com mão de obra (principalmente para os países asiáticos). O mais importante é que as estratégias são mantidas independentemente se o governo é democrata ou republicano, pois são estratégias de Estado e não de governo.

Já na China, torna-se ainda mais evidente a importância da definição das fronteiras estar alinhada às necessidades internas do país. Lá, existe uma grande preocupação em relacionar os esforços tecnológicos e o plano de desenvolvimento às especificidades locais. A área das telecomunicações é uma das referências neste quesito. A China desenvolveu tecnologia de telefonia móvel de modo a torná-la mais adequada às necessidades internas de uma população com forte presença rural e outras características específicas daquele país. Empresas, universidades, instituições de pesquisa, com forte apoio governamental, do ponto de vista dos recursos, foram mobilizadas para desenvolver tecnologias específicas para o país e, a partir do acúmulo de capacitações tecnológicas e industriais, as empresas (Huawei e ZTE) passaram a ser capazes de competir nos principais segmentos de telecomunicações. Hoje, seus players estão entre os maiores do mundo e competem com multinacionais. Na China, o aspecto da não neutralidade é muito evidente.

Qual a importância dos estudos prospectivos de futuro e como eles podem contribuir para a criação de uma cultura de planejamento de política pública na área da tecnologia?

Considerando que não há neutralidade no Desenvolvimento Tecnológico, é muito importante que se avalie e que se pense a estratégia nacional, sabendo onde se quer chegar e como. As especificidades de nosso sistema de saúde, de nosso desenvolvimento tecnológico e das necessidades da população devem ser consideradas no momento em que as políticas públicas são avaliadas, para que elas possam eventualmente ser aprimoradas. Os principais resultados de políticas tecnológicas e de inovação só podem ser alcançados no longo prazo, nunca no curto prazo. Por isso, a importância do Estado realizar planejamento estratégico em um horizonte de longo prazo.

Essa dinâmica torna projetos como o Brasil Saúde Amanhã ainda mais relevantes. Por meio dessas iniciativas é possível evidenciar que há espaço para a prospecção estratégica do futuro e mostrar a importância de se manter e melhorar as políticas públicas. O processo de desenvolvimento tecnológico demanda muito tempo para construir, mas é destruído rapidamente. À medida que se diminui instrumentos e recursos, que se altera a sinalização do Estado e que agentes econômicos e atores políticos e sociais são desmobilizados, todos os avanços que foram promovidos são, de alguma maneira, perdidos. É uma grande lástima. Em última instância, isso significa recurso público jogado fora.

Diante dessa perspectiva, como a senhora avalia os avanços tecnológicos na Saúde, no Brasil?

A dinâmica de longo prazo fica muito explícita na área da Saúde. Nos últimos 12 anos, de 2003 a 2015, houve um renascimento das políticas industrial, tecnológica e de inovação no Brasil e o setor foi o mais virtuoso. Isso foi possível porque o Estado conseguiu articular instrumentos de diversas naturezas: não só de financiamento às atividades de Pesquisa e Desenvolvimento, mas também articulando a política de compra com instrumentos regulatórios. Priorizou, ainda, as necessidades internas do Sistema Único de Saúde (SUS) e da população – e não necessariamente aquelas que são vistas como a ponta da tecnologia. Isso não significa estar à parte do que acontece no mundo. Um exemplo é o desenvolvimento de biofármacos: essas inovações devem ser consideradas, mas precisam estar inseridas na análise sobre como tais avanços científicos podem contribuir para o desenvolvimento nacional.

A avaliação dos últimos 12 anos é a de que se avançou muito nesse sentido: não ocorreu um desenvolvimento tecnológico baseado apenas em avanços sobre as fronteiras mundiais. O Brasil foi capaz de aproveitar os avanços tecnológicos globais para desenvolver as tecnologias que são prioridade para o país. O setor farmacêutico, em especial, esteve no centro das políticas industriais desde 2003. Essa continuidade do foco no setor durante um período significativo, que está ligada a alguma capacidade de planejamento, não é observada na maior parte dos outros setores, embora seja fundamental por estar ligada a uma estratégia de desenvolvimento nacional mais ampla. A Saúde é a principal área que demonstra essa coerência. Alguns indicadores apontam que essa capacidade de planejamento e de priorização das necessidades internas geram resultados extremamente positivos. É fundamental que as conquistas realizadas neste período sejam fortalecidas e expandidas em médio e longo prazo.

Quais as tendências e desafios para os avanços tecnológicos na Saúde, no Brasil, no horizonte dos próximos 20 anos?

Em relação ao setor, o mais importante seria dar continuidade ao que já vem sendo feito, como as estratégias direcionadas para o desenvolvimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS). É preciso que isso continue sendo prioridade do Estado, independentemente de governos ou partidos. Em outras palavras: as demandas do SUS e a minimização do déficit comercial no setor devem estar no horizonte de planejamento do Estado. A Saúde é uma área que avançou muito nesse sentido e, se a política não for radicalmente transformada, ainda podemos conquistar muito mais.

É importante deixar claro que a política de inovação e tecnologia é estratégica para o desenvolvimento nacional e, por isso, não deve ser de governo, mas de Estado. O Estado é a instância mais importante na determinação das fronteiras tecnológicas, processo que precisa acontecer de forma coerente e acordada com diversos atores – públicos e privados. Mas, por ser a instituição capaz de mobilizar mais instrumentos e recursos, tão demandados para o desenvolvimento de tecnologias mais avançadas, é o Estado que deve liderar a definição das fronteiras tecnológicas e mobilizar os instrumentos necessários. Somente o Estado é capaz de prover investimentos dessa magnitude e, ao mesmo tempo, ter uma visão de longo prazo para implementar os instrumentos necessários à estratégia nacional de desenvolvimento.

 Equipe Brasil Saúde Amanhã, 22/08/2016