Impactos do mal-estar social sobre a Saúde

“O que acontecerá às novas gerações? O que lhes acontecerá, se mantidos os padrões atuais de iniquidade, privação, asfixia dos direitos sociais e políticos, violência, guerras, concentração extrema da riqueza?”. A reflexão é proposta pelo pesquisador Pedro Gabriel Delgado, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nesta entrevista, ele explora a zona de fronteira entre o mal-estar contemporâneo e os transtornos mentais e aponta a Atenção Psicossocial como alternativa à medicalização. “Temos que defender o SUS e o retorno da democracia. Não vislumbro um cenário de atenção a 11 milhões de pessoas, como aponta a OMS para o Brasil em relação à depressão, sem um sistema de saúde público, universal, intersetorial, que desenvolva políticas ativas de garantia do acesso”, defende.

Transtornos mentais, dentre eles a depressão, vêm chamando a atenção da Saúde Pública em todo o mundo. Como este quadro é influenciado pelo atual modelo de sociedade, marcado por profundas desigualdades econômicas, sociais e culturais?

Acompanhando a ênfase expressa pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é preciso realçar que ocorre, sim, um crescimento regular da prevalência e gravidade de diversas formas de sofrimento mental, como a depressão, os transtornos ansiosos, o uso prejudicial de substâncias psicoativas. Não à toa o tema pautou o último Dia Mundial da Saúde, 7 de abril, com a campanha “Depressão: vamos conversar”. Precisamos mesmo conversar sobre a depressão. E faz parte desta conversa considerar o enorme impacto que a desigualdade social e o mal-estar da vida contemporânea produzem sobre a epidemiologia dos transtornos mentais. Há exemplos claros na história recente de nossa sociedade: alguns anos após o início da crise econômica de 2008, o índice de suicídio entre homens de 30 a 35 anos aumentou de forma alarmante na Grécia. Como não associar este fato à desesperança causada pela inútil busca de emprego por anos a fio?

Há um sólido consenso estabelecido nos estudos de Psiquiatria e Saúde Mental em relação à expressiva participação dos determinantes sociais da saúde na prevalência e evolução dos transtornos mentais. Nesse sentido, é importante fazer distinções, explorando a zona de fronteira entre o mal-estar contemporâneo e os transtornos mentais. Não se trata de medicalizar o mal-estar, mas de olhar para os impactos sobre a vida psíquica, reais e muitas vezes devastadores, de fenômenos globais como a violência, as migrações pelo desamparo econômico, o desemprego em massa, as formas de dissolução do pacto democrático, o terrorismo. Em muitas regiões, inclusive no Brasil, o mundo está vivendo muito próximo do caos e da anomia. Quais as consequências imediatas para a vida psíquica e, a longo prazo, para a epidemiologia psiquiátrica? A pergunta central das pesquisas sobre determinação social do processo saúde-doença é: o que acontecerá às novas gerações? O que lhes acontecerá, se mantidos os padrões atuais de iniquidade, privação, asfixia dos direitos sociais e políticos, violência, guerras, concentração extrema da riqueza? Essa pergunta não poderá ser respondida apenas pelo campo da Saúde Mental.

Com o envelhecimento da população brasileira, a tendência é que se multipliquem e se agravem os casos de depressão entre idosos. Diante deste quadro, que políticas e ações são necessárias, no presente?

As mudanças demográficas são parte de uma transição mais ampla pela qual passa a sociedade brasileira. Este processo inclui travessias como o deslocamento rural-urbano; a transformação do modo de produção agrário-exportador para o sistema industrializado; a reorganização da família em outros formatos, que não o patriarcal; o feminismo; as novas configurações no mundo do trabalho. Também devemos reconhecer a curva ascendente da esperança de vida ao nascer, que se junta a outros indicadores, como a redução da mortalidade infantil. Por outro lado, este contexto de profundas mudanças apresenta novos desafios epidemiológicos. Tudo isso deve ser encarado como positivo e natural.

A população idosa é vulnerável a diversas enfermidades, dentre elas quadros de demência e depressão. E, embora a depressão nesta faixa etária seja subdimensionada e negligenciada, ao mesmo tempo ocorre, paradoxalmente, a supermedicalização. Este é um dos grandes problemas na atenção à saúde do idoso, que demanda intensificação da prevenção quaternária. Há que se considerar todas as dimensões que afetam o bem-estar dos idosos: convívio social, atividade laboral, condição econômica, habitação, estrutura familiar, acesso a cultura a lazer. Este elenco de componentes desenha uma agenda de prevenção e promoção da saúde que é essencial e possível de ser executada. O problema central é: que estado de bem-estar, mesmo residual, nos reservará a recente apropriação neoliberal do Estado brasileiro? Não há como fugir desta indagação. A Reforma da Previdência que está sendo proposta sinaliza claramente que não haverá espaço, no regime político que se instalou, para políticas de bem-estar da população idosa.

O Brasil e o SUS estão preparados para este cenário?

Não, não estão preparados. Não apenas o SUS está impossibilitado de atender com universalidade, equidade e integralidade os cidadãos brasileiros, mas todas as demais políticas sociais estão enfraquecidas: assistência social, cultura, educação, habitação, proteção do emprego. Isso é grave, pois o cuidado em Saúde Mental – que chamamos de Atenção Psicossocial e implica tratamento, prevenção e promoção – é essencialmente intersetorial.

Em alguns anos, os transtornos mentais, em especial os quadros de depressão, assumirão o topo da escala da carga global de doenças. Diante deste cenário, a prioridade dos países deve ser ampliar o acesso ao tratamento, hoje dificultado por inúmeras barreiras. Uma delas é a escassez de serviços de saúde públicos e efetivos. Nos quadros mais graves de depressão, o acesso ao tratamento adequado, que inclui a farmacoterapia, é o maior desafio. A crítica à medicalização não pode ser simplista e desconhecer a lacuna do acesso ao tratamento, que precisa ser superada. Pacientes que devem ser tratados pela farmacoterapia devem ter acesso a este recurso. É dever do Estado garanti-lo. Outra questão importante é como assegurar atendimento aos chamados “transtornos mentais comuns”, como as depressões leves e moderadas. O caminho é conhecido: qualificação da Atenção Básica, trabalho colaborativo entre serviços de Saúde Mental e Saúde da Família, ações intersetoriais intensas, criativas e sensíveis à cultura local.

Que outros problemas relativos à Saúde Mental o sistema de saúde enfrentará nas próximas décadas?

Um tema que exigirá aprofundamento, nas próximas décadas, é o dos agravos decorrentes do consumo de substâncias psicoativas. O crescimento do consumo prejudicial de álcool no Brasil é alarmante e mostra mudanças de padrão graves: uso abusivo na juventude, feminização também muito precoce, aumento da frequência do uso diário. A cerveja é o produto mais consumido e mais associado ao uso problemático de álcool, conceito que relaciona o hábito beber excessivamente a situações de risco para violência e doenças físicas. O que fazer? A política pública conhecida como Lei Seca mostrou-se efetiva para reduzir morbidade e mortalidade por acidentes de trânsito. Estudos internacionais (não há estudos brasileiros sobre o tema) mostram a eficácia de ações de promoção e prevenção, como o controle da propaganda, a regulação do preço e a limitação de locais de venda e consumo. Não são medidas proibicionistas, mas de vigilância sanitária nos limites dos direitos do cidadão. No entanto, no Brasil há milhões de pontos de venda de cerveja sem regulação. Os obstáculos são óbvios: a indústria da cerveja e a indústria da propaganda da cerveja.

Não menos complexo é o desafio da violência, que produz impactos psicossociais muito graves. O Brasil é um país extremamente violento, o que é expresso por indicadores dramáticos como a mortalidade de jovens negros. Medida indispensável é a mudança do estatuto jurídico das drogas, descriminalizando sua posse e uso. O comércio ilegal, a repressão violenta, as disputas entre grupos armados e a corrupção policial constituem as causas do fenômeno da violência armada nos territórios vulneráveis. Do mesmo modo, está em nosso cotidiano, em todas as regiões e classes sociais, a violência doméstica, contra a mulher, a criança, os idosos. Não é um desafio específico da Saúde Mental, mas implica também a Atenção Psicossocial. É uma questão que nosso país terá que responder, não com o Estado policial e justiceiro, mas construindo um projeto de paz em uma sociedade justa.

Quais os caminhos viáveis para a Saúde Mental no horizonte dos próximos 20 anos?

Os desafios são inúmeros e têm magnitude imponderável, de muito difícil estimativa para o futuro. E, caso não ocorram profundas mudanças nos determinantes sociais da saúde, certamente serão ainda mais graves que hoje. O primeiro deles é pensar quais serão os principais problemas clínicos da Saúde Mental nos próximos 20 anos. Há, aqui, uma controvérsia relacionada à ampliação do alcance dos diagnósticos psiquiátricos, abarcando situações da vida cotidiana que não podem ser reduzidas a uma descrição patológica. Essa tendência vem se acentuando nos últimos anos, chancelando um reducionismo medicalizante e psicologizante que coloca sob o guarda-chuva da “medicina mental” diversas formas de mal-estar produzidas pela crise da vida contemporânea. O luto pela perda de entes queridos, as reações a situações de estresse, o medo alarmante diante de desempenho social, algumas características especiais do desenvolvimento de crianças e várias outras questões passam a ser rotuladas como “doença mental”.

Tudo isso é agravado pela disseminação, pela grande mídia, do modelo explicativo do mal-estar patologizado, que demanda uma cura farmacológica e produz, sob a aparência da mais-valia do diagnóstico científico, um discurso vazio de crítica. Um discurso consumista, indutor de estigma, impreciso, que gera reações também imprecisas, criando uma nuvem de fumaça que é preciso dissipar. O poder da indústria farmacêutica e da cultura do Pharmaceutical Self – título de importante livro da antropóloga Janis Jenkins – precisa ser vigorosamente combatido, pois influencia a formação dos profissionais de saúde, a definição de prioridades de pesquisa, a visão de gestores de saúde e a demanda dos usuários do SUS.

Se o projeto neoliberal prevalecer, os próximos 20 anos serão de estagnação da rede pública e do SUS, com sua substituição por sucedâneos oriundos da mercadorização vertiginosa da saúde, como planos de saúde ineficazes. Planos privados de saúde lidam muito mal com as demandas da Saúde Mental: oferecem um modelo de escassas consultas ao ano, internações sem monitoramento da qualidade, zero de atenção psicossocial, zero de intersetorialidade. Temos que defender o SUS e o retorno da democracia. Não vislumbro um cenário de atenção a 11 milhões de pessoas, como aponta a OMS para o Brasil em relação à depressão, sem um sistema de saúde público, universal, intersetorial, que desenvolva políticas ativas de garantia do acesso.

Bel Levy
Saúde Amanhã
02/05/2017