No horizonte, a produção nacional de medicamentos

“Os estudos prospectivos de futuro são fundamentais para que possamos perceber as lacunas que representam oportunidades e necessidades de investimento na produção de medicamentos”. A afirmação é da sanitarista Vera Lúcia Pepe, pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Nesta entrevista, a colaboradora da rede Brasil Saúde Amanhã ressalta a importância da abordagem de longo prazo na definição de prioridades para o setor produtivo nacional. “Uma vez identificada a lista de produtos prioritários para o Sistema Único de Saúde (SUS), o passo seguinte é definir como essas carências serão superadas. E isso pode ocorrer por meio de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), do desenvolvimento de outras apresentações farmacêuticas para fórmulas que já são produzidas, mas não alcançam a totalidade da população, ou ainda pela produção de genéricos, caso as patentes estejam em vias de expirar”, defende.

Quais as perspectivas e os desafios de longo prazo para a política industrial brasileira, considerando as necessidades futuras de saúde da população?

 À medida que a saúde foi alçada a direito fundamental, o Estado passou a ter a obrigação, expressa pela Constituição Federal, de garantir o acesso aos serviços e aos bens de saúde. Tornou-se responsável, também, por definir os produtos que chegam à população, por regular esta oferta e garantir a sua qualidade. No entanto, a grandiosidade do território brasileiro, a diversidade de nossa população e de suas condições de saúde apresentam cenários desafiadores. Ao mesmo tempo em que as doenças crônicas e cardiovasculares, que recebem mais atenção internacional, preocupam as autoridades sanitárias, as enfermidades infecciosas e as negligenciadas ainda afetam drasticamente a população. Não à toa o Brasil está entre os dez países que mais consomem medicamentos no mundo.

Essa dinâmica, que tende a se intensificar com o envelhecimento da população mundial, deixa claro o descompasso entre o desenvolvimento internacional de medicamentos e as nossas demandas. Diante desse panorama, é fundamental que a produção nacional de medicamentos esteja alinhada às necessidades de saúde da população brasileira. E, para isso, é preciso desenvolver uma política industrial sustentável. Essa visão estratégica deve orientar não apenas a geração de novos medicamentos e inovações, mas sobretudo a resposta que os laboratórios públicos podem vir a dar com a produção de medicamentos já existentes no mercado há longa data e de produção não tão complexa.

Qual o cenário atual das PDPs no Brasil e quais as tendências para as próximas décadas?

Os estudos que Tatiana Aragão e eu temos feito apontam que 82 propostas de PDPs feitas desde 2008 e consideradas estratégicas para o SUS foram extintas. Dentre essas parcerias que não se concretizaram estão justamente aquelas direcionadas para as doenças negligenciadas. O cenário atual é o de PDPs de medicamentos de alta inovação e custo elevado. Algumas delas trazem consigo alguns riscos em termos de evidências de eficácia e de segurança. Um exemplo são os novos produtos para o tratamento da doença de Alzheimer. Hoje, a literatura científica internacional mostra que não há evidências de vantagem terapêutica desses medicamentos em relação a um tratamento voltado para o acolhimento do paciente em um ambiente propício. Pelo contrário, os usuários estão suscetíveis a eventos adversos relativamente graves.

A definição e concretização de PDPs estratégicas é importante, especialmente quando outras opções de oferta não podem ser realizadas. Mas, sob o ponto de vista da saúde coletiva, é preciso pensar o que os laboratórios públicos podem fazer, nas próximas décadas, para além delas. O perfil de produção dessas parcerias pode ser complementado por outras iniciativas, para que sejam contemplados, por exemplo,  medicamentos que não são novidade – os que já sabemos produzir, mas têm lacunas em relação à apresentação farmacêutica voltada para determinados grupos sociais.

Como a política industrial brasileira pode fortalecer o SUS de modo a garantir que, em 2036, tenhamos de fato medicamentos para todos?

 As PDPs têm como característica a busca por uma nova expertise, seja em relação à substância ativa ou ao medicamento em si. O SUS, entretanto, tem também outras demandas. Há, por exemplo, o desabastecimento crônico de penicilina benzatina para sífilis congênita – um medicamento que não é desconhecido nem inovador, mas extremamente necessário. Diversos medicamentos já produzidos no Brasil ainda não contam com uma apresentação adequada para determinados segmentos da população, como crianças e idosos. Esses casos dependem de uma integração entre a política de produção nacional e a de assistência farmacêutica. Trata-se de uma resposta mais ampla para as necessidades sanitárias, que as PDPs sozinhas não são capazes de dar.

Experiências internacionais levantam a discussão das patentes e do preço dos medicamentos, já que não há sistema de saúde no mundo que seja sustentável, considerando-se o valor cobrado por esses produtos hoje. Nesse sentido, é fundamental ampliar a discussão para toda a sociedade a respeito do uso dos recursos públicos na produção, aquisição, distribuição e incorporação dos medicamentos. É preciso entender qual o arranjo necessário para garantir a sustentabilidade da política industrial e do sistema de saúde, sem deixar de oferecer respostas às necessidades sanitárias de nosso país.

 Como o Brasil realiza a seleção de produtos estratégicos para a Saúde e quais os impactos de longo prazo desta dinâmica para o setor produtivo nacional?

A legislação brasileira define alguns critérios para seleção de medicamentos a serem produzidos por meio de PDPs: a importância do produto para a política e os programas do SUS; os produtos que podem ser adquiridos centralmente pelo Ministério da Saúde; os princípios ativos inovadores; o alto valor de aquisição para o SUS; a tendência da importação; a incorporação tecnológica recente no SUS; o fato de ser um produto negligenciado ou com potencial risco de desabastecimento; entre outros. Estes dois últimos critérios são adicionais. Em nossos estudos, à luz dos parâmetros usados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela indústria, destacamos a importância de torná-los principais e não alternativos.

A OMS tem seus critérios para identificação dos medicamentos prioritários para pesquisa e desenvolvimento. Algumas PDPs utilizam esses parâmetros para guiar os investimentos. Por outro lado, a OMS, tem uma metodologia para determinar como esses critérios devem ser combinados. Este é um importante diferencial para o sucesso de suas estratégias. O Brasil tem uma lista de medicamentos prioritários para as PDPs, mas deveríamos ter uma lista de medicamentos prioritários para o SUS, a serem produzidos pelos laboratórios públicos como um todoA decisão em relação a como esses bens seriam produzidos – por meio de PDPs, genéricos ou qualquer outra estratégia – seria posterior.

Qual a contribuição de estudos prospectivos de futuro, como os desenvolvidos pela rede Brasil Saúde Amanhã, para o planejamento estratégico do setor Saúde?

Os estudos prospectivos de futuro são fundamentais para que possamos perceber as lacunas que representam oportunidades e necessidades de investimento na produção de medicamentos. Uma vez identificada a lista de produtos prioritários para o SUS, o passo seguinte seria definir como essas carências serão superadas. E isso pode ocorrer por meio de PDPs, do desenvolvimento de outras apresentações farmacêuticas para medicamentos que já são produzidos, mas não alcançam a totalidade da população, ou ainda pela produção de genéricos, caso as patentes estejam em vias de expirar.

Esse trabalho depende de diferentes estratégias, como o monitoramento do horizonte tecnológico, que revelará quais as novidades no médio e no longo prazo, e a identificação de lacunas de tratamento, considerando as necessidades sanitárias e os medicamentos existentes. A análise indicará se é recomendável investir em determinado medicamento ou se o melhor é esperar um pouco – seja porque ele será rapidamente substituído por outro ou porque sua patente irá expirar, permitindo a produção de genéricos. O importante é compreender que nem sempre as demandas de saúde serão respondidas por PDPs.  Às vezes, a resposta pode ser até menos complexa do que a criação de uma PDP, como, por exemplo, uma reorientação da rede de laboratórios públicos de produção de medicamentos para responder a algumas necessidades menos complexas, mas igualmente fundamentais.

Renata Leite
Saúde Amanhã
26/09/2016