O desafio da força de trabalho em saúde

Demanda por profissionais de saúde, redefinição de protocolos de assistência e maior integração entre Saúde e Educação. Esses são alguns dos aspectos analisados nesta entrevista pelo secretário executivo da Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (Una-SUS), o pesquisador Francisco Campos. Especialista em força de trabalho em Saúde e recursos humanos, Campos participou, em novembro, da oficina “Desafios Metodológicos nas Estimativas da Força de Trabalho de Médicos Especialistas em Cenários de Longo Prazo”, realizada pelo projeto Brasil Saúde Amanhã. Segundo ele, provavelmente, no futuro os profissionais não serão formados como especialistas apenas nas residências, nas Academias, mas terão que completar o processo de formação ao longo da vida. “O que a Una-SUS faz é oferecer, com o auxílio das tecnologias da informação e da comunicação, oportunidades educacionais para que as pessoas possam continuar a se desenvolver, permanentemente, para servir ao SUS”, explica.

Como está organizada hoje a força de trabalho do sistema de saúde brasileiro e quais são as tendências para o futuro?

Sabemos que faltam médicos especialistas no Brasil. Mas precisamos olhar, também, para a organização da força de trabalho atualmente disponível. Existe uma profunda dependência entre pensar quantos profissionais e especialistas serão necessários e discutir quais são as fronteiras em termos de regulação das práticas profissionais – e isso depende muito das configurações do sistema legal, que baliza as práticas profissionais. Certamente precisamos de mais profissionais de saúde, com melhores formações. Além disso, é fundamental a delimitação mais clara de quais são os escopos de cada uma das profissões da Saúde. Esse processo deve ser legitimado pela Academia e pelas corporações profissionais – são esses os atores sociais essencialmente envolvidos no processo de formação de força de trabalho para o sistema de saúde.

 O mundo inteiro discute uma proposta chamada task shifting, a transferência de função. Mesmo países que têm gastos com saúde muito maiores que o do Brasil admitem que outros  profissionais podem assumir atividades que tradicionalmente ou usualmente estão na órbita da profissão médica. Um exemplo: a medida de refração da vista pode ser feita, em alguns países, por um optometrista. Mas, se optometristas não puderem executá-la, será necessário um número maior de oftalmologistas para o sistema de saúde. Citei o caso da lente de correção ocular e poderia dar centenas de outros exemplos. No Brasil, houve polêmica em relação à regulamentação do exercício profissional da Medicina, a chamada Lei do Ato Médico. Se forem definidas muitas atividades como sendo atribuição e competência exclusiva dos médicos, evidentemente serão necessários mais médicos.

Como o país pode se preparar para aprimorar a força de trabalho na área da saúde?

O Artigo 200 da Constituição Federal estabelece que a Saúde ordena a formação de recursos humanos, mas também mantém a autonomia da Universidade. No Brasil temos feito o enorme esforço de incrementar o diálogo entre o setor Saúde e o Educação. Mas são dois mundos diferentes, com difícil diálogo e que manejam linguagens diferentes. Isso impacta diretamente a definição do escopo de cada profissão. Marcos regulatórios mais claros e uma maior interação entre as áreas é fundamental para se produzam profissionais.

Um exemplo: suponha que nós saibamos quantos dermatologistas nós precisamos no Brasil. Quem vai formá-los? É preciso haver um diálogo com os professores, que têm o poder de titular. Assim como é preciso ter um marco regulatório para pensar se toda afecção comum deve ser tratada por dermatologista ou se o profissional clínico geral ou médico de família pode tratar. Se todos esses casos forem encaminhados para dermatologistas, será necessário um número enorme de especialistas na área. Quais são as intervenções que podem ser resolvidas por pessoal auxiliar, por pessoal de enfermagem e quais são aquelas que são para especialistas? Existem situações que demandam um especialista altamente competente, mas se o dermatologista de enorme competência, formado depois de seis anos de graduação, dois anos de residência, mestrado e doutorado for resolver isso, não vai ser possível produzir profissionais suficientes. Na maior parte das áreas da Saúde, ainda há poucos profissionais para garantir um sistema universal, inclusivo e com um grande espectro de serviços. Nas outras categorias profissionais esta lacuna não é tão clara quanto na medicina porque elas também não são bem definidas como a medicina.

De que forma a prospecção estratégica realizada pelo projeto Brasil Saúde Amanhã pode ajudar a fortalecer e aprimorar o SUS nesse horizonte até 2030?

Formar recursos humanos não é como produzir insumos – você decide e em seis meses tem os primeiros resultados. Formar e qualificar a força de trabalho do sistema de saúde do Brasil é um investimento de longo prazo, que requer planejamento. Se um país decide ter mais médicos e não tem nenhuma faculdade de Medicina, o primeiro médico a estar diplomado e trabalhando surgirá, com muito otimismo, em 12 anos. Vi recentemente a notícia de que uma sonda posou em um asteroide. A sonda foi lançada há 10 anos. Para ter sido lançada há 10 anos, teve que ser planejada 15 anos atrás. Podemos imaginar que os computadores, os propulsores e a tecnologia eram diferentes há 10 ou 15 anos, mas alguém os planejou. Ou seja, para termos um número de profissionais para atender o mercado de saúde ou as necessidades de saúde por volta de 2030, temos que começar a planejar agora – porque profissional de saúde demora a se formar e tem custo alto. É um processo difícil.

Neste sentido, o projeto Brasil Saúde Amanhã contribui para incrementar quantitativa e qualitativamente a resposta ao desafio da força de trabalho em Saúde. Esta visão de futuro é ainda mais relevante no cenário de envelhecimento populacional que temos no Brasil. Em 2030, o número de pessoas com mais de 70 anos será muito maior do que o que temos hoje. Se nós já sabemos que temos uma pirâmide demográfica que não é mais uma pirâmide, é uma espécie de balão, essa parte do “balão” que está no meio um dia vai chegar no topo. Vamos ter muita gente idosa daqui a 20 anos. Quem vai tratar essas pessoas? Se a sociedade definir que idosos devem ser tratados apenas por gerontologistas será preciso investir muito em formação desses especialistas.

Como seria possível atender essa demanda por especialistas?

Não existe forma de resolver um sistema de saúde que investe menos do que seria necessário – como é o caso do Brasil – se a Atenção Básica não figurar como   ordenadora de todo o conjunto de atenção à saúde. Mesmo em sistemas saturados, quando se coloca leitos hospitalares adicionais, eles são ocupados no dia seguinte. A Saúde, ao contrário de outros setores do consumo, não tem fluxo autocontido. A população precisa estar consciente de que a limitação do consumo na Saúde é muito diferente da que acontece em outros setores: é custoso, é caro. No mundo inteiro é assim. Se pegarmos exemplos de sistemas de saúde hoje bem resolvidos, como o inglês e o canadense,verificaremos que há filas enormes e muita reclamação por parte da população porque, a cada dia, as pessoas usam mais e precisam mais.

A chamada Lei do Ato Médico definiu quais são as atribuições exclusivas dos médicos. Mas muitas vezes a própria sociedade faz isso de forma consensual. Não é comum a própria pessoa tomar a decisão de que vai ao gastroenterologista ou ao cardiologista? Existe uma cultura de busca pelo especialista. Por isso, precisamos criar mais confiança junto ao médico da família, para que as pessoas saibam que ele pode resolver a grande maioria dos problemas de saúde, sem a necessidade de um especialista. Uma vez o ministro Temporão disse que 90% das pessoas que estavam nas filas dos hospitais de emergência do Rio não precisavam estar lá. A imprensa foi aos locais e constatou que é verdade. O que a pessoa está fazendo na fila se ela poderia ter o seu problema muito melhor encaminhado perto de sua casa? Se a própria população não aceitar que o profissional incluído na Programa Saúde da Família é capaz de resolver a maioria das coisas, certamente nós não vamos avançar.

Bel Levy
Saúde Amanhã
15/12/2014