Uma matriz geográfica para o SUS

“Precisamos de uma matriz geográfica que contribua para aprimorar cada vez mais a atenção à saúde da população brasileira, nos diferentes territórios e realidades do país”. A recomendação é da geógrafa Monica O’Neill, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e colaboradora da rede Brasil Saúde Amanhã. Em co-autoria com o pesquisador Antônio Tadeu Ribeiro de Oliveira, Monica assina o capítulo “Dinâmica Demográfica e Distribuição Espacial da População: o acesso aos serviços de saúde”, que será publicado no volume Brasil Saúde Amanhã: População Economia e Gestão, a ser lançado no segundo semestre de 2015. Nesta entrevista, ela descreve os fluxos migratórios da população brasileira, analisa as suas tendências futuras e aponta os desafios para a efetiva regionalização do Sistema Único de Saúde (SUS) no horizonte dos próximos 20 anos.

O estudo “Mudança Demográfica no Brasil no Início do Século XXI: Subsídios para as projeções da população do Brasil e das Unidades da Federação”, lançado recentemente pelo IBGE, descreve as tendências futuras da população brasileira. Em médio e longo prazo, quais serão os impactos dessas transformações para a organização do sistema de saúde?

A partir dos estudos do IBGE sobre o perfil demográfico da população brasileira, percebemos os desafios e a urgência de projetarmos cenários para o futuro. Estamos numa fase de transição demográfica e os avanços metodológicos para avaliar e medir o comportamento dos principais componentes dessa dimensão são muito importantes. O estudo incorpora as mudanças no âmbito de fecundidade, mortalidade e migração na projeção da população e mensuram os dados por sexo e idade. Paralelamente, outros estudos, a exemplo dos “Arranjos Populacionais e Concentrações Urbanas do Brasil”, fornecem quadros territoriais contemporâneos, que articulados às informações demográficas, dentre outras, auxiliam a compreensão das mudanças em curso e subsidiam as políticas públicas.

No estudo dos arranjos populacionais foram identificadas 184 concentrações urbanas de médio a grande porte, isto é, com pelo menos 100 mil habitantes. Essas concentrações urbanas abrigam mais que a metade da população brasileira e por isso representam, também, um grande foco de demandas para o SUS. Essas concentrações urbanas estão presentes majoritariamente no eixo Sul-Sudeste e no litoral do Nordeste e aparecem de forma mais pontual no Norte e no Centro-Oeste. Tais unidades, assim como outros recortes territoriais, permitem identificar condições diferenciadas de concentração de renda e desigualdade social que impactam também o acesso e a equidade do sistema público de saúde.

São 26 Concentrações Urbanas com mais de dois milhões e meio de habitantes, que abrigam quase 80 milhões de pessoas, e 158 Médias Concentrações Urbanas, que comportam 36 milhões de pessoas. Um desafio enorme do ponto de vista do planejamento de políticas públicas e da oferta de serviços essenciais à população, como a Saúde. Tudo isso mostra que são necessários estudos sobre o presente para que possamos realizar a prospecção estratégica do futuro e, assim, subsidiar com informações consistentes o planejamento de políticas públicas voltadas para a assistência à população numa perspectiva territorial.

Quais os cenários futuros para os fluxos migratórios da população brasileira e quais os impactos dessas tendências para a Saúde?

Atualmente vivemos a ampliação da migração em direção às cidades médias. Ao mesmo tempo, verifica-se um número significativo de cidades médias que ainda não se constituem como aglomerações urbanas, em termos populacionais. Quer dizer, são municípios isolados. E sabemos, também, que hoje a oferta de serviços de saúde é altamente concentrada, sobretudo no eixo Centro-Sul do país. Essa concentração ocorre em termos de oferta de atendimento, de níveis de complexidade, de recursos humanos. Diante deste quadro, buscamos, com a pesquisa desenvolvida no âmbito da rede Brasil Saúde Amanhã, mapear quais são – e quais serão – as cidades brasileiras que concentram grandes grupos populacionais e por isso demandam maior oferta de serviços públicos de saúde. O setor privado certamente investirá e oferecerá os seus serviços às regiões com maior concentração de renda. Portanto, cabe ao SUS, um sistema universal de saúde, garantir o acesso da população que vive nessas outras cidades aos serviços de saúde, de maneira mais justa e equânime.

Neste sentido, os estudos de prospecção estratégica do futuro nos ajudam a identificar as tendências de migração no país, observando as dinâmicas da população de forma associada às taxas de natalidade do país e de suas diferentes regiões. Assim podemos inferir se realmente está ocorrendo – e se ainda vai ocorrer – uma efetiva concentração da população brasileira nas cidades de médio porte; se isto vai acontecer em direção ao interior do país ou em outras regiões que apresentam maior grau de urbanização. Esses dados são fundamentais para compor os planos de distribuição de serviços, em curto, médio e longo prazo, de acordo com a concentração e as dinâmicas de migração da população brasileira.

Diante de tais dinâmicas populacionais, quais os desafios para a organização do sistema de saúde e a garantia da regionalização e da equidade do SUS, no horizonte dos próximos 20 anos?

Precisamos observar como os fluxos migratórios da população brasileira irão se comportar no contexto de crise econômica. Até o presente momento trabalhamos com tendências que indicam o arrefecimento da migração para o eixo Centro-Sul, o deslocamento da população para as cidades médias e um movimento de retorno para as regiões Norte e Nordeste. No entanto, essa dinâmica demográfica pode sofrer alterações moduladas pelo atual cenário de retração econômica. Então, precisamos observar se ocorrerá, de novo, a migração da população para os grandes centros urbanos do país, onde estão localizados os maiores mercados de trabalho.Observar essas tendências com acurácia é fundamental, pois este movimento geralmente é seletivo do ponto de vista do gênero e da qualificação, pois é nos grandes centros que há mais oferta de emprego para pessoas com menos qualificação profissional. Se a migração para os grandes centros urbanos voltar a ocorrer com maior intensidade, teremos uma desaceleração nas cidades médias. Esses centros urbanos de médio porte não vão desaparecer, mas podem ter o seu crescimento significativamente desacelerado.

Tudo isso traz implicações para a Saúde. Portanto, mapear esses dados é estratégico para melhor organizar a assistência à saúde no país e efetivar a regionalização do SUS. Se a proposta é racionalizar e promover a melhor oferta de serviços de saúde, precisamos extrapolar essas tendência no longo prazo, no horizonte dos próximos 20 anos, para inferir que medidas e políticas públicas devem ser priorizadas no momento presente. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada periodicamente pelo IBGE, e iniciativas de prospecção estratégica do futuro, como a rede Brasil Saúde Amanhã, são essenciais neste processo. Isso é fundamental para que os investimentos públicos em equipamentos, insumos e recursos humanos realmente respondam às necessidades de saúde da população brasileira. Caso contrário, se não acompanharmos de perto essas tendências, corremos o risco de equipar locais que, num futuro próximo, terão uma estrutura desproporcional em relação à sua concentração populacional, enquanto outras cidades poderão enfrentar problemas para ofertar serviços de saúde de qualidade a um número cada vez maior de habitantes. É preciso, ainda, olhar para tendências específicas, relativas a gênero e faixa etária, por exemplo, para que se possa efetivamente organizar a oferta de serviços públicos de saúde nestas cidades.

A partir dos cenários futuros traçados pela rede Brasil Saúde Amanhã, que medidas podem ser tomadas no presente para garantir a efetiva regionalização do SUS em médio e longo prazo?

De imediato, seria importante selecionar ações fundamentais para a população brasileira em curto e médio prazo e eleger, dentro do território brasileiro, pontos luminosos, isto é, locais onde seria possível atuar de forma mais concentrada e efetiva. Esta seria um política territorial a ser encampada pelo Ministério do Planejamento. Para isso, será necessário avaliar os diversos aspectos que envolvem a diversidade brasileira e as desigualdades regionais do país, para identificar as áreas prioritárias, que demandam mais atenção do Estado. Em síntese, um planejamento regional para promover a equidade do SUS.

Precisamos nos perguntar: se as cidades pequenas e médias estão crescendo, qual será o perfil demográfico dessas localidades em médio e longo prazo? Quais serão os problemas de saúde mais frequentes e quais serão as demandas para o SUS? Será preciso intensificar a atenção à saúde das crianças, dos idosos, das mulheres, dos homens? Será estratégico priorizar o tratamento de doenças crônicas não transmissíveis, como o câncer, ou controle de endemias, como a doença de Chagas ou a dengue? Para planejar a atenção à saúde de forma regional é preciso conhecer profundamente as tendências específicas da população de cada região, sobretudo em um país tão diverso e desigual como o Brasil. Precisamos, então, de uma matriz geográfica que contribua para aprimorar cada vez mais a atenção à saúde da população brasileira, nos diferentes territórios e realidades do país.

Por que iniciativas de prospecção estratégica do futuro, como o estudo promovido pelo IBGE e a rede Brasil Saúde Amanhã, são importantes para o país?

A rede Brasil Saúde Amanhã disponibiliza um painel riquíssimo sobre o futuro do país e do sistema de saúde e, assim, nos permite avaliar, a partir de uma visão de futuro, quais as políticas públicas necessárias no presente. Dessa forma, podemos combinar os elementos desta grande matriz com as especificidades das diferentes regiões do país. Assim será possível inferir se o Estado deverá priorizar o atendimento a doenças crônicas não transmissíveis, respondendo às demandas impostas pelo envelhecimento da população brasileira, que está dado. Seguindo esta linha, seria preciso repensar toda a distribuição dos serviços de saúde pelo território brasileiro, de forma a contemplar as regiões em que a população apresentará níveis mais elevados de envelhecimento com os devidos serviços de saúde e especialidades médicas.

A contínua prospecção estratégica do futuro, com um olhar multidisciplinar sobre o país e a sua população, é imprescindível. Existem fenômenos que já estão ocorrendo e são irreversíveis, como o envelhecimento da população. E há outros que ainda podem sofrer alterações, como a dinâmica dos fluxos migratórios e o ritmo de crescimento das cidades médias. Precisamos conhecer detalhadamente essas tendências para que possamos planejar políticas públicas eficazes e sustentáveis. A população brasileira está envelhecendo, porém não tão rapidamente como se esperava. Por isso acompanhar e monitorar essas tendências, com atualizações a cada cinco anos, é estratégico para que o poder público possa tomar as decisões que se refletirão em políticas públicas. É preciso saber com precisão onde o envelhecimento da população irá ocorrer de forma mais rápida, para que as cidades e o sistema de saúde possam estar preparados para as novas demandas que surgirão como consequência deste processo. Igualmente, precisamos conhecer com segurança a situação atual e as tendências futuras das regiões que apresentam problemas endêmicos e doenças preveníveis. Tudo isso é fundamental para que possamos organizar de forma efetiva, universal e equânime a assistência à saúde no Brasil.

Equipe Portal Saúde Amanhã, Bel Levy, 22/06/2015