Insegurança Alimentar: a fome no Brasil e a fragilidade das propostas da Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU

A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), colaboradora da inciativa Brasil Saúde Amanhã, divulgou os resultados de inquérito populacional que constatou de forma inequívoca o recrudescimento da fome e da insegurança alimentar no Brasil, acentuado pela pandemia de Covid-19: no final de 2020 cerca de 116,8 milhões de brasileiros conviviam com algum grau de insegurança alimentar e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões enfrentavam a fome. O retrocesso nestes índices, que já vinham em ascensão desde 2015, indicam que o Brasil voltou a patamares anteriores aos de 2004.

Este cenário é agravado pelo desmonte de políticas públicas voltadas para a segurança alimentar, pela alta dos preços e inflação dos alimentos, pelas idas e vindas do auxílio emergencial durante o ano de 2021 e, mais recentemente, mudanças substantivas no Programa Bolsa Família, substituído pelo Auxílio Brasil.  Se o cenário nacional não é nada favorável, no contexto internacional também parece faltar muito para que a segurança e soberania alimentar sejam questões tratadas de forma estrutural.

Nos dias 23 e 24 de setembro aconteceu a Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU (UNFSS). Em sua abertura, o evento foi classificado pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, como “uma oportunidade única de empoderar a todos no aproveitamento do poder dos sistemas alimentares para liderar a recuperação da pandemia de COVID-19 e recolocar a todos na trilha para o cumprimento dos 17 Objetivos do Desenvolvimentos Sustentável (ODS) em 2030”. 

Vale lembrar que, entre muitas outras metas dos ODS, estão: a erradicação da fome e da desnutrição; dobrar a produtividade agrícola e a renda dos pequenos produtores de alimentos; garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos; manter a diversidade genética de sementes, plantas cultivadas, animais de criação e domesticados e suas respectivas espécies selvagens; corrigir restrições e distorções nos mercados agrícolas mundiais; garantir o funcionamento adequado dos mercados de commodities de alimentos e seus derivados.

Reportagem do Joio e o Trigo mostra que apesar do objetivo expresso de tornar os sistemas alimentares mais inclusivos, a cúpula aconteceu sob forte desconfiança de variados setores da sociedade. Movimentos sociais e entidades da sociedade civil denunciaram a estrutura pouco participativa do evento e a forte captura da agenda de debates e propostas pelas corporações agroalimentares e pelo setor privado. O envolvimento direto do Fórum Econômico Mundial na organização da cúpula, a indicação de um nome ligado ao agronegócio e à filantropia para chefia do evento e o foco na utilização de novos paradigmas tecnológicos como estratégias centrais para a promoção da segurança alimentar justificam as dúvidas.

Outras críticas dizem respeito à exclusão de representantes de indígenas e movimentos sociais; de reivindicações sobre uma transformação dos sistemas alimentares baseada na soberania alimentar e na agroecologia; a omissões em uma série de questões econômicas, sociais e de saúde pública, como por exemplo, aquelas relacionadas aos alimentos ultraprocessados. Também teve destaque a dissonância do caráter das propostas em relação à urgência de uma pandemia global associada a grave crise alimentar, que escancarou fragilidades na distribuição de alimentos e as consequências regressivas da dinâmica do sistema alimentar industrial globalizado.

Como destaca o Observatório de Política Externa Brasileira, a posição oficial do governo brasileiro na cúpula traçou um quadro bem distante da realidade do país.  O documento base produzido pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) destacou aspectos como “produção e o consumo responsáveis, a segurança alimentar e nutricional, padrões alimentares e redução do desperdício de alimentos” e valorizou o agronegócio brasileiro como exemplo bem-sucedido de conciliação de agricultura industrial em larga escala e sustentabilidade, ignorando suas relações com a emissão de gases de efeito estufa, desmatamento da Amazônia e violação de direitos de povos originários. Como soluções, apresentou políticas já existentes e que tem sido alvo de ataques e fragilização, como o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Buscando aprofundar estes temas e apresentar prospecções de futuro para o Brasil no horizonte dos próximos 20 anos, a iniciativa Saúde Amanhã promove nos dias 29 e 30 de novembro de 2021 o seminárioAlimentação e Nutrição, perspectivas na Segurança e Soberania Alimentar”, com transmissão pelo YouTube. Nele, pesquisadores de diversas instituições e centros de pesquisa parceiros apresentarão os resultados de sete textos para discussão elaborados para o projeto.

Entre os temas que serão abordados estão: transformações na agricultura brasileira; desafios para a segurança alimentar e nutricional no século XXI; sistemas alimentares, desigualdades e saúde; políticas públicas para soberania e segurança alimentar no Brasil; sistema alimentar global frente à nova fronteira tecnológica e novas dinâmicas geopolíticas; consumo alimentar e seus impactos ambientais e econômicos no Brasil; externalidades na agricultura brasileira; e evolução da má nutrição na população brasileira.


O evento será transmitido ao vivo pelo canal da VideoSaude Distribuidora da Fiocruz no YouTube. Assista em: www.saudeamanha@fiocruz.br.