Daniel Conceição: ‘Não existe crise fiscal no Brasil’

A crise fiscal e o endividamento “insustentável” que vêm assombrando o país são, na verdade, “invenções” para desequilibrar a economia, em prejuízo dos gastos sociais. A análise é do economista Daniel Conceição, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ao lado de Carlos Pinkusfeld Bastos, também da UFRJ, Sulamis Dain, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e Pedro Rossi, da Universidade de Campinas (Unicamp), Conceição participou do seminário “Desenvolvimento, Espaço Fiscal e Financiamento Setorial”, realizado em 16 de dezembro de 2016 pela rede Brasil Saúde Amanhã, em parceria com o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE).

“Quando as pessoas estão convencidas de que há uma crise fiscal, passam a se comportar de determinada forma e pode haver, sim, mudanças significativas e consequências reais. Não pelo endividamento. O problema é a retórica, são as mentiras que os economistas contam”, observou Daniel.

Leia abaixo a transcrição da palestra de Daniel Conceição, disponibilizada pelo blog do CEE-Fiocruz.

“Em geral, os economistas estão aí para convencer vocês de coisas de que só fazem sentido para quem paga a eles para contarem suas mentiras. Se disserem a vocês que a dívida pública do país está grande demais e que esse é o nosso grande problema, perguntem por quê. Dívida pública é completamente diferente do endividamento de outras unidades financeiras, famílias, empresas. Eu e vocês temos problema em nos endividarmos. Mas o governo central, endividando-se em moeda nacional, não! Isso vira um problema, quando dizemos que é um problema, e nos comportamos de forma insana por causa disso. O cenário que estamos enfrentando é justamente consequência de o governo adotar o combate à dívida pública como prioridade. Isso aumenta o endividamento da população. Produzimos crises que não precisavam acontecer.

Os economistas do governo vão nos apresentar o diagnóstico de “dominância fiscal” [em que os gastos fogem do controle e o aumento de juros alimenta a inflação, em vez de combatê-la], vão dizer que a dívida pública chegou num ponto tão elevado – ninguém explica por que esse patamar existe – que se tornou insustentável. No entanto, até para combater a dívida propõem uma alternativa maluca: reduzir renda da economia, tirar estímulos, desmontar o Estado.

O cenário que estamos enfrentando é justamente consequência de o governo adotar o combate à dívida pública como prioridade. Isso aumenta o endividamento da população. Produzimos crises que não precisavam acontecer.

Não existe crise fiscal! Isso foi uma invenção para saquearem nosso Estado. Se olharmos para a os demais países do mundo, veremos que o Brasil, na relação de seu endividamento com o PIB, aparece na 39ª posição. A dívida do governo brasileiro cresceu de cerca de 55% do PIB em 2008 para 70% em 2016. Mesmo assim, como fração do PIB, é inferior à de dezenas de outros países. Com exceção de governos na zona do Euro, incapazes de garantir suas solvências unilateralmente, o aumento das dívidas públicas foi recebido com muito menos alarde no exterior do que aqui. Em nenhum outro país foi proposto algo tão insano quanto congelar o gasto primário do governo durante 20 anos. Critério de comparação depende de quem escolhe. Eles estão escolhendo um para fazer parecer que nossa dívida é muito maior do que as outras.

Endividamento público significa promessa de pagamento de reais, no futuro – é com isso que o governo se compromete. A capacidade de realizar esse pagamento depende apenas da capacidade de o governo realizar pagamentos de forma geral. Olhar a variável dívida-PIB como critério de sustentabilidade é estranho; não vamos usar o PIB para pagar a dívida, vamos usar o real.

O único estudo que supostamente demonstra que há influência negativa de dívidas situadas acima do percentual de 90% do PIB sobre o crescimento econômico, foi o realizado [em 2010] pelos economistas Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff [da Universidade de Harvard, EUA] e é uma tremenda fraude, uma das maiores vergonhas da economia. Como acabou sendo descoberto, os dois economistas massacraram os números, excluindo o que não era conveniente, até conseguirem produzir o resultado de que precisavam. Se o estudo fosse feito de maneira honesta, não haveria relação convincente entre o PIB e a dívida. E, vale dizer, mesmo levando em conta esse estudo, que foi um escândalo, estamos muito distantes daquele percentual.

Embora não haja crise fiscal, a invenção de uma crise é um bom método para desequilibrar uma economia capitalista, convencendo as pessoas a se comportar como se estivéssemos em situação de endividamento insustentável. Quando as pessoas estão convencidas de que há uma crise fiscal, passam a se comportar de determinada forma, e pode haver, sim, mudanças significativas e consequências reais. Não pelo endividamento. O problema é a retórica, são as mentiras que os economistas contam.

Mas vamos nos deter no combate às mentiras no nosso campo, não no deles, trazendo a Teoria das Finanças Funcionais, desenvolvida por Abba Lerner (economista russo-britânico, 1903-1982). Abba Lerner propôs que em vez de praticar a responsabilidade fiscal (controlar o endividamento estatal), Estados monetariamente soberanos deveriam praticar finanças funcionais e escolher suas políticas fiscais e monetárias exclusivamente em função do mérito das suas consequências socioeconômicas. Keynes já trabalhava com essa ideia, assim como Kalecki [Michal Kalecki, economista polonês, 1899-1970] e Evsey Domar [economista russo-americano, 1914-1997].

Eles tinham claro que o problema de uma economia monetária se resolve com a administração da demanda agregada. O endividamento público é uma consequência, uma variável que, quando denominada na moeda que o próprio Estado emite, passa a ser até irrelevante. O problema é o tamanho do gasto e o que isso está realizando com a economia. Kalecki, em seu texto clássico, Aspectos políticos do pleno emprego [1943], diz que isso é tão óbvio que temos que nos preocupar em entender por que os economistas mentem.

O Estado não é como uma família ou uma empresa, que têm que arrecadar para depois gastar. Essa é uma analogia preguiçosa e tem feito um estrago tremendo. Empresas e famílias precisam obter moeda para gastar; nosso governo central emite moeda. Um governo que gasta moeda que ele mesmo emite não fica sem dinheiro, como uma dona de casa. Vamos falar do Estado com as especificidades que o Estado tem! Se o Estado brasileiro é emissor do real, não precisa da restrição orçamentária como os demais participantes da economia, como eu e você que, se nos endividarmos demais, podemos quebrar.

Ninguém além do Banco Central pode produzir reais na economia. Isso significa que, enquanto nós precisamos receber reais para depois gastá-los, o Estado deve inevitavelmente introduzir os reais na economia para depois recebê-los! Se formos falar em quem viabiliza quem, é o gasto público, a introdução de reais na economia, que permite que as pessoas paguem impostos. O Estado não cobra impostos primeiro, para depois fazer gastos. Como os reais apareceriam na economia? Só se alguém estivesse falsificando…

Uma economia monetária em que usamos como moeda uma dívida pública, tem que ter endividamento para que haja moeda e para se fazer a economia funcionar. Claro que a coisa muda de figura se a dívida se dá em moeda estrangeira, que o país não emite. Nesse caso, sim, precisamos obter a moeda para depois realizar o pagamento externo. Com o endividamento em reais, não há qualquer problema.

Enquanto nós precisamos receber reais para depois gastá-los, o Estado deve inevitavelmente introduzir os reais na economia para depois recebê-los!

O governo já pratica autofinanciamento, isto é, a realização do gasto público pela emissão de moeda. E transfere recursos da Conta Única do Tesouro, que tem no Banco Central, para os bancos comerciais para fazer frente a pagamentos. Com isso, introduz reservas na economia e aumenta a base monetária. Os gastos federais criam moedas; os impostos a destroem…

É importante dizer também que a taxa de juros é controlada pelo Banco Central e não tem por que refletir o risco de insolvência do governo. A taxa de juros é supostamente combatida com a meta inflacionária do BC. Existe o comitê do banco, que, a partir de critérios técnicos, define o tamanho da taxa de juros, que ou combaterá a inflação ou refletirá o risco de insolvência do governo.

Depois de 2008, os Estados Unidos deixaram claro que o Banco Central estabiliza a taxa de juros que quiser. O endividamento do país cresceu e as taxas de juros despencaram, porque o Banco Central definiu que deveriam despencar. A ideia de que quanto mais endividado o governo, maiores serão as taxas de juros não se comprova, por exemplo, com o Japão. Se formos ver a evolução da dívida japonesa, observaremos que não existe essa relação; os juros não precisam subir quando há endividamento.

Vão dizer que sou defensor da inflação descontrolada, quando uma das minhas maiores preocupações é combater a inflação. Mas inflação tem que ser tratada de forma séria, para receber o remédio adequado. O gasto público não é necessariamente mais inflacionário que qualquer outro gasto. Todo gasto público é operacionalizado pela emissão de moedas. E a emissão de moeda não é necessariamente mais inflacionária. O gasto privado financiado por crédito cria moeda tanto quanto o gasto público. Pode ser inflacionário ou não. Depende de quê? A inflação de demanda é um fenômeno de fluxos, um desequilíbrio entre o valor gasto na economia e o valor do produto que pode ser oferecido a preços correntes. Se esse valor gasto for maior, há pressão inflacionária, mas o problema é, então, a variação do gasto, não a variação monetária.

Os monetaristas descrevem gasto público via emissão monetária como inflação. Retórica para assustar. Eles iriam dizer o quê, dessas operações que, no pós-2008, introduziram reservas no sistema financeiro americano, promovendo alterações que somaram 23 trilhões de dólares? Os Estados Unidos deveriam ter se transformado no Zimbabwe, se fossemos seguir a teoria convencional sobre inflação.

O governo tem toda condição de ajustar seus gastos, de modo a garantir que operemos em uma situação macroeconômica saudável. Capacidade financeira ele tem de ajustar o tamanho da demanda agregada para que operemos perto do ótimo e paremos de desperdiçar oportunidades de gerar bem estar para a população. Estamos preocupados com o fantasma da crise fiscal. Não há crise fiscal, não há necessidade de combater a dívida pública e podemos produzir muito mais do que fazemos hoje para a nossa população”.

Fonte: CEE