EC55: tecnicamente equivocada e socialmente injusta

Pedro Rossi: ‘O discurso neoliberal de que precisamos cortar gastos e esperar que as coisas melhorem está fadado ao fracasso’.

A Emenda Constitucional 55 (EC 55) sustenta-se sobre fábulas e mitos – como a farra do gasto público, a insolvência do Estado e a contração fiscal expansionista –, e sustenta-se em diagnóstico equivocado de que o déficit primário teria provocado o crescimento da dívida pública. A análise é do professor Pedro Rossi, do Instituto de Economia da Unicamp, que participou, em 16 de dezembro de 2016, ao lado dos professores Carlos Pinkusfeld Bastos e Daniel Conceição, ambos da UFRJ, e Sulamis Dain, da UERJ, do seminário Desenvolvimento, Espaço Fiscal e Financiamento Setorial,promovido pela rede Brasil Saúde Amanhã, em  parceria com o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE). “O novo projeto fiscal impõe um outro projeto de país, diferente daquele almejado pela Constituição de 1988”, observa Pedro Rossi, que acrescenta: “Nós não estamos vencidos”.

O blog do CEE transcreveu e editou as quatro exposições e publica, abaixo, a de Pedro Rossi.

“O contexto que estamos discutindo é muito complicado. A EC 55 acabou de ser aprovada e nós estamos sob o peso de uma derrota política enorme. No entanto, olhando por outra perspectiva, acredito que essa não foi uma derrota completa. No fundo, vencemos o debate público, apesar de termos perdido a votação do Congresso. Conseguimos trazer questões importantes para debate. Houve um movimento muito grande e conseguimos desconstruir vários dos mitos propostos ali. Entre eles, mostramos que essa é uma proposta tecnicamente equivocada, do ponto de vista macroeconômico, e soc ialmente injusta. Isso foi ficando claro ao longo do debate, de modo que o apoio popular à proposta era muito reduzido. Pesquisas indicaram que cerca de 60% da população brasileira era contra.

Eles vão descobrir também que a proposta é politicamente inviável. Acredito que a EC 55 não irá durar dez anos. Ela será revogada ou descaracterizada por uma série de emendas parlamentares que vão retirar seu sentido fundamental. A partir daí, não será mais uma questão de esquerda ou direita. De um lado, os servidores públicos estarão absolutamente insatisfeitos com o congelamento de salários e com a piora nas condições de trabalho, fazendo pressões sobre os parlamentares e sobre o Executivo. Por outro, essa deterioração do servi&cced il;o público jogará faíscas sobre uma revolta social devido à precarização das condições de saúde e de educação.

Haverá uma insatisfação grande por parte da população. E o governo, amarrado por uma medida absolutamente sem sentido, não terá condições nem de atender as demandas da democracia, tampouco de retomar o crescimento econômico, porque não haverá capacidade para isso – pelas regras que foram impostas a ele mesmo. Por esse motivo, é importante que estejamos presentes nesse debate. Insistindo e colocando as questões, para tentar inverter o discurso que sustentou essa EC.

Qual o problema essencial desse discurso? Ele inverte a lógica das coisas. Normalmente, as finanças públicas servem para um determinado projeto de país. Eles inverteram. Eles pensaram na arrumação fiscal e o projeto de país terá que se adequar a essa arrumação fiscal. No fundo, é um outro projeto de país que está sendo criado. Trata-se de um projeto de desconstrução do Estado – ou de Estado mínimo –, que não prevê saúde e educação pública e universal. No entanto, em 2018, esse projeto n ão ganhará. Nosso debate público está envolto por uma série de mitos e fábulas. E o que diz a fábula? Que nós vivemos períodos de excessos, e que, por isso, agora teremos de viver períodos de sacrifícios. Essa história que se relaciona muito com o que o Daniel Conceição falou sobre compararem o Estado com uma família. Mas o Estado não é uma família. Quando o Estado gasta, gera impacto na economia, que, de alguma maneira, também retorna para ele o que gastou. Nosso gasto é renda de alguém: quando eu gasto, alguém recebe; quando eu tomo a decisão de parar de gastar, alguém vai parar de receber. Quando o Estado para de gastar, ou um grande gastador do sistema – como a Petrobras ou o Governo Federal – retrai o gasto, significa que muita gente para de receber. Com essas pessoas parando de receber, evide ntemente o consumo diminuirá, bem como o investimento, e assim a economia desacelera. Isso é uma crise econômica.

A crise econômica acontece quando pessoas tomam uma decisão, por quaisquer motivos, de adiar gastos importantes. Por exemplo: diante da situação que o país vive, resolvi adiar uma obra em minha casa. Vou esperar, ver o que vai acontecer, se meu emprego vai continuar etc. A partir dessa decisão, vou comprar menos cimento, contratar menos operários, menos arquitetos etc.  Minha decisão é um grãozinho de areia no que a economia representa. A decisão do Estado, não. Afeta o sistema em escala muito maior.

O Estado tem o papel importante de assegurar o crescimento e o emprego. Nos discursos a favor da EC, isso está sendo esquecido. Em 2018, ganhará quem disser que o Estado trará os empregos de volta, porque isso é responsabilidade do Estado. No entanto, esse alguém poderá ser alguém da direita, da extrema-direita ou alguém da esquerda. A única certeza é que esse discurso neoliberal de que precisamos ajustar, cortar gastos e esperar que as coisas melhorem no futuro está fadado ao fracasso. É completamente equivocada essa história da escassez e dos sacrifí cios que temos que fazer.

O outro mito é a contração fiscal expansionista. Ela sofre de um problema básico: quando o Estado faz ajuste fiscal, o empresário não gasta mais. Não existe essa imediação. Porque o empresário iria gastar devido a um ajuste fiscal? Ele gasta mais se há demanda, lucro, ou até mesmo porque a economia mundial cresceu. Não porque o governo fez o ajuste fiscal. Muito pelo contrário, em alguns casos, uma parte do mercado passa a receber menos e, consequentemente, a investir menos. Por isso, essa imediação entre ajuste fiscal e crescimento econ& ocirc;mico, aumento de investimento e aumento do gasto, não existe. É absolutamente falsa e fundada em hipóteses equivocadas e surreais.

O ajuste fiscal não é a panaceia para os problemas econômicos. Isso está baseado em uma postura ideológica de que é necessário reduzir o tamanho do Estado. Para sustentar essa ideia, estão sendo criados mitos – maquiados com explicações racionais. Na verdade, trata-se de um austerícidio. O governo corta gastos, o crescimento cai, a arrecadação cai porque o crescimento caiu; e o resultado fiscal piora. Enquanto isso, eles estão dizendo que o resultado fiscal piorou e por isso é necess& aacute;rio cortar mais gastos. Assim entramos nesse círculo vicioso.

Olhando para a história recente, é impressionante como isso não é dito no debate público. Desde 2015, nós vivemos a pior recessão da história, mas ninguém atribui isso aos erros de política econômica no país em 2015. Eles continuam com o discurso de que foi lá atrás, no primeiro governo Dilma, que desencadeou toda a confusão que estamos vivendo. É o oportunismo das defasagens.

Dilma teve motivos estruturais importantes para que o crescimento desacelerasse. Talvez eu coloque menos ênfase na política econômica. De fato, ela perdeu a economia em uma trajetória de desaceleração, mas isso ocorreu porque o modelo econômico do próprio governo Lula já tinha sido contraditório.

Precisamos fazer uma análise desses governos todos e pensar as contradições que foram postas. Estou escrevendo um artigo sobre esse tema, e a ideia é a seguinte: o governo Lula tinha um modelo econômico que dinamizou extremamente o lado da demanda, devido às políticas de distribuição de renda e ao crédito. Isso foi permitido com o relaxamento da restrição externa. Só que, por outro lado, a estrutura de oferta doméstica, ou seja, a estrutura produtiva, não acompanhou essa transformação, o que causou um desequilíbrio.

Usando uma explicação do Celso Furtado: o Brasil modernizou suas estruturas de demanda, modernizou padrões de consumo de forma democrática, mas não modernizou a estrutura produtiva. Por isso, no momento em que o ciclo virou e o relaxamento da restrição externa e aqueles termos de troca mudaram completamente – justamente em 2011 –, os problemas começam a aparecer de forma mais pesada, inclusive com o desmonte da estrutura produtiva.

Dilma tentou aplacar esses problemas, mas não obteve sucesso. Na minha opinião, ela usou medidas equivocadas. A política econômica do primeiro governo Dilma basicamente tentou estimular oferta. Foi feita uma agenda positiva para os empresários – como CNI (Confederação Nacional das Indústrias) e Fiesp (Federação da Indústrias do Estado de São Paulo] –, estimulando a oferta e contraindo demanda. Não funcionou. No segundo mandato de Dilma, não houve mais ênfase no estímulo à oferta, apenas a contração de demand a direta, o que acarretou esse desastre na economia brasileira.

Sobre o mito da insolvência do Estado, que Daniel Conceição tratou muito bem: nós quebramos na década de 1980 por causa da dívida externa. Já o mito da ‘farra do gasto público’, uma das principais sustentações da PEC 55, diz que a dívida pública subiu porque o governo gastou demais, e por isso temos que fazer uma regra para o gasto primário. A partir disso, o diagnóstico é que a dívida subiu por causa do déficit primário e a solução é co ngelá-lo.

Qual o problema desse discurso? A dívida pública não subiu por causa do déficit primário. Em 15 anos, só tivemos déficit primário nos últimos dois anos, por causa da queda de arrecadação, não do aumento do gasto. O que aumentou a dívida pública foi o que o Daniel falou: uma política de compra de ativos, de reservas, e também o BNDES. E foi, nos anos recentes, uma queda da arrecadação muito forte pelas desonerações e principalmente pela queda do crescimento.

A dívida não sobe por causa do déficit primário. O remédio está errado porque o diagnóstico está absolutamente equivocado. O gasto público, de fato, tem subido acima do crescimento econômico. A receita também cresceu bastante, principalmente no primeiro governo Lula. No governo Dilma, o crescimento da despesa total caiu relativamente. O que aconteceu no segundo governo Dilma foi uma queda brutal da despesa total, mas a arrecadação caiu mais ainda. Por isso, não houve excesso de gasto primário em 2015, e também não houve aceleração do crescimento no primeiro governo Dilma.

A discurso do governo sobre o problema de gastos com funcionalismo também é um absurdo. O funcionalismo no governo Dilma cresceu 0,3% negativos, referente ao gasto com pessoal. Não dá para culpar o funcionalismo por qualquer eventual crise fiscal. O que, de fato, move o gasto do Governo Federal são os benefícios sociais; e que são bem-vindos! Está sendo implementado o que determina a Constituição. Há quem diga que o gasto não pode crescer acima do PIB. Por quê? Se em 1988 foi tomada a decisão de constituir um estado de bem estar social, por que o gasto federal não poderia crescer acima do PIB? Não há problema nisso. Quando acharmos que de fato constituímos o que está previsto na Constituição, poderemos maneirar os gastos públicos.

Entre os países que adotam regras para gasto público, nenhum segue essa regra tão draconiana. Em alguns países europeus, adota-se a regra de que o gasto vai crescer conforme o crescimento econômico. Fazem uma projeção para três ou quatro anos, analisam o crescimento do PIB e, a partir daí, determinam o gasto. Você mantém o tamanho do Estado e os gastos dessa economia. Isso em países que já tem o estado de bem estar social consolidado, em que a ideia é apenas manter. No caso brasileiro, a ideia que vem sendo colocada não é manter, é di minuir.

Esse novo regime fiscal é também uma austeridade contratada para 20 anos. Ou seja, tem um problema técnico, macroeconômico, que é muito grave: não há cláusula de escape. Depois, significa que o gasto público vai contribuir zero para o crescimento. O que é o crescimento econômico? É o consumo das famílias, o investimento, a demanda externa e é o gasto público. Isso significa que, sistematicamente, o Estado vai contribuir zero para o crescimento, ou seja, vai estar sempre puxando o crescimento para trás. Em crises excepcionais, como ocorreu e m 2008, o Estado estará preso por essa PEC e não poderá reagir à crise, por não haver cláusula de escape. Isso não é comum em regimes fiscais modernos, em que a flexibilidade é um ponto importante. No regime fiscal brasileiro, não há nenhuma.

O objetivo dessa EC – que não ficou claro no debate público – é encobrir a desvinculação de receita. Ninguém faz regime fiscal por emenda constitucional. Poderiam ter elaborado o regime, e depois proposto desvinculação no Congresso. Nesse caso, seria mais difícil a aprovação, por estar sendo votado algo com apelo negativo. Dessa forma, objetivo da EC 55 é desvincular educação e saúde. A única matéria constitucional é essa desvinculação, porque o resto não precisa de emenda constitucional.

No meu artigo publicado nos Cadernos de Saúde Pública, mostra que, na verdade, o novo piso da educação será de 18% do PIB e o da saúde, de 15%. Com essa EC, a ideia é, a partir de 2017, congelar e repor a inflação. O problema é que o PIB e a população crescem. O gasto vai sendo reduzido em relação ao PIB e à população. Trata-se de um piso falso. Se compararmos com a regra atual, o governo gastará muito menos.

O governo afirma que é possível retirar verba de outra área para usar em saúde e educação. Mas se olharmos a composição, o primeiro gasto vai cair. Em uma simulação que prevê 2,5% de crescimento, no cenário sob o novo regime fiscal, o gasto público do governo federal, que hoje gira em torno de 20% do PIB, vai cair para 13%, em 20 anos. É uma desconstrução acelerada do Estado. E se olharmos a composição, vemos que desses 20%, hoje, em torno de 8% é benefício previdenciário; cerca de 4% é gasto com s aúde e educação, e o resto, que se aproxima de 8%, é infraestrutura, Judiciário, Bolsa Família etc.

O problema é que a Previdência é contrato e crescerá. Se aprovarem essa nova regra draconiana, manterá os 8%. Nesse gráfico, eu pensei em 8,5% do PIB e um crescimento econômico médio de 2,5%. É impossível, matematicamente, o Brasil chegar em 2036 com um nível maior de gasto em saúde e educação, na proporção do PIB. É inviável.

O novo projeto fiscal impõe outro projeto de país, diferente daquele almejado pela Constituição de 1988. Nós não estamos vencidos. As condições em que a EC 55 foi votada foram muito específicas, um estado de calamidade total. Não se sustentará no futuro.

Fonte: CEE