Enfrentando a crise global da força de trabalho em saúde

Em 2030, a população mundial demandará 80 milhões de profissionais de saúde, enquanto 65 milhões estarão no mercado de trabalho. A estimativa, que reforça a análise da crise global da força de trabalho em saúde, identificada em 2006 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é resultado do estudo “Projeções globais do mercado de trabalho em saúde para 2030”, publicado recentemente no periódico internacional “Recursos Humanos para a Saúde”. Para o médico Mario Roberto Dal Poz, pesquisador do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e colaborador da rede Brasil Saúde Amanhã, mudar este cenário é possível. Dal Poz atuou por 15 anos como coordenador de Recursos Humanos em Saúde da OMS e, nesta entrevista, defende que o problema tem solução. “Em um cenário otimista, a reorganização do modelo de atenção à saúde pode gerar ganhos de produtividade capazes de reduzir substancialmente o déficit projetado para a força de trabalho. O maior desafio é direcionar investimentos para aumentar a produtividade: na gestão, na formação, no uso de tecnologias, no modelo de atenção”, afirma.

Caso a previsão do estudo se confirme, quais as consequências para a garantia da equidade e da universalidade dos sistemas de saúde?

O estudo indica que, se nenhuma variável se alterar até 2030, haverá um déficit de 15 milhões de profissionais de saúde em todo o mundo, considerando sobretudo médicos e enfermeiros de nível superior e técnico. A projeção é válida se não houver mudanças na tecnologia, no modelo de atenção, na tendência de envelhecimento da população ou na composição das equipes de saúde. No entanto, sabemos que todas essas condicionantes sofrerão alterações no percurso dos próximos 20 anos. Precisamos pensar em intervenções, no presente, que sejam capazes de reconduzir o cenário prospectado para o futuro desejado. Caso contrário, se a projeção para 2030 se confirmar, teremos aprofundado a crise global na força de trabalho em saúde, identificada pela OMS em 2006 em seu “Relatório da Saúde Global – trabalhando juntos pela Saúde”. Um cenário gravíssimo.

Olhando para as próximas décadas e para o futuro dos sistemas de saúde, precisamos levar em conta dois aspectos concorrentes do desenvolvimento tecnológico que podem vir a impactar a universalidade e a equidade dos sistemas de saúde. O envelhecimento da população gera demandas mais complexas para o sistema de saúde, que vão exigir respostas inovadoras e o uso intensivo de tecnologias, muitas vezes, de alto custo. Nesse contexto, as novas tecnologias irão requerer profissionais mais qualificados e condutas mais sofisticadas. Por outro lado, muitos processos de trabalho serão simplificados por novas tecnologias, o que poderá ampliar a capacidade de atendimento dos sistemas de saúde. Alguns exemplos dão conta dessa realidade: exames laboratoriais serão cada vez mais automatizados, eventualmente prescindindo a atuação de técnicos. Cirurgias e procedimentos poderão ser realizados a distância, sem necessidade de deslocamento. E os aplicativos de telefonia móvel modificarão profundamente as formas como profissionais e pacientes se comunicam. Num cenário otimista, será possível aumentar a resposta da atenção à saúde sem, necessariamente, expandir as equipes de profissionais. Para isso, os sistemas de saúde precisam se preparar para todas essas mudanças que, sem dúvidas, ocorrerão no horizonte dos próximos 20 anos.

Quais os desafios para a formação, no presente, dos profissionais de saúde que atuarão no futuro?

Hoje, enfrentamos um problema sério: a relativa dissociação entre as universidades, o mercado de trabalho e os serviços de saúde. Os estudantes estão sendo formados a partir do conhecimento acumulado ao longo do último século, que nas próximas décadas não será suficiente. Precisamos discutir quais serão os conhecimentos necessários no horizonte dos próximos dez anos. Caso contrário, os estudantes que estão ingressando hoje nas escolas de Medicina e Enfermagem, entre outras, exercerão sua profissão num cenário extremamente diferente daquele para o qual foram preparados.

Mais uma vez, o desenvolvimento, a incorporação e o uso de novas tecnologias são um bom exemplo. O aumento do uso intensivo da tecnologia demandará, certamente, profissionais mais especializados. Mas o mercado de trabalho não se faz só com especialistas. E, além disso, os especialistas que serão demandados no futuro podem não ser os especialistas que estão se formando hoje. Atualmente, a formação dos profissionais de saúde é realizada a partir do conhecimento do século passado, quando os desafios e os recursos eram diferentes dos que encontramos hoje. Profissionais com este perfil de formação estarão aptos a enfrentar os problemas que surgirão no futuro?

O Brasil está preparado para lidar com as mudanças no perfil de atenção à saúde previstas para as próximas décadas, a partir do envelhecimento da população?

O modelo de atenção à saúde, hoje centrado nas doenças agudas, mudará, acompanhando a tendência de maior peso dos problemas crônicos na carga de doenças, que exigem atenção de longo prazo, profissionais mais especializados e novos insumos e tecnologias. Assistimos a mudanças desse porte com a implantação da Estratégia Saúde da Família no Brasil. No caso da tuberculose, por exemplo, o papel dos Agentes Comunitários de Saúde, que realizam visitas domiciliares e reduzem as distâncias entre a população e o serviço de saúde, garantiu melhores condições e continuidade no tratamento. Mudanças estruturais como essa são desejáveis e irão ocorrer.

Os modelos de atenção à saúde existentes hoje são de baixa produtividade. Isso pode significar que há poucos profissionais para realizar o trabalho que precisa ser feito ou que o mesmo grupo de profissionais poderia ser mais eficiente e gerar resultados mais satisfatórios. O aumento da produtividade das equipes de saúde pode ocorrer a partir da incorporação de novas tecnologias e, também, por transformações nas competências dos trabalhadores da saúde. São dois elementos da maior importância. Além disso, a desigualdade na distribuição de profissionais de saúde pelo território é ainda mais grave que o déficit de trabalhadores, pois só será superada por meio de políticas de alocação de recursos em médio e longo prazo.

Em um cenário otimista, a reorganização do modelo de atenção pode gerar ganhos de produtividade capazes de reduzir substancialmente o déficit projetado para a força de trabalho em saúde. O maior desafio é direcionar investimentos para aumentar a produtividade: na gestão, na formação, no uso de tecnologias, no modelo de atenção. É preciso adotar incentivos, estabelecer mecanismos que sejam permanentemente reavaliados e que permitam aos profissionais programar suas vidas e suas carreiras de forma a atender às demandas do sistema de saúde.

Que políticas e ações devem ser empreendidas no presente para que em 2030 o sistema de saúde brasileiro possa ter suficiência quantitativa e qualitativa na oferta de profissionais de saúde?

O déficit de profissionais de saúde que hoje está projetado para 2030 poderá ser equilibrado, ou ao menos minimizado, a partir de algumas decisões importantes, como a composição das equipes de saúde. E isso acontecerá de forma diferente em cada país. Na Inglaterra e no Canadá, por exemplo, as equipes de saúde contam com enfermeiras clínicas, que prescrevem medicamentos e tratamentos aos pacientes – atribuição que no Brasil e em outros países é conferida apenas aos médicos. A parteira, que em nosso país não faz parte da equipe de saúde, em muitos sistemas de saúde é a profissional responsável pela condução do parto normal. Mudanças desse porte na organização dos serviços e equipes de saúde acarretarão novas configurações na atenção à saúde, podendo influenciar positiva ou negativamente o acesso da população.

Sem dúvidas, são necessários programas de incentivo flexíveis, que integrem as visões e aspirações de diferentes categorias e perfis de profissionais de saúde, que possam ser reavaliados permanentemente. O Banco Mundial recomenda a realização de estudos de preferência declarada, que indicam o que os trabalhadores consideram mais interessante na dinâmica de desenvolvimento, crescimento e retorno profissional. Na Austrália, onde as distâncias são imensas, há uma Associação de Médicos Rurais, que realiza a contratação desses profissionais. O processo inclui a oferta de emprego para o cônjuge, uma escola para o filho e apoio para o uso intensivo de tecnologias da informação e da comunicação, no âmbito profissional e pessoal.

Na realidade brasileira, os estudos de preferência declarada podem ajudar o sistema de saúde a contratar e manter profissionais nas regiões necessárias, garantindo a produtividade a partir de melhores condições de trabalho. Esse tipo de abordagem é fundamental para que o gestor possa estabelecer políticas e programas que compatibilizem as aspirações dos profissionais com as necessidades da população e as possibilidades do sistema de saúde. Os melhores programas de alocação de profissionais de saúde estão na Austrália. Lá, regularmente, os mecanismos de incentivo, financeiros e não financeiros, são renovados. No Brasil há a expectativa de que uma lei irá resolver essa questão. Creio que não vai. Primeiro, porque a inflação desatualiza rapidamente os valores estabelecidos. Segundo, porque temos um sistema de saúde descentralizado, o que inviabiliza carreiras únicas. Os planos de carreira não podem ser definidos somente por lei, sob o risco de sua revisão e atualização se perderem nos trâmites burocráticos, distanciando-se ainda mais da dinâmica do mercado de trabalho.

Qual o papel da prospecção de futuro no planejamento de políticas públicas para a adequação da força de trabalho em saúde no horizonte dos próximos 20 anos?

As projeções de longo prazo são muito importantes para que possamos discutir o futuro, propor estratégias e mudar o curso das situações previstas. Os estudos de futuro têm o papel de alertar sobre os cenários indesejáveis que podem ocorrer e por estimular pesquisadores, gestores e autoridades políticas e sanitárias a discutir opções e caminhos para que eles não se concretizem. Para que sejam efetivos, esses estudos devem ser contrastados por propostas de intervenção sobre os cenários descritos desde o momento de sua publicação, pois, a partir de seus resultados, temos tempo para construir perspectivas diferentes para 2030 ou além. Em síntese, essas iniciativas são importantes para que os tomadores de decisões tenham subsídios para fazer escolhas acertadas, no sentido de um futuro desejável, seguro e mais justo para todos.

 

Bel Levy
Saúde Amanhã
13/02/2017