No horizonte, a luta

“Em relação ao futuro, é possível apenas se prever lutas”. A partir da afirmação do filósofo Antonio Gramsci, o sanitarista Jairnilson Paim, pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e colaborador da rede Brasil Saúde Amanhã, aponta as tendências e os cenários de longo prazo para o sistema de saúde brasileiro. Nesta entrevista, ele discute a concorrência de três projetos ideológicos para a Saúde: o mercantilista, o racionalizador e o democrático. E, diante da ofensiva do primeiro, defende: “é fundamental nos organizarmos politicamente, enquanto sujeitos coletivos, para que possamos intervir democraticamente sobre os rumos do país”.

 Como a realização de estudos prospectivos de futuro, como os desenvolvidos pela rede Brasil Saúde Amanhã, contribuem com a discussão e o planejamento de políticas públicas para a Saúde?

Estudos sobre tendências e cenários futuros têm importância acadêmica, porque estimulam um conjunto de investigações e oferecem subsídios para projeções e prognósticos, e também são relevantes para pautar a ação política e estratégica no âmbito da Saúde e de toda a sociedade. Há muitos desafios nesse processo. A realidade é dinâmica, a História traz surpresas, portanto, trata-se de um exercício intelectual, mas não de predição. Conceitualmente, trabalhamos com uma aproximação ao que se apresentará como realidade nas próximas décadas. Nas palavras do filósofo AntonioGramsci, “em relação ao futuro, é possível apenas se prever lutas”. Esta é uma consideração fundamental, para que não fiquemos deslumbrados com as possibilidades do futuro, sejam elas positivas, quando as conjunturas são favoráveis, ou negativas, quando os cenários são preocupantes.

O Brasil vivia outro contexto quando foram desenvolvidos os primeiros estudos da rede Brasil Saúde Amanhã, que levaram à publicação do livro “A Saúde no Brasil em 2030: Diretrizes para a Prospecção Estratégica do Sistema de Saúde Brasileiro”. O neodesenvolvimentismo se apresentava como uma das possibilidades de crescimento do país, havia quase uma euforia. Hoje, vivemos uma conjuntura mais complexa, que pode levar a um pessimismo exagerado em relação ao futuro. Então, independentemente da qualidade dos cenários prospectados, é preciso olhar para o futuro com muita tranquilidade e com a consciência de que tendência não é destino. É preciso identificar as tendências de longo prazo e prospectar os cenários futuros para que os atores políticos e sociais tenham um horizonte estratégico de atuação, conduzindo suas decisões e ações em direção a um ou outro cenário. Isso é fazer política em perspectiva histórica.

 O senhor aponta três grandes projetos ideológicos atualmente em disputa na Saúde: mercantilista, racionalizador e democrático. Quais as tendências para cada um deles no horizonte dos próximos 20 anos?

No início dos anos 2000, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre as então futuras tendências do sistema de saúde brasileiro apontava a emergência de um setor misto, com uma complexa articulação entre o público e o privado. Coordenada pelo professor Sergio Piola, a pesquisa aplicou a técnica Delphi para construir consensos a partir das percepções de representantes de diferentes segmentos da sociedade. Algumas proposições defendiam que o direito à saúde seria reconhecido, ainda que problemas viessem a ocorrer em relação ao acesso, à qualidade e à segurança dos pacientes. Este é um estudo importante porque antecipou muitas questões com as quais viemos a lidar dez anos depois. Falava-se muito da possibilidade de avançar na promoção da saúde. Infelizmente não avançamos tanto, mas formulamos a Política Nacional de Promoção da Saúde, criamos a Comissão Nacional dos Determinantes Sociais da Saúde e o tema finalmente entrou na agenda nacional. Tudo isso se aproxima muito do que foi previsto no estudo. Em 2004, realizamos outro estudo com essas características, porém, a partir de uma amostra representativa da população brasileira. Embora um pouco mais otimista, os cenários indicavam novamente a sobreposição dos sistemas público e privado de saúde.

A mesma tendência se coloca para os próximos 20 anos: a tensão entre o público e o privado. O projeto mercantilista estará muito presente, ao lado da proposta do SUS, defendida pelo projeto democrático, incluindo as políticas racionalizadoras, que estariam ligadas ao projeto intermediário. Esperamos, portanto, uma mistura dos três projetos, com o predomínio do projeto mercantilista, convivendo com a luta contra-hegemônica do projeto democrático. Isso transcende o contexto brasileiro. A ofensiva do capital financeiro a todos os setores da sociedade, inclusive à Saúde, é uma tendência global que vem se consolidando, especialmente na América Latina, desde 2008.

Como este processo veio culminar, no Brasil, na abertura do setor Saúde ao capital estrangeiro?

 Quais os cenários para as próximas décadas?

A abertura do setor Saúde ao capital estrangeiro é um indicador direto do fortalecimento de um projeto mercantilista para a Saúde. As fusões de inúmeras operadoras brasileiras de planos de saúde com empresas estrangeiras comprovam isso. Este processo está no lastro da política de saúde e, inevitavelmente, influenciará importantes decisões e criará um conjunto de articulações políticas para dar sustentação ao projeto mercantilista. Portanto, considerando o horizonte dos próximos 20 anos, precisamos estar atentos à ameaça de americanizar o nosso sistema de saúde – o que significaria transformar o setor em um conglomerado de empresas prestadoras de serviços. A favor do SUS existem mecanismos constitucionais que não foram alterados.  Portanto, está garantida, por lei, a atenção à saúde da população não vinculada aos planos de saúde. No entanto, esta seria uma ação supletiva do Estado, complementar ao mercado privado, e não uma ação constitucional em defesa de um direito social.

No Brasil essa dinâmica pode levar a uma situação dramática. O país abriga uma população pobre muito grande, milhões de pessoas que não têm condições de pagar por um plano de saúde. Portanto, é possível que muitas forças venham, novamente, reivindicar a saúde como um direito de todos e um dever do Estado. Esta é a nossa esperança para avançar na construção de um sistema público de saúde, universal, gratuito e de qualidade, que dê conta de um perfil epidemiológico tão complexo como o que está se apresentando para o Brasil, com o envelhecimento da população, a emergência de doenças crônicas não transmissíveis e o aumento do número de mortes e internações por acidentes e violências.

 Nesse contexto, quais as perspectivas futuras para o financiamento setorial?

O cenário é desafiador e o projeto democrático da Saúde vem sofrendo sucessivas derrotas políticas, como a rejeição da Emenda Popular Saúde +10, o fortalecimento da agenda do orçamento impositivo, a obrigatoriedade de planos privados de Saúde para empregados, exceto as domésticas, e a aprovação da Desvinculação de Receitas da União (DRU), do Estado (DRE) e dos Municípios (DRM) pelo Senado em primeiro turno. Além disso, não há previsão de crescimento econômico para os próximos dois anos. Portanto, sobretudo diante da conturbada situação política do país, não há nenhum sinal favorável ao financiamento da Saúde nos moldes da legislação atual.

Em outras palavras, atualmente não há nenhum indicativo ou esperança para a superação do subfinanciamento da Saúde, pelo menos nos próximos dois anos. Com novas eleições em 2018, é possível que outras forças sociais se imponham de maneira favorável ao SUS. Com a retomada do crescimento econômico, é possível que alternativas de financiamento setorial sejam implementadas. Até que ao menos uma dessas possibilidades se concretize não há perspectivas para equacionar a provisão de recursos para a Saúde e para o desenvolvimento e fortalecimento de políticas sociais, dentre elas, o SUS. Portanto, o cenário de curto prazo, no horizonte dos próximos dois anos, é muito mais preocupante do que o que vivemos no início da década de 1990.

Existem muitas críticas em relação à atuação do SUS como um apoio estatal à Saúde Suplementar. Como este modelo ameaça os princípios de Universalidade, Equidade e Integralidade, garantidos pela Constituição Federal?

Vivemos um “simulacro do SUS”, que não foi criado pela crise atual. Ele vem sendo engendrado por todos os governos que se seguiram à promulgação da Constituição Federal de 1988. A imagem do SUS como um sistema de saúde voltado para a população pobre, que não pode pagar por um plano de saúde, já vem sendo construída há tempos. Na minha visão, esta perspectiva irá se fortalecer ainda mais nos próximos anos. Eu não acredito que o SUS será extinto. Mas assistiremos – já estamos assistindo – ao seu desmonte e à construção de um simulacro, uma lembrança do que deveria ser o SUS. Este “simulacro do SUS” atende a um conjunto de interesses políticos, econômicos e partidários que contribui para a acumulação de capital e a formação de monopólios e oligopólios na Saúde, assim como em todos os setores da sociedade. As indústrias farmacêuticas e de equipamentos precisam do SUS como mercado consumidor. As empreiteiras precisam da expansão do setor público para construir hospitais, por exemplo. Tudo isso é muito rentável. Portanto, algum SUS ainda vai existir. Mas certamente será algo muito diferente do modelo defendido pela Reforma Sanitária Brasileira e pela Constituição Federal.

Que ações e políticas podem ser realizadas no presente para reverter este quadro e garantir a sustentabilidade do SUS conforme previsto na Constituição Federal?

Os movimentos que ocorreram durante as Jornadas de Junho, em 2013, sinalizaram diversas possibilidades de atuação, tanto pela esquerda quanto pela extrema direita. É possível que muitos desdobramentos se realizem nos próximos anos, inclusive o aprofundamento das lutas em função das primeiras medidas de um outro governo que venha a substituir uma presidente eleita democraticamente por 54 milhões de brasileiros. A perspectiva é que, nos próximos dois anos, o país passe por uma situação dramática no que diz respeito à polarização de forças ideológicas e políticas. Eu espero que tudo isso leve os cidadãos brasileiros a entenderem que não basta assinar manifestos ou posicionar-se em redes sociais online. Além de ir para a rua, é fundamental nos organizarmos politicamente, enquanto sujeitos coletivos, para que possamos intervir democraticamente sobre os rumos do país.

Bel Levy
Saúde Amanhã
09/05/2016