O papel da esfera federal no SUS

Consolidar um sistema de saúde de fato universal e igualitário requer uma profunda reconfiguração da atuação do Estado nas três esferas de governo. Essa é a avaliação de Cristiani Vieira Machado, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Autora do artigo “O papel federal no sistema de saúde brasileiro”, publicado no terceiro volume do livro “A Saúde no Brasil em 2030: Diretrizes para a Prospecção Estratégica do Sistema de Saúde Brasileiro”, ela estuda políticas de saúde contemporâneas, com ênfase na política nacional e sua relação com o contexto internacional. Nesta entrevista, ela analisa o papel federal no sistema de saúde brasileiro e assegura: “A descentralização político-administrativa na Saúde implica mudanças na atuação estratégica do Governo Federal”.

Como a questão do papel federal no sistema de saúde brasileiro é tratada pelo projeto Brasil Saúde Amanhã?

É muito interessante participar do exercício prospectivo proposto pelo projeto Brasil Saúde Amanhã, para reflexão sobre os desafios de reconfiguração do papel federal na Saúde, à luz dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). O nosso estudo partiu do pressuposto de que a esfera federal tem um papel positivo e primordial na consolidação do SUS para identificar finalidades e desafios da atuação federal e esboçar cenários preliminares para 2030.

Primeiro, identificamos quatro finalidades da atuação federal no sistema de saúde: a luta para reconhecimento do setor Saúde como protagonista do modelo de desenvolvimento do país; a garantia, pelo Estado, da melhoria das condições de vida e saúde da população brasileira em todo o território nacional; a redução das desigualdades em saúde em suas várias dimensões; e a coordenação federativa das políticas de Saúde. Partindo dessas finalidades, analisamos a atuação do Ministério da Saúde considerando seus campos de atuação – Atenção à Saúde; Vigilância Epidemiológica; Vigilância Sanitária; Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos; e Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde – e suas macrofunções de Estado: planejamento, financiamento, regulação e prestação direta de serviços.

A partir desses dois eixos – campos de atuação e macrofunções de Estado – e considerando o propósito de consolidação do SUS, esboçamos em um primeiro momento um cenário otimista, porém pouco provável, para 2030. O processo de descrição deste cenário evidenciou problemas e desafios que, caso não sejam enfrentados, tornarão mais provável a configuração de um cenário conservador no horizonte temporal da pesquisa. Daí podemos inferir quais são as políticas públicas necessárias no presente para conquistarmos um melhor cenário no futuro.

Devemos considerar que o planejamento da política de Saúde requer explicitar o projeto que se pretende consolidar. Se assumirmos que esse projeto é o SUS, ou seja, é de fato o fortalecimento de um sistema de saúde público, universal, de base igualitária, cabe explicitar quais seriam as finalidades e desafios estratégicos da atuação federal para consolidar esse projeto em médio e longo prazo. O exercício de construção de cenários prospectivos pode ajudar a vislumbrar o cenário ideal a ser perseguido (o cenário otimista), identificar os pontos críticos (que se expressam de forma adversa nos cenários conservador e pessimista) e propor de forma mais sistemática estratégias para seu enfrentamento.

Como podem ser descritas essas quatro finalidades da atuação federal no sistema de saúde?

A primeira é a luta pela inserção da Saúde em um novo modelo de desenvolvimento econômico e social, orientado pela ampliação do bem-estar da população. Isso requer a conformação de um sistema de proteção social abrangente, baseado em valores de igualdade e de direitos sociais de cidadania amplos, que articule políticas universais sólidas e políticas de redução da pobreza e das desigualdades. Mais do que isso, requer que a proteção social tenha centralidade no modelo de desenvolvimento, de forma que a lógica da redistribuição se imponha sobre a do crescimento econômico (e não seja apenas condicionada ou subordinada aos interesses econômicos).

A segunda finalidade concerne à garantia, pelo Estado, da melhoria das condições de saúde da população no território nacional, considerando a situação atual e o cenário de mudanças demográficas e epidemiológicas para as próximas duas décadas. Isso exige lidar com os determinantes sociais da saúde, por meio de políticas públicas articuladas, envolvendo emprego, saúde, saneamento, educação, previdência, assistência social. E requer, ainda, políticas nacionais de Saúde voltadas para o fortalecimento da promoção, prevenção, tratamento e reabilitação dos mais diversos agravos, junto a variados grupos populacionais. Ainda que a execução de muitas dessas políticas possa estar sob responsabilidade estadual ou municipal, cabe à esfera federal assegurar condições adequadas para o seu desenvolvimento e expansão, em termos políticos, financeiros, tecnológicos e institucionais.

A terceira finalidade diz respeito à busca de redução das desigualdades em saúde em suas várias dimensões – financiamento, acesso, uso, qualidade, situação de saúde – no âmbito territorial e entre grupos sociais, dadas as características da sociedade e do sistema de saúde brasileiro. Sabe-se que as marcantes desigualdades em saúde refletem determinações histórico-estruturais, políticas e sociais amplas e que também expressam a trajetória da política de saúde brasileira anterior ao SUS. Direcionar a política nacional para a redução das desigualdades requer planejamento de longo prazo, realização de investimentos federais expressivos associados a políticas regionais e a mudança dos propósitos e do modelo de regulação estatal sobre os agentes privados, com restrição do seu escopo de atuação.

A quarta finalidade de atuação do Ministério da Saúde identificada no estudo concerne à coordenação federativa das políticas de Saúde. As características da federação brasileira, o peso importante do Executivo federal e as transformações das últimas décadas relacionadas à descentralização político-administrativa impõem novos desafios à articulação entre as esferas federal, estadual e municipal para consolidar políticas de saúde coerentes com os princípios do SUS e os valores de cidadania nacional.

De que forma o cenário político e econômico global pode impactar na organização da política nacional de saúde?

Nas últimas décadas, observamos um rico debate internacional sobre transformações dos Estados, relacionadas a mudanças no capitalismo e na geopolítica mundial, temas tratados no primeiro livro da série “Saúde no Brasil 2030”. Essas transformações têm repercussões sobre as possibilidades e limites de governabilidade dos Estados Nacionais, bem como para a difusão e incorporação de agendas de reforma nos países, que muitas vezes são desfavoráveis à configuração de modelos de desenvolvimento mais distributivos e políticas sociais voltadas para a promoção da igualdade. Isso afeta os países da periferia do capitalismo, como os latino-americanos.

A Saúde representa um setor economicamente relevante que mobiliza fortes interesses industriais e financeiros, nos planos nacional e internacional. Muitas indústrias da Saúde são oligopólios, que buscam controlar e expandir seus mercados e lucros. Em países com economias dinâmicas, populosos, porém, desiguais, como o Brasil, esses interesses se manifestam fortemente. Indústrias de medicamentos, empresas de seguros e planos de saúde, ou mesmo de prestação de serviços de saúde, pressionam o setor o tempo todo. Aí esbarramos nas contradições de buscar consolidar um sistema de saúde público e universal no contexto de um país capitalista relativamente dinâmico. Esse processo afeta a configuração do sistema de saúde em todos os níveis, das suas características nacionais, às práticas de saúde exercidas na ponta, na unidade básica de saúde.

Sabemos que o Brasil é um país complexo, de dimensão continental, territorialmente heterogêneo e extremamente desigual. O sistema de saúde brasileiro apresenta problemas histórico-estruturais graves, que não foram equacionados nesses 25 anos de implementação do SUS, como sérias distorções nas relações público-privadas em Saúde. Nesse cenário, consolidar um sistema de saúde de fato universal e igualitário requer uma profunda reconfiguração da atuação do Estado nas três esferas de governo, com estratégias de curto, médio e longo prazo. A descentralização político-administrativa na saúde implica mudanças na atuação estratégica do governo federal. O processo de democratização também exige mudanças nas relações Estado-sociedade, com maior diálogo e participação dos diversos grupos sociais na construção das políticas. Isso não é trivial.

Como é possível encarar os desafios impostos tanto pela conjuntura global quanto pelo contexto nacional?

Os municípios isoladamente não conseguem enfrentar esses problemas estruturais. Se levarmos a sério o desafio de construir um SUS conforme consta na Constituição Brasileira, a luta política precisa ser travada desde a esfera federal. Existem diferentes projetos em disputa para o sistema de saúde no Brasil. O SUS – compreendido como projeto político, no sentido delineado pelo movimento da reforma sanitária e inscrito na Constituição – é um deles. O Ministério da Saúde, como autoridade sanitária nacional, deveria representar os interesses coletivos (que a proposta do SUS pretende abarcar) e enfrentar os conflitos de interesse em uma perspectiva estratégica e de longo prazo. A análise das decisões, da agenda e da atuação do Ministério da Saúde é relevante para a compreensão do sentido de suas ações, do projeto de sistema de saúde que se quer consolidar no país.

Temos agora um exemplo emblemático das contradições a serem enfrentadas: a promulgação da Lei 13.097, que autoriza a entrada de capital estrangeiro na saúde, em vários âmbitos, o que colide com a Constituição. O Ministro da Saúde foi ao Conselho Nacional de Saúde e defendeu a referida Lei sob o argumento de que o controle do capital estrangeiro, inclusive sobre prestadores de serviços, já estava ocorrendo e precisa ser regulado. Essa é, no mínimo, uma resposta defensiva e frágil em termos de visão estratégica de longo prazo. Ou seja, tal processo já estava ocorrendo, de forma contrária à Constituição, e durante duas décadas o Governo Federal não fez nada para obstruir esse processo. Agora fez uma lei para legitimar essa distorção. Para explicar esse tipo de posicionamento oficial do Ministério da Saúde, considerando a literatura de planejamento estratégico, podemos ter três hipóteses: limites de governabilidade; limites de capacidade institucional; ou orientação de projeto político em um determinado sentido.

O cenário global, portanto, é extremamente importante e, sem dúvida, impõe limites aos Estados Nacionais. Porém, a literatura histórico-comparativa sobre políticas sociais mostra que, na realidade, o mais importante é compreender a dinâmica das relações entre processos/influências internacionais e os processos/singularidades políticas nacionais. Isso porque a implementação de políticas nacionais, em última análise, mobiliza interesses e atores nacionais, cuja adesão, apoio ou atuação é necessária para que elas se concretizem. A política nacional importa.

Marina Schneider
Saúde Amanhã
23/02/2015