Os desafios da economia para a Saúde

“A Saúde precisará fazer mais, com menos”. Esta é a conclusão do economista Salvador Werneck Vianna, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e colaborador do projeto Brasil Saúde Amanhã. Tendo a economia brasileira como eixo central de suas pesquisas, Vianna dedica-se também a estudos sobre  Instituições, Democracia e Estado – termos que dão nome à diretoria a que está vinculado no Ipea. Ao lado do professor Aloisio Teixeira (que veio a falecer precocemente em 2013), Vianna é autor do capítulo “Cenários macroeconômicos no horizonte 2022/2030”, publicado no primeiro volume do livro “A saúde no Brasil em 2030: prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro”. O pesquisador também assina o artigo “Qual o padrão de desenvolvimento? Cenários macroeconômicos no longo prazo”, que integrará o segundo volume do livro, a ser lançado pela Editora Fiocruz no segundo semestre de 2015. Nesta entrevista, ele faz um retrospecto sobre a economia brasileira desde a Constituição Federal de 1988, que cria o Sistema Único de Saúde (SUS), e discute as variáveis macroeconômicas que podem impactar o futuro do sistema de saúde brasileiro.

 Como o senhor avalia a relação entre Economia e Saúde?

 É difícil compartimentalizar esses setores: a Economia engloba todo o tecido social e a Saúde, além de representar um importante ator no cenário macroeconômico do país, permeia, também, toda a nossa cadeia produtiva. Por isso, a relação entre Saúde e Economia é mútua – e intensa. Tanto as condições macroeconômicas de uma determinada sociedade influenciam a configuração de seu setor Saúde, como também as vicissitudes deste setor impactam o que convencionamos chamar de Política Macroeconômica.

 Uma sociedade com infraestrutura urbana adequada, com acesso universal da população a sistemas de esgoto e água encanada, será uma sociedade com menos demandas por atendimento de doenças relacionadas a essas condições de desenvolvimento. Portanto, em uma sociedade como esta, as demandas do setor Saúde se refletirão de forma positiva no agregado macroeconômico, o que resultará em dispêndios menores do setor público para custear o atendimento a doenças associadas a deficiências na infraestrutura urbana.

 É uma relação de mão dupla. Quanto mais robustas e bem equacionadas estiverem as condições macroeconômicas melhor será a capacidade do Estado prover  serviços públicos, em particular Saúde e Educação, de forma mais satisfatória para a população. E um quadro macroeconômico favorável significa um Estado com setor público eficiente, com o uso eficaz de seus recursos e uma economia equilibrada e estável – tanto do ponto de vista monetário e  financeiro quanto de seu setor externo.

  Como esta relação é tratada no projeto Brasil Saúde Amanhã?

 Desde a primeira fase do projeto Brasil Saúde Amanhã, desenvolvemos uma análise macroeconômica para construir cenários de longo prazo para a economia brasileira, como subsídio a este esforço mais amplo do setor Saúde de criar as bases para um planejamento mais eficaz de saúde pública. Agora, aprofundamos este estudo.

 Em Economia, as projeções mais comuns, por exemplo, as utilizadas pelo mercado financeiro, são as de curto prazo. Para isso, utilizam-se informações disponíveis até o momento e realizam-se extrapolações, com base na realidade até então observada. O que se faz, basicamente, é introduzir alguns parâmetros à análise, da forma mais adequada possível à realidade. Isso significa assumir hipóteses para o comportamento de variáveis relevantes no cenário estudado. E a partir de modelos matemáticos razoavelmente sofisticados podemos fazer as projeções para o futuro, por meio de modelos estatísticos.

 Na primeira fase de nosso trabalho junto ao projeto Brasil Saúde Amanhã, o saudoso professor Aloisio Teixeira propôs a metodologia inversa, para que pudéssemos prospectar o futuro em um horizonte de 20 anos. Isso foi necessário porque os modelos estatísticos tradicionalmente utilizados pela Economia para prever cenários de curto prazo não dão conta de calibrar as variáveis referentes a um cenário de longo prazo como este.

 Supondo três cenários – um pessimista, um otimista e um meio-termo –, estabelecemos os valores para as variáveis que definimos como relevantes em nosso cenário atual: renda per capita, contas externas, contas públicas, taxa de câmbio, taxa de juros, dentre outras. E fizemos o caminho inverso: se hoje temos uma renda per capita em torno de vinte mil reais, o nosso cenário otimista dobra este indicador. Então, se neste horizonte temporal queremos ter uma renda per capita de 40 mil reais, qual seria a trajetória necessária para atingir este patamar?

 Como este tipo de estudo contribui para o planejamento de políticas públicas mais eficazes?

 Convencionalmente, em geopolítica, avalia-se uma nação em termos de sua capacidade em três setores estratégicos: Defesa (que define a proteção do território), Agricultura (que envolve a produção de alimentos) e Energia. Modernamente, podemos adicionar outros dois eixos, que são vitais do ponto de vista de uma estratégia de desenvolvimento nacional: Saúde e Educação. No Brasil, felizmente, não há a urgência de termos um setor militar extremamente desenvolvido, pelo simples motivo de que não precisamos disso. Temos extensas fronteiras terrestres com nossos diversos vizinhos e não temos conflito com nenhum deles. Podemos nos orgulhar disso. O nosso setor energético, por sua vez, é robusto, em que pesem problemas circunstanciais. E o setor agrícola é forte.

O setor Saúde é tão estratégico como estes, por ser responsável pelo bem-estar da população – o que está diretamente relacionado aos seus níveis de segurança. E, para o funcionamento eficaz, eficiente e adequado desses setores, inclusive na provisão do setor público, como é o caso brasileiro, é necessário planejamento – e planejamento de longo prazo.  O setor agrícola, que é forte no Brasil, deve boa parte de seu sucesso ao planejamento e investimento do setor público, por exemplo, por meio da criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), na década de 1970. Não foi do dia para a noite que a Embrapa desenvolveu sementes de soja para o cerrado: houve planejamento e houve investimento.

 Mas nós perdemos esta expertise de planejamento em longo prazo nos anos 1990. A crise fiscal do setor público foi tal que atingiu inclusive os elementos do setor público dedicados ao planejamento – o próprio Ipea quase foi extinto nos anos 1990.  Isso explica em grande parte problemas  que enfrentamos há mais de dez anos, por exemplo, no setor de Energia. Neste sentido, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) desenvolve um trabalho muito importante, inovador e de muita inteligência, ao propor um planejamento de longo prazo para as ações necessárias para o setor Saúde enfrentar os seus desafios – o que é inevitável.

 Quais os impactos desta crise fiscal dos anos 1990 para a economia brasileira hoje e, consequentemente, para o setor Saúde?

 Em países como o Brasil assistimos  ao crescimento muito acelerado da dimensão de mercadoria do setor Saúde. Segundo a Constituição Federal de 1988, não era para ser assim. O texto constitucional cria um sistema universal, que deve estar disponível para todas as pessoas, de todas as classes sociais. Porém, na  década de 1990, no período imediato pós-Constituição, vivemos uma crise muito intensa no setor público, de muita deterioração, perda de recursos e sucateamento da Educação e da Saúde. Com isso, a partir desse período, tivemos uma migração das classes média e alta – que no Brasil somam um contingente de dezenas de milhões de pessoas – para o setor privado de assistência à saúde. A tendência de crescimento do mercado privado de saúde é clara: atualmente, o “plano de saúde” é visto quase como um bem de primeira necessidade, e essa perspectiva perpassa praticamente todos os setores sociais.

 Nos Estados Unidos, onde a assistência à saúde é essencialmente privada, os benefícios associados à atenção à saúde são aspectos cruciais a serem considerados por uma pessoa em busca de emprego. No Brasil, isso é uma tendência que vem se exacerbando nos últimos 20 anos e é o embrião da transformação do setor Saúde em mercadoria – e uma mercadoria de alto valor – que começa, também, a revelar “subprodutos”. Um deles é o da biotecnologia. Hoje, o Brasil tem um vasto manancial de matérias-primas ainda inexploradas, com muitos princípios ativos ainda desconhecidos, em particular na Amazônia. E a tendência é a organização de megaconglomerados para dominar esses setores.

 Além disso, o setor farmacêutico brasileiro é um caso à parte, que está a merecer um  estudo mais aprofundado. É um dos segmentos mais lucrativos do comércio brasileiro, a ponto de uma gigante norte-americana estar interessada em comprar uma das maiores redes de drogarias do Brasil. Isso mostra a força deste mercado no Brasil. É importante observar os desafios que todo este contexto coloca à gestão pública do setor Saúde: como prover um sistema universal de saúde em uma sociedade já tão fragmentada, que está utilizando cada vez mais os serviços privados de saúde?

 Quais são os desafios macroeconômicos que o Brasil virá a enfrentar e como o setor Saúde pode se preparar para este contexto?

 Os desafios são muitos. Principalmente porque, em comparação ao que está acontecendo agora, podemos considerar até como relativamente benigno , no curto prazo, o cenário que traçamos como pessimista para a economia brasileira no horizonte dos próximos 20 anos. Houve uma deterioração intensa dos indicadores macroeconômicos no período recente, desde a produção do artigo, uma deterioração de tal monta que torna os dados pessimistas razoáveis. Vamos conviver com crescimento econômico próximo a zero durante dois ou três anos, com um aperto fiscal forte e uma inflação que deve aumentar por conta das questões relacionadas ao câmbio. Não vai ser fácil.

 Este é o tipo de situação que não podemos prever com estudos prospectivos. Trata-se do imponderável, como esta longa estiagem, que afeta não só a vida das famílias, mas também das empresas e indústrias. Isso tem reflexos macroeconômicos claros, desde o aumento da inflação até a diminuição da atividade industrial, forçada pelo racionamento de água e energia.

 Para o setor Saúde, em curto prazo, está previsto um corte de gastos profundo. Está dado que enfrentaremos uma redução na provisão de recursos pelo setor público. Um setor que já vive e convive com a escassez de recursos e tem problemas em consequência disso terá que fazer mais com menos. Devem se aprofundar, portanto, as questões envolvendo o financiamento setorial da Saúde. Em relação ao médio prazo podemos ter um olhar relativamente otimista, desenhado por movimentos como este da Fiocruz, de promover estudos perpassando diversas áreas do conhecimento para chegar a uma solução possível.

 Uma instituição como essa tem o dever – e a Fiocruz o cumpre – de ser a condutora do discurso de uma sociedade que cada vez tem mais clareza sobre a necessidade de um sistema de saúde eficaz. Essas ações de planejamento e mobilização de diversas áreas do conhecimento dá robustez às questões e demandas do setor Saúde que precisam ser vocalizadas e isso nos ajuda a dar consistência e visibilidade às demandas de um setor tão importante para a nação. Quando a provisão pública de serviços de saúde é bem feita, o impacto sobre o bem-estar da população é muito grande. Por isso, acreditamos que no médio prazo – até mesmo por uma questão financeira – a população, em particular as camadas médias, vai voltar a usar os serviços públicos, tanto de Saúde quanto de Educação, e isto pode vir a gerar pressões positivas no sentido da melhora da qualidade dos mesmos.

Bel Levy
Saúde Amanhã
09/02/2015