Por um SUS forte, inovador e para todos

“Temos a pretensão de construir um sistema de saúde público e universal com um padrão de financiamento que tem privilegiado a mercantilização do acesso à saúde”. O alerta é do economista Hudson Pacífico, pesquisador do Instituto de Pesquisa em Saúde Pública da Universidade de Montreal, no Canadá, e membro do projeto Região e Redes. Como colaborador da iniciativa Brasil Saúde Amanhã, Hudson assina, junto aos pesquisadores Ana Luiza Viana e Alcides Miranda, o Texto para Discussão “Segmentos institucionais de gestão em Saúde: descrição, tendências e cenários prospectivos”. Nesta entrevista, ele aborda as tendências futuras e os desafios para a incorporação de tecnologias pelo setor Saúde e a garantia da universalidade e equidade do Sistema Único de Saúde (SUS). “Para um futuro mais otimista, é necessário fortalecer as características do arranjo institucional público e nacional, que estão na base da proposta de construção do SUS”, defende.

Brasil vive um processo de envelhecimento populacional e transição demográfica que tende a se intensificar. Quais os impactos deste cenário para o SUS, no que diz respeito à demanda por novas tecnologias?

O Brasil ainda atravessa a fase em que a população de jovens e adultos cresce mais rapidamente do que a chamada população “dependente” – basicamente crianças e idosos. Esse período corresponde ao que se convencionou chamar de “bônus ou dividendo demográfico”, quando há proporcionalmente mais pessoas situadas na faixa etária com maior probabilidade de exercer atividade econômica e, portanto, produzir mais do que consome. Entretanto, esse período de condições demográficas favoráveis tende a desaparecer, inaugurando uma nova fase, na qual a população idosa passa a predominar no grupo “dependente”. De acordo com as projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), essa virada deve acontecer por volta de 2030. Do ponto de vista epidemiológico, nos últimos 30 anos houve mudanças importantes no perfil brasileiro de mortalidade, com queda na proporção de óbitos por doenças infecciosas e aumento nos índices de mortes por neoplasias, causas externas e doenças dos aparelhos circulatório e respiratório, além da emergência e reemergência de algumas doenças infecciosas, como dengue e HIV/Aids. Nesse cenário, a demanda por novas tecnologias tende a ser crescente. São novos medicamentos, novos dispositivos e equipamentos médico-hospitalares, novos materiais, novas vacinas.

Todas essas demandas chegam aos serviços de saúde de diferentes formas: por influência das empresas que fabricam tecnologias; pelos médicos que desejam trabalhar com as últimas novidades do seu campo de especialização; pela agenda de pesquisa dos hospitais universitários; pelas reivindicações das associações de pacientes; e, mais recentemente, pela interferência do poder judiciário na Saúde. Tudo isso em um sistema de saúde que, ao mesmo tempo em que se comprome com a universalidade e a equidade do acesso e com o atendimento integral aos pacientes, é altamente fragmentado, subfinanciado e com múltiplas relações entre o público e o privado. O desafio é enorme porque, apesar de todos os esforços para conferir maior racionalidade ao processo de incorporação de tecnologias no SUS, uma parte relevante dessas tecnologias chega aos serviços de saúde por outros caminhos, isto é, passa por fora dos processos formalmente instituídos de avaliação e aquisição.

Quais os desafios técnicos, financeiros e de gestão para a incorporação de tecnologias pelos serviços de saúde, de forma alinhada aos princípios do SUS?

Os desafios técnicos referem-se, principalmente, à capacidade do Estado e do sistema de saúde tomarem decisões sobre o emprego de diferentes tecnologias – decisões que devem ser baseadas em evidências científicas; em critérios de segurança, eficácia, efetividade e custos; e nos impactos de curto, médio e longo prazo para a população. Outras questões estão relacionadas ao impacto orçamentário provocado pela incorporação de novas tecnologias. Embora algumas delas possam contribuir para reduzir o custo dos serviços de saúde, a tendência geral é de pressão sobre os gastos públicos, por várias razões: novas tecnologias tendem a complementar ao invés de substituir as tecnologias existentes; problemas de saúde passam a ser diagnosticados e tratados com métodos mais caros; novos tratamentos são introduzidos para problemas de saúde que antes eram negligenciados; e novas tecnologias demandam profissionais mais qualificados. Em relação à gestão, podemos mencionar o desenvolvimento de uma cultura baseada em evidência, que hoje ainda é bastante incipiente entre os gestores do SUS, a criação de mecanismos para lidar melhor com o fenômeno da judicialização e a construção de uma governança regional capaz de integrar efetivamente os diversos componentes do sistema de saúde.

Em outras palavras, além dos resultados clínicos, é necessário considerar várias outras questões igualmente pertinentes. A tecnologia busca solucionar uma necessidade de saúde importante em função do perfil epidemiológico da população brasileira? Qual será o impacto dessa incorporação no orçamento da Saúde e quais programas serão afetados com corte ou ampliação de recursos? Quem serão os beneficiários dessa tecnologia e em quais circunstâncias o acesso será garantido? Como essa tecnologia está inserida no esforço nacional de desenvolvimento? Que valores sociais a tecnologia reforça? Quais são as implicações éticas decorrentes do uso dessa tecnologia? E os impactos para o meio ambiente?

Como este processo pode impactar, positiva e negativamente, a universalidade, a equidade e a regionalização do SUS, em médio e longo prazo?

Tudo depende de como as novas tecnologias serão incorporadas – e, sobretudo, da definição de quais recursos serão priorizados. Se esse processo for realizado de forma acrítica, sem considerar as necessidades de saúde da população, das regiões e as evidências disponíveis sobre as implicações clínicas, econômicas, sociais, culturais, éticas e ambientais das tecnologias, os riscos podem ser enormes, tanto do ponto de vista individual como do coletivo. Certamente, há um longo caminho a ser percorrido para a efetivação das redes regionalizadas de atenção à saúde no país. De acordo com a Constituição Federal de 1988, a descentralização dos serviços de saúde, o atendimento integral aos indivíduos e a participação da comunidade nos processos de tomada de decisões constituem diretrizes do SUS, cujas ações e serviços devem integrar uma rede regionalizada e hierarquizada. Como resultado da descentralização das ações e serviços de saúde para estados e municípios, temos hoje milhares de sistemas de saúde localizados, com grande fragmentação e baixa resolutividade. Então, um dos desafios é formar a tal rede regionalizada de saúde no âmbito do SUS, de modo a integrar os diferentes serviços existentes no território e garantir o atendimento integral, com qualidade.

No entanto, a regionalização do SUS é um fenômeno complexo, ainda em construção e que possui diversos condicionantes, de ordem histórico-estrutural, político-institucional e conjuntural. Isso significa que o processo de regionalização e conformação das redes de atenção à saúde deve considerar, entre outros aspectos, a multiplicidade de atores envolvidos no financiamento setorial, na gestão e na prestação de serviços de saúde, assim como as imensas desigualdades existentes no território brasileiro. Ao que tudo indica, os resultados ainda são tímidos. De acordo com uma pesquisa recente realizada com gestores municipais de saúde de todo o país, no âmbito do projeto Região e Redes, a atenção de urgência e emergência, a atenção psicossocial, a atenção ambulatorial especializada e a atenção hospitalar são áreas que apresentam grandes desafios na oferta e qualidade das ações e serviços. Também foram relatados muitos desafios relacionados à organização das redes de atenção à saúde, como o fluxo de informação, a continuidade do cuidado, a participação do gestor estadual no processo de regionalização e a própria configuração das redes.

Que políticas públicas e industriais podem vir a fomentar o desenvolvimento, a produção e a incorporação de novas tecnologias pelo SUS nas próximas décadas?

Diversas políticas públicas de fomento à pesquisa, ao desenvolvimento e à produção de tecnologias foram implementadas pelo governo brasileiro nos últimos anos, com resultados variados. Alguns exemplos são a criação do Programa de Investimento no Complexo Industrial da Saúde (Procis) e as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP) entre instituições públicas e entidades privadas, para a resposta estratégica ao atendimento das demandas do SUS, com previsão de transferência e absorção de tecnologias. Também é importante mencionar as linhas de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Sustentável (BNDES) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para as empresas que atuam no setor, como o Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde (Profarma) e o Inova Saúde. De forma geral, o objetivo dessas iniciativas é superar o quadro de dependência externa do sistema de saúde e expandir o acesso da população a produtos considerados prioritários.

Um estudo recente da Universidade de Sussex, Inglaterra, apontou que essas iniciativas constituem políticas com relativo sucesso no Brasil, pois reúnem um conjunto importante de características, como a existência de base cientifica e tecnológica, base produtiva nacional, demanda garantida pelo SUS e instrumentos de políticas que podem ser mobilizados para este fim. A mesma pesquisa sinaliza que, com a abertura da Saúde ao capital estrangeiro, a participação do setor privado lucrativo na área hospitalar tende a crescer. A legislação anterior permitia que investimentos estrangeiros fossem realizados em empresas operadoras de planos privados de assistência à saúde, que por sua vez podiam ser donas de hospitais. Então o capital estrangeiro já podia, de forma indireta, atuar na área hospitalar. O problema é que, ao abrir o mercado para o capital estrangeiro, corre-se o risco de ampliar a desigualdade de acesso aos serviços de saúde, na medida em que esses investimentos serão direcionados para expandir o acesso daqueles que podem pagar pelos serviços. Dessa forma, enfatiza-se o arranjo assistencial-produtivo privado e internacional na Saúde, o que torna ainda mais difícil o desafio constitucional de construir um sistema universal e igualitário, no qual todos os cidadãos são cobertos nos mesmos termos e condições.

Diante do atual cenário político e econômico, quais as perspectivas de médio e longo prazo para o projeto de expansão e adequação da oferta de serviços de saúde?

Infelizmente, o atual cenário político e econômico é bastante desfavorável à expansão e à adequação da oferta de serviços públicos de saúde. Para que isso viesse a ocorrer, seria necessário aumentar consideravelmente o aporte de recursos públicos para financiar o SUS. Embora o gasto total com saúde no Brasil seja de aproximadamente 9,5% do PIB, patamar próximo à média dos países de renda elevada, menos da metade desse gasto está na esfera pública. Ou seja, o que predomina no país é o gasto privado com saúde, principalmente com planos de saúde e com a aquisição de medicamentos nas farmácias. Essa realidade é claramente incompatível com o padrão verificado nos países desenvolvidos, em que o patamar de recursos públicos tende a ser superior a 70%. Ao meu ver, estamos no pior dos mundos, pois temos a pretensão de construir um sistema de saúde público e universal com um padrão de financiamento que tem privilegiado a mercantilização do acesso à saúde.

Além disso, as evidências mostram que a política macroeconômica de austeridade fiscal que o governo brasileiro decidiu adotar a partir de 2015 compromete a retomada do crescimento econômico e contribui para ampliar as desigualdades. Soma-se a isso a proposta de desvinculação de recursos mínimos a serem aplicados por estados e municípios em ações e serviços públicos de saúde, o que tende a reduzir ainda mais os recursos para o SUS. Então, a persistir esse cenário político e econômico e esse padrão de financiamento da Saúde nos próximos anos, as perspectivas de médio e longo prazo são as piores possíveis. Em vez de um sistema de saúde universal, integral e de qualidade, teremos a consolidação de um sistema de saúde voltado para os pobres, ou seja, para aqueles que não podem pagar por serviços privados. E um sistema de saúde para os pobres significa, em última instância, um sistema de saúde também pobre.

Quais as perspectivas futuras para as políticas sociais no âmbito de um Estado de bem-estar e de proteção social? 

As políticas sociais têm papel fundamental no desenvolvimento inclusivo, na medida em que melhoram as condições de vida da população e, ao mesmo tempo, contribuem para o crescimento econômico do país, pois são gastos que geram um efeito multiplicador da renda. Isso significa que os recursos públicos investidos em políticas sociais como Saúde, Educação, Previdência e Assistência Social não apenas ampliam a cidadania e a solidariedade social, mas também dinamizam a atividade econômica. A Saúde é um exemplo claro dessa articulação positiva entre o econômico e o social, pois se trata de um setor cujas atividades possuem grande impacto no bem-estar físico e mental das pessoas e também são responsáveis por gerar emprego e renda para uma grande quantidade de profissionais. Investir em políticas sociais universais significa, em última instância, construir uma sociedade mais coesa, dinâmica e solidária, na qual o ethos coletivo prevalece sobre os interesses individuais.

No estudo desenvolvido para a rede Brasil Saúde Amanhã, buscamos prospectar cenários para as políticas sociais no Brasil num horizonte de médio prazo. Nós identificamos três cenários – social-desenvolvimentista, social-liberal e misto – com diferentes institucionalidades, nos quais o papel atribuído ao Estado no processo de desenvolvimento nacional é distinto. Esse documento, escrito em meados do ano passado, dizia que o cenário misto era o mais provável, em função do modelo híbrido de políticas públicas predominante no país, que combina políticas neoliberais e políticas mais intervencionistas, associadas ao pensamento neodesenvolvimentista. Também influenciam o futuro variáveis associadas ao path dependence, que tornam mais difícil a realização de reformas bruscas em áreas que já possuem uma forte institucionalidade, como é o caso da Saúde.

No entanto, a crise econômica e as medidas de austeridade fiscal privilegiadas pelo governo brasileiro, com impactos negativos para as políticas sociais, parecem sinalizar uma trajetória rumo ao cenário social-liberal. Esse cenário, voltado para o mercado e para o autofinanciamento do acesso aos serviços sociais, apoia-se numa concepção residual do Estado, adoção de políticas passivas ou compensatórias para o mercado de trabalho, revisão da política de valorização do salário mínimo, redução dos investimentos públicos na área social e fortalecimento das políticas sociais focalizadas. Em síntese, depois de alguns avanços na última década, as perspectivas de construção de um Estado de Bem-Estar Social parecem cada vez mais distantes.

Que arranjos institucionais podem contribuir para a construção de um cenário de futuro mais otimista para a Saúde?

Existe uma tensão permanente na Saúde em função da coexistência de duas lógicas distintas, que estão associadas a dois arranjos institucionais que articulam atividades de prestação de serviços e atividades de fabricação de insumos e produtos. O primeiro, que se consolidou no início do século XX, tem como características principais o fato de ser público e nacional, isto é, conta com o predomínio de instituições e serviços públicos, financiamento público e baixo grau de dependência externa. Já o segundo arranjo desenvolveu-se junto do modelo de saúde previdenciário, a partir dos anos 1930, e, ao contrário do modelo anterior, possui uma natureza privada e internacional, com financiamento misto, predomínio da oferta de serviços privados (hospitais e laboratórios) e uma cadeia internacionalizada de produtores e fornecedores de insumos, medicamentos e equipamentos médicos.

Na história da política de saúde brasileira, esses arranjos institucionais conviveram lado a lado, mas o predomínio do arranjo público e nacional foi sendo substituído aos poucos pelo arranjo privado internacional. Como resultado, passamos a ter um quadro de grande dependência externa, com déficits crescentes da balança comercial na Saúde, além de grande participação da iniciativa privada na oferta de serviços e nos esquemas de acesso a eles, mediante a consolidação de um dos maiores mercados de planos de saúde do mundo.

Para um futuro mais otimista, é necessário fortalecer as características do arranjo institucional público e nacional, que estão na base da proposta de construção do SUS: um modelo de atenção com predomínio das atividades de prevenção e promoção da saúde; expansão e modernização da rede assistencial pública, principalmente na atenção hospitalar; fortalecimento de programas estratégicos nas áreas de imunização e vigilância; incentivo à produção pública de insumos e produtos prioritários. No entanto, para que esse arranjo venha a prevalecer, é necessário que os diversos segmentos da sociedade concordem com a premissa básica de que a consolidação de um sistema de saúde público e universal é a melhor forma de melhorar a saúde e o bem-estar dos brasileiros. E ao que tudo indica, ainda estamos longe de chegar nesse estágio.

Bel Levy
Saúde Amanhã
13/06/2016