Uma mudança estrutural para a Saúde

“É preciso reorganizar o sistema de saúde para que seja possível ofertar atenção integral aos idosos”. A recomendação é do médico Renato Peixoto Veras, diretor da Universidade Aberta da Terceira Idade (UnATI), ancorada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Nesta entrevista, o médico discute o futuro do sistema de saúde em um cenário em que 26,7% da população brasileira terá mais de 65 anos, conforme previsto para 2060 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para Veras, é fundamental que o Sistema Único de Saúde (SUS) reveja seu modelo de atenção, o financiamento setorial e a formação de recursos humanos, para que seja possível atender as necessidades presentes e futuras de uma população em processo de envelhecimento. “Diante da certeza de que doenças crônicas vão prevalecer entre os idosos, devemos trabalhar no sentido da prevenção desses agravos e da promoção da saúde e do autocuidado”, orienta.

 O Brasil está envelhecendo: em 2060, serão mais de 58 milhões de idosos no país. Como o sistema de saúde deve se preparar para este cenário?

Hoje, o modelo assistencial usual para o idoso é o mesmo aplicado a uma pessoa jovem. No entanto, há uma diferença clara entre os dois grupos: o primeiro já enfrenta duas, três ou quatro doenças crônicas instaladas. Se a lógica for a de tratar todas elas de uma única vez, com remédios, exames e intervenções em hospitais, não há como haver sustentabilidade financeira para o sistema de saúde. É fundamental que tanto o SUS quanto a saúde privada adotem um pensamento diferente, pautado pela antecipação das doenças, pela prevenção. Com ou sem carteirinha de plano de saúde, as pessoas vão ao médico no momento em que elas, leigas, julgam ser o ideal e decidem sozinhas a especialidade a ser consultada.

É preciso reorganizar o sistema de saúde para que seja possível ofertar atenção integral aos idosos. A figura do médico centralizador, que orienta o paciente e reúne todas as informações de seu histórico clínico, é essencial para isso. Copiamos, no Brasil, o modelo norte-americano de fragmentação do corpo humano. Quanto mais especializado for o médico, melhor avaliado ele é. Isso é um erro. Mudar essa cultura, entretanto, vai demorar muito tempo. Enquanto isso, permanecemos em um modelo que gera muita despesa, cuja base é o hospital, os medicamentos e os exames laboratoriais. Em vez de o fato de estarmos vivendo mais significar uma grande conquista, tornou-se um peso no aspecto econômico. Nos Estados Unidos, o setor Saúde custa 2,3 vezes mais que na Inglaterra, que adota uma visão integral do cuidado à saúde, com o médico centralizador.

 Que políticas e ações podem ser realizadas no presente para que, no futuro, o sistema de saúde possa garantir a atenção integral ao idoso?

 Além de adotar um modelo de atenção pautado pela promoção da saúde e a prevenção de doenças, é preciso garantir que o sistema de saúde tenha força de trabalho suficiente para atender esta população, que requer cuidados especiais. O processo de envelhecimento da população se dá muito rapidamente. Há poucos profissionais especializados e, por isso, a formação de recursos humanos nesta área é uma preocupação importante. No Brasil, existem 252 escolas médicas, mas apenas 12 têm  disciplinas de Geriatria em sua grade curricular. Oferecemos na UnATI oportunidades para residência, cursos de pós-graduação, mestrado, doutorado. Como a área é nova, a produção científica também é escassa. Por isso, temos uma linha de pesquisa muito intensa e produzimos a Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, a mais importante do país na área.

A tecnologia pode ser uma grande aliada. E ela não deve estar restrita ao desenvolvimento de equipamentos, materiais ou a especialidades como a biotecnologia e a nanotecnologia. Recursos muito menos complexos podem facilitar e aprimorar o cuidado. Muitas vezes, o paciente chega à consulta sem nenhuma informação sobre o seu histórico clínico – embora já tenha realizado uma infinidade de exames e tratamentos. Todo esse registro poderia estar disponível na nuvem e subsidiar decisões importantes. Não raro, exames são refeitos sem necessidade ou remédios são prescritos por médicos diferentes ao mesmo paciente, sem a devida avaliação sobre interação medicamentosa ou efeitos colaterais. Tudo isso gera riscos para o paciente idoso e custos desnecessários para o sistema de saúde.

Além das questões epidemiológicas, o envelhecimento gera novas configurações sociais, Quais serão as novas demandas para o Estado, o setor Saúde e a sociedade brasileira, no horizonte dos próximos 20 anos?

O tempo do idoso não é só dele; é de toda a família. Muitas vezes, um filho precisa até parar de trabalhar para poder cuidar dos pais. As despesas são elevadas. Os planos de saúde, neste momento, vêm sofrendo reajustes de 15% e, ainda assim, muitas empresas enfrentam problemas financeiros graves. O cenário é insustentável, tanto para o SUS quanto para a iniciativa privada. Se o modelo não mudar, todos vão quebrar. Um setor tão complexo como o da Saúde, que movimenta tantos recursos públicos e privados, precisa se sofisticar em relação à gestão.

O idoso não deve ser visto apenas do ponto de vista médico, clínico. Por isso, a UnATI apresenta-se como um grande centro de convivência destinado a idosos, agradável e leve, sem o cheiro de éter dos hospitais, pelo contrário, preenchido com música, dança e alegria, que também tem um ambulatório com uma equipe multidisciplinar. Essa concepção da UnATI, de mudar a lógica de assistência, funciona muito bem porque é absolutamente diferente do modelo padrão. A necessidade de fazer uma articulação nova é o que explica o grande sucesso do projeto. Mudamos o olhar sobre o idoso, que, ainda hoje, em outras unidades, é tratado como se fosse um paciente adulto ou jovem.

O que é necessário para que em médio e longo prazo o SUS possa adotar esse modelo de atenção?

É possível colocar esse modelo em prática. O primeiro passo é substituir a lógica de medicalização pela da prevenção. Diante da certeza de que doenças crônicas vão prevalecer entre os idosos, devemos trabalhar no sentido da prevenção desses agravos e da promoção da saúde e do autocuidado. É preciso ir além da prescrição de tratamentos e cuidar da saúde. Embora o grupo formado por essa faixa etária seja extremamente heterogêneo, há uma característica comum a ele: é formado por pessoas com mais anos de vida e, por isso, com mais fragilidades que adultos.

A adoção da lógica da prevenção é o que diferencia nossa atuação em relação à medicina tradicional. Considerando como inexorável a tendência de declínio das condições de saúde dos idosos, compreendemos que o papel do médico e de todo profissional de saúde é o de tentar fazer com que essa linha descendente seja o mais tênue possível. Para isso, é fundamental que haja monitoramento, acompanhamento e preenchimento da vida da pessoa com qualidade. As doenças já estão instaladas, por isso, muito mais do que tratar, o objetivo é amenizar, estabilizar. Esse tipo de acompanhamento sobrepõe a lógica medicalizada, que prescreve muitos remédios, muitos exames. Nossa intensidade está direcionada para o cuidado.

Como reverter a lógica da medicalização e colocar a prevenção antes do tratamento?

O idoso não vai à UnATI para ter uma consulta médica. Busca a instituição como centro de convivência, que oferece muitas atividades, entre elas, aulas de idiomas, música, dança. Em meio a tudo isso, ele também conta com atendimento à saúde. A UnATI torna-se, assim, um local protegido para o idoso, onde o médico está inserido em um contexto maior, de valorização do tempo de vida que o idoso terá. Valorizamos muito a multidisciplinaridade na equipe, que inclui enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos. Para dar certo, o mais importante é que todos esses profissionais trabalhem de forma integrada. Isso faz muita diferença porque gera confiança dos idosos em relação à equipe. Essa sensação de segurança faz com que as recomendações tenham mais chances de ser aceitas.

Na UnATI atuamos na perspectiva da redução de danos. Trabalhamos os fatores de risco de modo a não apenas transmitir a informação científica, mas com o objetivo de mexer com o coração das pessoas, mesmo em relação a hábitos desafiadores, como fumar. Temos a preocupação de que o trabalho dê certo para a saúde daquela pessoa que está sendo atendida e não que o médico apenas cumpra o seu papel em relação às recomendações, sem compromisso real com os resultados.

Renata Leite
Saúde Amanhã
10/10/2016