Impactos da expansão da saúde digital

Entrevista com Raquel Rachid

Raquel Rachid, pesquisadora do projeto “Implicações das Tecnologias Digitais para o Sistema de Saúde”, da Iniciativa Saúde Amanhã/ Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030, foi a entrevistada do mês de janeiro do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS). O Observatório está vinculado ao Projeto Análise de Políticas de Saúde no Brasil (2003-2017) apoiado pelo CNPq e Ministério da Saúde (Chamada MCTI / CNPq / CT-Saúde / MS / SCTIE / Decit N º 41/2013), conformado por uma rede de pesquisadores inseridos em diversas instituições de ensino e pesquisa da área da saúde e afins envolvidas com a produção de conhecimento crítico na área de Políticas de Saúde.

O quanto a pandemia de Covid-19 impactou a expansão da saúde digital no Brasil e no mundo?

Raquel Rachid: Essa é uma questão bastante interessante, porque – apesar de eu não ter condições de quantificar em termos exatos esse impacto – é inegável que a pandemia de Covid-19 acelerou processos que não estavam tão alastrados socialmente e que se relacionam com a saúde digital. A literatura é vasta em apontar essa questão, uma série de eventos acadêmicos e não acadêmicos passaram a debater esse aspecto, para além de veículos de mídia terem noticiado o tema com bastante intensidade.

Especialmente do ponto de vista da estratégia em saúde digital aqui no Brasil, que estava sendo conduzida durante 2020, também é possível verificar uma aceleração na utilização da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) com a pandemia. A RNDS foi erigida como o projeto estruturante do Conecte SUS, voltada à transformação digital da saúde no Brasil – de acordo com o projeto da gestão anterior no Ministério da Saúde. Essa “rede” configura-se como um big data da saúde, hoje hospedada na Amazon Web Services (AWS) e não adequada à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Em linhas gerais, é uma plataforma pensada para integração de dados em saúde sobre a qual posso elaborar mais adiante, fazendo algumas ponderações críticas. Mas, comentei sobre a aceleração do seu uso, já que no curso do projeto piloto que estava sendo desenvolvido no estado da Paraíba, a pandemia levou à decisão de integração de laboratórios públicos e privados em todo o Brasil à RNDS para registros vacinais. Assim, houve muitos desdobramentos da atual estratégia brasileira no contexto da pandemia – o que ampliou a ênfase dada ao projeto.

Ainda, um fato que comprova essa questão da expansão da saúde digital foi a promulgação da Lei n. 13.989, de 15 de abril de 2020 – que autorizou, em caráter emergencial e enquanto durasse a crise ocasionada pelo coronavírus, o uso da telemedicina no Brasil. Após o reconhecimento formal do fim da pandemia, o dispositivo legal aprovado em 2020 foi substituído pela Lei 14.510, de 27 de dezembro de 2022 – como forma de manutenção da prática, ampliada à telessaúde.

É importante apontar que a saúde digital é mais abrangente do que a saúde eletrônica, no contexto da qual os debates sobre a telessaúde surgem. Inclusive, há um artigo que frisa a centralidade da adoção de tecnologias oportunizadas pelo que se convencionou chamar de Inteligência Artificial (apesar das limitações teóricas dessa nomenclatura) na “saúde digital”. Tratase de um estudo desenvolvido no contexto do projeto “Implicações das Tecnologias Digitais para os Sistemas de Saúde”, de autoria dos pesquisadores Bruno Penteado, Marcelo Fornazin, Leonardo Castro e Sandro Freire. Esse material avalia a evolução conceitual e tecnológica do campo da informática médica nas últimas décadas e aponta para uma mudança da gestão de instituições de saúde (simbolizada pela saúde eletrônica) para a gestão da saúde de populações no contexto da saúde digital.

Para concluir, ainda que sem esgotar o assunto, é importante salientar o crescimento exponencial de aplicações digitais voltadas à saúde no contexto global da pandemia – seja para rastreamento de contatos, auxílio no diagnóstico da Covid, aplicações de bemestar para a execução de uma plêiade de atividades em face do distanciamento social. Aliás, muitas dessas aplicações são providas por startups, cuja tendência é de integração a grandes conglomerados a partir de um interesse comercial em bancos de dados sensíveis que servem a modelos de negócio em diversificação e
prontos a oferecer soluções aos entes públicos.

Além disso, há casos conhecidos de dados de saúde coletados em razão do enfrentamento à pandemia e posteriormente utilizados nos campos da segurança pública e da persecução penal. Bom, há uma série de questões que acentuam a preocupação com o modelo de saúde digital em expansão e que podemos aprofundar a partir das próximas perguntas, claro.

Em mesa redonda realizada no 13º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva – Abrascão, em novembro de 2022, você destacou as influências da estratégia dinamarquesa para a saúde digital sobre a estratégia brasileira até então. Quais pontos merecem mais atenção nesta relação?

Raquel Rachid: Sim, é verdade. Essa relação entre Dinamarca e Brasil voltada a trocas no âmbito da saúde existe desde 2014, de acordo com documentos oficiais do governo federal aos quais tive acesso. Antes de dar seguimento ao assunto, agradeço pela oportunidade de compartilhar pontos de atenção quanto ao tema e aproveito para reforçar as saudações à Abrasco, à UFBA e ao ISC-UFBA pela realização do Abrascão 2022 – foi minha primeira participação em edições do Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, que deixou uma grande expectativa pelas próximas.

Bom, se considerarmos que a digitalização na saúde compreende uma parcela da digitalização de outros tantos serviços providos pelo Estado, ou seja, a digitalização de outras instâncias do Estado, é relevante entender o cenário de digitalização do Estado e da saúde dinamarqueses, bem como suas influências na saúde digital brasileira – o que se pode comprovar pela intensificação das agendas entre os países para a saúde digital nos últimos anos, até mesmo por meio de inscrições disponíveis nos Boletins do Conecte SUS.

Nesse sentido, e também no contexto do projeto “Implicações das Tecnologias Digitais para os Sistemas de Saúde”, que é apoiado pela Estratégia Fiocruz para Agenda 2030 por meio do projeto Brasil Saúde Amanhã e coordenado pelos pesquisadores Marcelo Fornazin e Leonardo Castro, estudamos uma série de documentos oficiais dinamarqueses publicados desde 2011 para entender elementos presentes nessas publicações que estivessem presentes no conjunto de proposições pela Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028.

Dentre esses documentos estão estratégias de e-Governo, de digitalização dos serviços providos à população, de saúde digital, bem como endereçamentos do governo ao parlamento dinamarquês. Reforçando publicações oficiais da própria Organização Mundial da Saúde (OMS), esses documentos trazem diretrizes precisas sobre a necessidade de novas oportunidades de negócio por meio da digitalização, na busca por novos mercados e em apoio ao crescimento de empresas privadas; ainda, destaco a menção que encontramos à presença de líderes de negócio e empresários na condução dessas estratégias de colaboração entre instâncias públicas e privadas para o desenvolvimento da saúde digital.

Então, o elemento da colaboração é um ponto de atenção central, já que – a partir dos esforços empreendidos no bojo da Reforma Sanitária – não se observa equiparação constitucional desses setores para a consecução do Sistema Único de Saúde (SUS), senão uma complementaridade da atuação da iniciativa privada. Assim, uma série de atos normativos publicados nos últimos anos para o direcionamento da saúde digital no Brasil parecem indicar uma dissonância quanto a esse aspecto. Em breve, um artigo do grupo de pesquisa que comentei será publicado pela Revista Ciência & Saúde Coletiva detalhando esses pontos de atenção e terei muita satisfação em encaminhar ao Observatório, se for de interesse. E, retomando o espaço da mesa redonda da qual pude participar no Abrascão, agradeço especialmente ao Grupo de Trabalho Informações em Saúde e População (GTISP) da Abrasco pela oportunidade.

Também no Abrascão, você fez alertas sobre o papel residual que a saúde tem tido na estratégia de saúde digital brasileira. Em sua avaliação, o que precisa ser revisto na estratégia brasileira para a área?

Raquel Rachid: Quanto a esse caráter residual, minha intenção foi frisar que aquilo que parece orientar a estratégia de saúde digital brasileira é o avanço do capital na saúde, conforme salientou o registro da entrevista concedida por Áquilas Mendes ao Observatório em 2021. Nitidamente, não se trata de um movimento inédito, dadas as constatações que Lígia Bahia também expôs sobre articulações entre público-privado em entrevista conferida ao Observatório em 2018.

Verifica-se, então, a renovação-continuação de contextos anteriores na saúde digital – tratando-se de âmbito no qual, a partir das pesquisas realizadas, não identifico o fortalecimento do Sistema Único de Saúde baseado em princípios como o da participação social e da descentralização.

Especialmente a esse respeito, destaco a centralização decisória imposta pela implementação da RNDS pelo governo federal até o momento, bem como a falta de controle social quanto ao Comitê Gestor da Saúde Digital.

Nesse sentido, entendo que é necessária a revisão dos pressupostos desse modelo de saúde digital adotado – um modelo que pretende o engajamento de usuários e usuárias por meio de técnicas de análise comportamental a partir da produção de dados, conforme o texto da própria Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028 aponta.

Para contribuir com essa reflexão, sugiro a leitura de um texto que o grupo “Implicações das Tecnologias Digitais para os Sistemas de Saúde” publicou recentemente a respeito das dimensões subjetivas na saúde digital; esse trabalho foi liderado pelo pesquisador Luís Henrique Gonçalves e publicado pela Revista Liinc.

O Sistema Único de Saúde (SUS) conta com bases de dados que não dialogam e são consideradas obsoletas em meio à tramitação do projeto de lei 3814/2020, que dispõe sobre a obrigação do SUS manter uma plataforma digital única com informações de saúde dos pacientes, e ao interesse de empresas de saúde e da Big Tech pelo tratamento dos dados de saúde dos usuários do SUS. Nesse cenário, questões como ética, privacidade e o interesse público como condutor das ações têm sido consideradas?

Raquel Rachid: Muito oportuna a remissão a esse cenário; inclusive, sobre a fragmentação dos sistemas de saúde, há uma série de trabalhos que abordam a temática – dentre os quais, referencio as produções de Ilara Hammerli.

Ainda, reconheço a importância do debate sobre o tratamento de dados pessoais sensíveis, considerando o caso específico dos dados de saúde e os avanços em termos das salvaguardas a eles conferidas nos últimos anos. Contudo, em razão de a minha formação abranger o estudo do direito, entendo que mesmo a dimensão constitucional de direito fundamental conferida à proteção de dados pessoais não é suficiente em face da sociabilidade reforçada pela dinâmica de valorização do valor – que consolida a acentuação da extração máxima de dados como recursos – caso um discurso político supostamente neutro venha a estabelecer diretrizes jurídicas para o tratamento de dados pessoais no campo da saúde que se adaptem com conforto à privatização da saúde digital.

Nesse sentido, entendo a importância política do tensionamento provido por meio de ferramentas jurídicas que sejam utilizadas para a realização de um sistema de saúde público historicamente limitado por resistências ao que está disposto no texto constitucional. Tenho tido muita satisfação de compartilhar horizontes por meio de articulações sociais existentes e que vem se apresentando em debates, como é o caso do projeto de lei nº 3814/20 – hoje em discussão perante a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados; são contextos que integro como pesquisadora do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN), entidade que compõe a Coalizão Direitos na Rede.

A respeito deste projeto de lei, especificamente, entendo que carece de uma série de debates junto ao campo da Saúde Coletiva por propor diretrizes para uma plataforma – que hoje seria a RNDS, apesar da falta de citação expressa – sem o detalhamento e a prescritividade necessários a uma iniciativa que abre inegável espaço ao uso secundário de dados de saúde a partir da mesma tônica que vem conduzindo a saúde digital. O uso secundário de dados pessoais, aquele desvinculado da finalidade específica que teria justificado sua coleta, pode gerar muitos prejuízos – tais quais a própria seleção de risco e discriminações de muitos matizes – caso operado em favor do compartilhamento de dados para finalidades distantes do fortalecimento do SUS.

Avalio que há um conjunto de temas que são tradicionalmente debatidos pelo campo da Saúde Coletiva e que não estão presentes nesse caso particular dos debates em torno do PL 3814/20; por outro lado, verifico a presença massiva de participações do setor privado, com remissões em uma das audiências públicas à conexão que o projeto de lei possuiria quanto ao “Open Health”. Aproveito, então, para deixar registrado o convite para diálogo com entidades que queiram se somar aos debates e à incidência política nesse âmbito; compartilho, ainda, o link da última audiência pública para aquelas pessoas que tiverem interesse em acompanhar a gravação.

A proposta do Open Health, modelo que prevê a integração de dados do setor suplementar à Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), ventilada pelo Ministério da Saúde (MS) no ano passado, foi alvo de críticas pelos riscos que representa aos direitos fundamentais à proteção de dados e à saúde. É possível pensar uma proposta de integração de dados pautada no compromisso com a universalização do acesso à saúde e o fortalecimento do SUS?

Raquel Rachid: O projeto que ficou conhecido como Open Health teve sua apresentação consolidada por meio de um relatório produzido pelo Grupo de Trabalho estabelecido pela Portaria GSM/MS nº 392/2022. Nesse relatório, há a indicação expressa de que o objetivo da iniciativa seria reduzir a sobrecarga do SUS a partir da migração de usuários e usuárias para a saúde suplementar – o que gera muita preocupação. Fora isso, é importante ressaltar que o modelo que abriga a proposta é um modelo transportado do setor financeiro à saúde e que conta com a RNDS como instrumento central da potencial entrega de dados pessoais sensíveis ao setor privado.

Dito isso, é importante apontar que esse material abordou dois pilares do modelo que seria entendido por Open Health – o assistencial e o financeiro.

O segundo, mais relacionado às questões de portabilidade, típicas da saúde suplementar. Quanto à interoperabilidade, pelo texto do relatório, havia a intenção de aprimorar as informações disponibilizadas pela RNDS englobando os dados em saúde de milhares de brasileiros e brasileiras para a criação de um prontuário eletrônico único, promovendo a “continuidade do cuidado” entre os setores público e privado. Dado o pressuposto de redução da sobrecarga do SUS, essa continuidade do cuidado aponta para potenciais compartilhamentos problemáticos de dados com a iniciativa privada.

Então, respondendo diretamente à pergunta, é absolutamente possível pensar em uma proposta de interoperabilidade pautada no fortalecimento do SUS, desde que suas diretrizes sejam os pressupostos políticos que direcionem esforços para essa finalidade. O projeto do Open Health não me parece apontar para essa direção; inclusive, há poucas informações detalhadas sobre como esse processo foi concebido – apesar de ser pública a contribuição do Hospital Alemão Oswaldo Cruz quanto a um estudo preliminar sobre o “conceito de Open Health à luz da RNDS”.

O debate sobre interoperabilidade no SUS é bastante anterior a essa proposta, que vem acompanhada de um certo solucionismo tecnológico e acaba instaurando um léxico de inovação muito próprio da terceirização da execução de serviços de informação em saúde – terceirização bastante mencionada, inclusive, no contexto da licitação que levou à adoção da Amazon Web Services (AWS) como plataforma da RNDS, empresa para a qual Jacson Barros (ex-diretor do Datasus) passou a trabalhar após participar do contexto decisório que levou a essa contratação.

A RNDS é reconhecida pela Política Nacional de Informação e Informática em Saúde (PNIIS) como “laboratório de inovação aberta”, um laboratório de testes pouco permeável ao controle social e que contempla o manejo de dados com alto valor para o mercado. Aliás, já que comentei sobre a PNIIS, aproveito para fazer referência ao contexto de questionamentos sobre o baixo índice de participação e discussão a respeito do texto que substitui o aprovado em 2015.

Há uma preocupação de que a Saúde Digital no país siga sendo apropriada pelo capitalismo de dados e pela lógica neoliberal. Quais os caminhos para que a produção e o uso de tecnologias digitais na saúde tenham como base os princípios do SUS, sem produção de mais exclusões? De qual agenda para a saúde digital o Brasil precisa?

Raquel Rachid: Entendo que, sim, há uma preocupação por parte de alguns grupos que se opõem a um modelo de digitalização submisso ao acirramento das relações sociais no cenário de um capitalismo em crise e faço coro a essa preocupação. Ainda, será importante avaliar se essa preocupação fará parte da atuação do governo federal, por exemplo, sendo desdobrada em ações concretas.

E, aqui, cabe citar uma série de estruturas dos entes federativos que dialogam com o movimento de digitalização, para além daquelas mais imediatamente ligadas à saúde. Há uma tendência de a digitalização dos serviços públicos operar como potencial ambiente de destinação de recursos à iniciativa privada – isso também é visto na saúde digital em âmbito global. Nesse sentido, é notória a existência de setores cuja agenda envolve justamente o acirramento dessa dinâmica de privatização.

Algo que preocupa sobremaneira no que diz respeito à saúde no Brasil é a atuação de hospitais privados de referência pautando a política pública de saúde digital por meio de isenções fiscais relacionadas ao Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS); minha posição é de revisão desse modelo a bem de uma agenda para a saúde digital que seja pautada pelos princípios do SUS. Outra questão é mobilizar quaisquer debates sem açodamentos e a partir de maior abertura ao acompanhamento do que está sendo projetado na agenda da saúde digital para o país.

Antes de concluir, queria apontar uma ressalva quanto a nomenclaturas que intentam denominar esta fase interna do modo de produção sem abranger esferas de sua reprodução que não estão lastreadas no processamento de dados ou na “vigilância tecnológica”, como se totalizassem o processo reprodutivo – um debate que me parece muito profícuo a partir das lentes do Novo Marxismo, conforme a classificação ofertada pelo professor Alysson Mascaro.

Fonte: Inês Costal e Patrícia Conceição – OAPS . 26/01/2023