Por Danielle Monteiro e Júlia Da Matta
O uso da Inteligência Artificial no SUS abre um leque de oportunidades, mas, por outro lado, também traz alguns desafios, que precisam ser mais amplamente debatidos. As potencialidades e os riscos que esse conjunto de tecnologias impõe ao Sistema Único de Saúde deram o tom ao seminário ‘Saúde Digital e Inteligência Artificial no SUS: desafios e perspectivas’, que aconteceu na última quinta-feira (31/10), na ENSP. O evento foi organizado pelo Observatório do SUS, em parceria com a equipe do projeto ‘Implicações das Tecnologias Digitais para o Sistema de Saúde’, da Iniciativa Brasil Saúde Amanhã/ Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030.
Ao iniciar o debate, o coordenador do Observatório do SUS e vice-diretor da Escola de Governo em Saúde da ENSP, Eduardo Melo, explicou que o Observatório atua com foco na conjuntura, nas políticas e experiências do Sistema Único de Saúde, e visa, ainda, debater o conjunto de desafios estruturais, contemporâneos e emergentes do SUS. Um deles, segundo Melo, é o fenômeno da transformação digital, a qual, conforme destacou o vice-diretor, afeta a saúde de um modo singular, culminando em potencialidades e riscos. Melo abordou questões centrais a serem discutidas, como a necessidade de compreender melhor a digitalização em saúde e o desafio de preservar o interesse público frente à crescente influência privada nesse setor. Além disso, destacou a relevância de integrar os múltiplos sistemas de informação do SUS e as potenciais repercussões da digitalização no acesso e equidade no atendimento à saúde. Com mesas sobre inteligência artificial e experiências em saúde digital, o seminário, de acordo com ele, tem como objetivo proporcionar um panorama amplo sobre esses temas e suas implicações para o SUS.
Também presente à mesa de abertura, o coordenador executivo da Iniciativa Brasil Saúde Amanhã, Leonardo Castro, discorreu sobre o projeto, que já tem 13 anos de história, com 12 livros publicados, além de uma série de seminários e estudos realizados. Conforme narrou o cientista social, no final de 2019 a iniciativa criou um projeto de pesquisa sobre aplicações de tecnologias digitais em saúde, que resultou em diversos estudos que têm incentivado uma reflexão sobre o campo da saúde digital no Brasil e no mundo.
Em seguida, a coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil e assessora especial da ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Renata Mielli, falou sobre os principais eixos, as motivações e o conteúdo do plano brasileiro de Inteligência Artificial, chamado de ‘IA Para o Bem de Todos’, que tem como objetivo promover o desenvolvimento, a disponibilização e o uso da Inteligência Artificial no Brasil. A iniciativa contempla 13 ações voltadas ao uso da IA no SUS. Entre as ações desenvolvidas pelo projeto, Renata citou o desenvolvimento de um sistema para aprimorar a gestão de processos de judicialização, a criação de plataforma de IA para promoção e cuidado da saúde do idoso, a utilização de robô para a desinfecção de ambientes, o uso de assistente de IA para otimizar a personalização do cuidado de saúde, entre outros.
Coordenador-Geral de Disseminação e Integração de Dados e Informações em Saúde da Secretaria de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde, Tiago Bahia destacou a Estratégia de Saúde Digital para o Brasil, desenvolvida pelo governo para ampliar o acesso à informação em saúde, visando a continuidade do cuidado em todos os níveis de Atenção à Saúde. Ele também apresentou algumas ações e ferramentas tecnológicas de saúde digital desenvolvidas pelo governo, como a Rede Nacional de Dados de Saúde, a Plataforma Localiza SUS, o Plano de Dados Abertos, além do TabNetBD 3, ferramenta de tabulação do SUS. “Quando falamos de inovação, não precisamos viabilizar um contexto no qual ela serve aos interesses de mercado. O processo de inovação pode ser pungente, mas, mesmo assim, proteger o interesse público e fazer com que, por exemplo, o setor Saúde saia ileso em relação ao uso de dados para o desenvolvimento de tecnologias”, defendeu.
Coordenadora do Projeto TIC Saúde, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), Luciana Portilho apresentou dados da pesquisa desenvolvida pelo projeto, que mapeou a infraestrutura de Tecnologia da Informação e Comunicação nos estabelecimentos de saúde. O estudo revelou avanço no uso de computador nos estabelecimentos de saúde pública e indicou também que, na maioria deles, os responsáveis pela gestão e governança da informática são as secretarias de saúde.
A pesquisa mostra também que as Unidades Básicas de Saúde avançaram na informatização: 97% delas possuem algum tipo de sistema eletrônico para registro das informações dos pacientes. Os dados apontam, ainda, que os estabelecimentos públicos de saúde realizam mais serviços de telessaúde do que os privados. Já no que diz respeito ao uso de Inteligência Artificial, os números são baixos, principalmente nos estabelecimentos públicos: apenas 1% deles utiliza Inteligência Artificial, em comparação com os privados, que representam 6% desse total. “Entre os estabelecimentos públicos, os principais motivos alegados para a não utilização de IA foram: falta de prioridade, ausência de necessidade ou interesse, e altos custos”, contou Luciana. No total de estabelecimentos públicos com internação, até 50 leitos, foram relatados, como motivos para a não utilização da IA, a incompatibilidade com equipamentos e a qualidade e disponibilidade de dados.
A coordenadora do TIC Saúde apresentou, ainda, um estudo desenvolvido pelo projeto, que mapeou as oportunidades que podem ser criadas pelo uso da IA no Brasil, relatadas por profissionais da saúde. Entre os benefícios do uso do recurso digital, foram citadas as melhorias na ampliação do acesso à saúde, na gestão dos sistemas, no exercício das funções dos profissionais de saúde e na Vigilância Sanitária. Entre os desafios, foram elencadas questões referentes à privacidade e segurança de dados, além da explicabilidade de modelos, a decisão automatizada e a necessidade de responsabilização por eventuais erros.
Com uma apresentação centrada no uso e nas possibilidades da IA no SUS, o diretor de Tecnologia da Informação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), Giliate Cardoso, alertou para o atraso no debate sobre Inteligência Artificial, no setor de saúde nacional, e também no que diz respeito ao próprio conceito de IA, que se refere à simulação de processos de inteligência humana em máquinas.
Entre os desafios da IA no SUS, citados pelo diretor, está a integração das bases de dados historicamente fragmentadas, a utilização de padrões sintáticos e semânticos internacionais, a disponibilização desburocratizada e segura de dados para pesquisa, a formação de pessoal especializado em Inteligência Artificial, a proteção de dados pessoais e a necessidade de uma política de regulação que proteja a vida das pessoas e o interesse público. Giliate discorreu, ainda, sobre as diretrizes e objetivos do uso de IA na Ebserh, que atualmente conta com 97 projetos de Inteligência Artificial em sua rede.
Pesquisador da Fiocruz Bahia e coordenador científico e cocriador do Centro de Integração de Dados e Conhecimento para Saúde (Cidacs/Fiocruz), Maurício Barreto falou sobre dados, pesquisa e políticas públicas em saúde em tempos de Inteligência Artificial, a partir de experiências do Cidacs. Ele apresentou as plataformas de dados do Centro e frisou que elas foram elaboradas ancoradas no conceito de integração. “Temos feito um esforço grande de documentar todo o processo, para que outras gerações conheçam o que foi feito, e temos elaborado ideias do que seria uma plataforma de dados complexa, o que envolve todo o conceito de privacidade, além de outras questões operacionais e tecnológicas necessárias”, afirmou.
Maurício contou que, com base no conceito de “plasticidade dos dados”, o Cidacs integra uma rede internacional de uso de dados para avaliação de impactos nas políticas de saúde, além de desenvolver plataformas de dados sobre clima e saúde, migração, entre diversos outros temas.
O debate foi moderado pelo conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil, Marcelo Fornazin.
Políticas e experiências subnacionais de saúde digital no SUS
A segunda mesa do seminário focou nas políticas e experiências subnacionais de saúde digital no SUS, em diálogo com a Estratégia Nacional de Saúde Digital 2020-2024 (ESD28), e foi coordenada por Mariana Vercesi de Albuquerque, pesquisadora da ENSP.
Roberta Rúbia, assessora técnica da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e membro da Câmara Técnica de Saúde Digital do COREN-SP, abriu as discussões destacando os avanços e desafios da transformação digital na saúde de São Paulo. Ela apresentou os eixos de atuação: atenção básica, acesso especializado, reestruturação de serviços, assistência farmacêutica, que estruturam a agenda de transformação digital no estado.
Entre os avanços, Rúbia enfatizou o Núcleo de Informação em Saúde e Estratégia, inspirado em modelos da Bahia e Goiás, que permite a visualização de dados em tempo real, agilizando a tomada de decisões. A inauguração do Centro Líder de Inteligência em Saúde Digital, em parceria com o Hospital das Clínicas, também foi destacada como um marco, promovendo a governança de dados e o Prontuário Digital Integrado (PDI) para facilitar o acesso ao histórico clínico dos pacientes nas unidades estaduais.
A assessora ressaltou ainda a expansão da telemedicina em unidades prisionais e municípios, que já resultou em mais de 5 mil atendimentos. Outra inovação é o aplicativo de saúde digital integrado ao Poupatempo, que permite agendamentos e acesso a programas preventivos como “Mulheres do Peito”. Ela concluiu reafirmando o compromisso de São Paulo com a inovação e a integração para aprimorar o SUS no estado.
Na sequência, Gustavo Godoy, gerente de Saúde Digital da Secretaria Municipal de Saúde do Recife, apresentou as iniciativas do município, que visam reduzir desigualdades no acesso à saúde. Ele destacou o Connecta Recife, plataforma digital que reúne mais de 600 serviços municipais, incluindo agendamentos e informações de saúde. Com o uso de inteligência artificial, a plataforma facilita o acesso e combate a desinformação.
Outro ponto relevante foi a integração dos sistemas e prontuários eletrônicos, que possibilita uma visão mais ampla do histórico de saúde dos pacientes. Segundo Godoy, essa conectividade permite um atendimento mais eficiente e garante o acesso a dados atualizados por toda a rede de saúde do Recife.
A apresentação de Luis Antônio Benvegnú, Diretor de Atenção à Saúde do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), destacou as iniciativas inovadoras em saúde digital e a ampliação dos serviços do GHC dentro do SUS.
Benvegnú ressaltou o pioneirismo do GHC no uso de sistemas informatizados para processos administrativos e clínicos. “Hoje temos um prontuário eletrônico robusto, mas enfrentamos desafios de atualização e interoperabilidade”, explicou, enfatizando a importância de conectar os sistemas de forma que promovam uma visão integrada do paciente.
Entre as inovações destacadas está o EcoInfo AES (Ecossistema de Informações da Atenção Especializada em Saúde), que visa integrar dados especializados, monitorar indicadores de desempenho e facilitar o acesso a informações confiáveis e oportunas. “Estamos construindo uma infraestrutura digital para compartilhar dados entre as unidades do SUS de maneira segura e eficiente, promovendo a continuidade e a qualidade do cuidado”, destacou Benvegnú. Ele também mencionou a aplicação de telemetria para monitorar o fluxo de pacientes no centro cirúrgico, o que otimiza a utilização dos leitos e amplia a capacidade de atendimento.
Concluindo, Benvegnú reforçou a necessidade de uma cultura de inovação em todos os níveis institucionais para buscar soluções para os desafios cotidianos. “Nosso compromisso é com uma saúde pública de excelência, sustentada por dados confiáveis, processos otimizados e tecnologias que realmente façam a diferença no atendimento à população”, finalizou.
Oswaldo Gonçalves Cruz, Pesquisador do Programa de Computação Científica (PROCC) da Fiocruz, Consultor do Centro de Inteligência Epidemiológica da Cidade do Rio de Janeiro (CIE/SMS-Rio) e do Centro Nacional de Inteligência Epidemiológica do Ministério da Saúde (CNIE/MS), abordou as inovações desenvolvidas em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Ele compartilhou a experiência na implementação de um sistema avançado de monitoramento de dados epidemiológicos, fundamental para aprimorar a vigilância e a resposta a surtos e emergências de saúde na cidade.
Frente a fragmentação dos dados de saúde, Cruz relatou que, em conjunto com o Centro de Inteligência Epidemiológica (CIE), foi desenvolvida uma infraestrutura de dados unificada que armazena informações de diversas fontes. “Hoje, um boletim epidemiológico que antes levava dias para ser gerado fica pronto em minutos”, destacou.
Ele também mencionou as ferramentas InfoGripe e InfoDengue, desenvolvidas pela Fiocruz e integradas ao CIE, que monitoram a propagação de doenças em tempo real, oferecendo modelos preditivos baseados em dados do SINAN e de fontes complementares. “Esses modelos proporcionam uma visão mais abrangente e oportuna das condições epidemiológicas”, explicou.
Além disso, Cruz enfatizou os painéis interativos que facilitam a análise de dados temporais e espaciais, acessíveis aos gestores de saúde, permitindo previsões, como o impacto de ondas de calor na saúde pública, a partir de dados meteorológicos e de saúde. Outro avanço mencionado foi a criação de um sistema de monitoramento vacinal para identificar atrasos e planejar ações corretivas.
Ao encerrar, Cruz destacou a importância de uma infraestrutura de dados integrada e organizada, enfatizando que o modelo implantado no Rio de Janeiro pode inspirar outros municípios. “Com dados centralizados e automatizados, damos suporte ágil à tomada de decisões, ajudando a identificar áreas críticas e agir rapidamente,” concluiu.