Por Leonardo Mattos
A criação e disseminação de mecanismos de participação social nas políticas sociais e de saúde, em especial, foi um dos aspectos marcantes da experiência democrática brasileira nas décadas 1980, 1990 e 2000. Desde os orçamentos participativos até a criação dos conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde, um conjunto heterogêneo de experiências mais ou menos exitosas se tornaram elemento importante da relação entre Estado e sociedade. Isso porque os mecanismos participativos se constituíram como espaços de mediação institucional, de formulação de políticas púbicas e, sobretudo, de inclusão seletiva de demandas sociais e de representação de setores marginalizados em espaços de poder e de tomada de decisão no Estado Brasileiro. Um processo que se deu apesar da política macroeconômica neoliberal e do padrão de desenvolvimento, que restringiram materialmente os horizontes da construção da cidadania no Brasil, e da baixa porosidade do sistema político e do Estado brasileiro aos interesses populares e da imposição pelas classes dominantes de seus interesses por outras esferas políticas e por canais diretos com o poder.
Na última década, na esteira da crise econômica, política e social brasileira, governos conservadores e autoritários secundarizaram e até mesmo destruíram políticas, estruturas e espaços institucionais de diálogo ampliado com a sociedade civil e os movimentos sociais. Em 2023, a mudança dos ventos na política novamente aponta para o fortalecimento dos mecanismos de participação social, como chave para reconstruir e fortalecer a democracia no Brasil. Alguns processos com importante força simbólica já apontam nessa direção. Um bom exemplo disto é a reativação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), órgão colegiado vinculado à Presidência da República, que teve grande importância na formulação de políticas públicas de soberania alimentar e combate à fome e foi extinto na última gestão. Outro exemplo é o Plano Plurianual (PPA) 2024-2027, o principal instrumento orçamentário de planejamento em médio prazo do Governo Federal, que se orienta por consultas à população realizadas em plenárias, com a participação de ministros e ministras em todos os estados da federação, e por uma plataforma virtual, por meio da qual cidadãos podem sugerir e opinar sobre prioridades.
É também neste contexto que ocorre a 17ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) entre os dias dois e cinco de julho em Brasília. Com o tema Garantir Direitos e Defender o SUS, a Vida e a Democracia – Amanhã vai ser outro dia, a conferência promete ser a primeira grande conferência popular nacional e presencial realizada durante a nova gestão federal. Precedidas pelas tradicionais etapas locais, municipais e estaduais, a 17ª também foi impulsionada por 106 Conferências Livres, encontros auto-organizadas por grupos, coletivos e instituições da sociedade ao redor de temas livremente definidos, com direito a eleição de delegados e apresentação de propostas a serem apresentadas na etapa nacional.
Para além da retomada do processo participativo, a Conferência também terá uma importância política grande, dada a atual conjuntura de disputas e a reacomodação das alianças e da governabilidade. A cobiça de setores fisiológicos pelo controle de orçamento e cargos no Ministério da Saúde (MS) ameaçam as expectativas e planos de retomada de políticas setoriais exitosas, de valorização do conhecimento científico e de atenção cuidadosa às necessidades de saúde da população. Os espaços diretos de intermediação do setor privado com o governo também se reestabelecem, como fica evidente na forte presença do empresariado da saúde no Conselho de Desenvolvimento Econômico Social e Sustentável (CDESS), o chamado “Conselhão”, vinculado à Presidência da República. Sem dúvida, a realização da 17ª CNS será um importante contraponto a estes movimentos.
As disputas entre distintos interesses e segmentos no campo da saúde, extremamente heterogêneos entre si e nem sempre antagônicos, não é exatamente uma novidade. Desde a redemocratização tais embates atravessaram diferentes governos e conjunturas e foram acomodados pela institucionalidade estabelecida. A conciliação de interesses se deu a partir de diferentes mecanismos de mediação e concessões desiguais que foram capazes de manter o equilíbrio e a estabilidade política do sistema de saúde. Resta saber se, em 2023, há espaço e disposição para o equilíbrio, se os antigos arranjos são capazes de apaziguar as contradições latentes e qual a força real de cada segmento para influenciar o rumo das políticas de saúde nos próximos anos.