“Não há conquista social que se sustente sem uma economia forte”. A afirmação é da economista Denise Lobato Gentil, pesquisadora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que se dedica ao estudo do comportamento fiscal das políticas sociais no Brasil, dentre elas as do setor Saúde. Como colaboradora da rede Brasil Saúde Amanhã, em setembro, Denise apresentou a palestra “Comportamento Fiscal e Financiamento das Políticas Públicas e da Saúde”, durante o seminário “Brasil Saúde Amanhã: horizontes para os próximos 20 anos”. Nesta entrevista, ela comenta os impactos da desaceleração da economia para a Saúde e discute os desafios para o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
No seminário Brasil Saúde Amanhã a senhora apresentou um estudo sobre o comportamento fiscal das políticas sociais do país no período 2011 a 2014. Quais as conclusões da pesquisa?
A crise que vivemos hoje no Brasil não surgiu repentinamente em 2015. A primeira hipótese de nosso trabalho é que a atual desaceleração econômica que o país enfrenta é resultado da política fiscal colocada em prática desde 2011, que vem reduzindo significativamente o gasto público, sobretudo os investimentos públicos – uma tese que vai contra a interpretação dominante de que há um excesso de gastos no Estado brasileiro. As críticas conservadoras ao Governo Dilma impõem este ajuste fiscal ao Governo Federal, defendendo que é preciso realizar uma correção para equilibrar supostos gastos excessivos do Estado. Mas a política fiscal não foi de fato expansiva e o tal ajuste fiscal já vem sendo feito há muito tempo. Então, observamos uma tendência contrária à tese dominante: desde 2011, quando tiveram início as políticas de redução de despesas, até 2014, os gastos do Governo Federal em investimentos cresceram a uma taxa média real anual de apenas 0,7%, enquanto entre 2007 e 2010 esta taxa foi de 35%. Entre 2011 e 2013, a taxa média de crescimento anual do investimento público foi negativa, registrada em -10% e -4% respectivamente. E a mesma dinâmica de desaceleração foi verificada em relação ao investimento das empresas estatais federais: enquanto de 2007 a 2010 a taxa média de crescimento anual do investimento em estatais foi de 26,7%, de 2011 a 2014 este indicador foi da ordem de – 0,6%. É uma diferença muito grande e é óbvio que uma queda brusca como esta iria gerar uma desaceleração brutal na economia brasileira. Do ponto de vista do impacto macroeconômico, os efeitos sobre o PIB são desastrosos.
No custeio da máquina pública, o Governo Federal elevou os gastos, mas houve um empenho para contração das despesas com o funcionalismo público, com redução de 6,6%, de 2007 a 2010, para 1% ao ano a partir de 2011. O custeio do setor público consolidado, que inclui União, estados e municípios, sofreu uma brusca queda a partir de 2011, chegando à metade do que fora, em média, nos primeiros anos de enfrentamento da crise internacional. Portanto, o impacto macroeconômico da expansão do custeio no Governo Federal foi restringido pelo comportamento bem menos expansivo dos estados e municípios. É importante observar isto porque quando a economia desacelera a partir do investimento público e do custeio sobram muitos problemas para o Governo Federal na área social. Uma economia que cresce menos gera menos empregos, produz alta rotatividade no mercado de trabalho, queda de salários e mazelas sociais, que deverão ser assistidas pelo sistema de proteção social. Esta é uma dinâmica bastante conhecida. E, segundo os dados analisados, o primeiro Governo Dilma cresceu, anualmente, a metade do que cresceu o segundo Governo Lula: enquanto de 2007 a 2010 a taxa média de crescimento do PIB foi de 4,6% ao ano, entre 2011 e 2014 a economia brasileira cresceu 2,1%. Para 2015, é esperada uma taxa de crescimento do PIB de -3%. São cenários de dinamismo muito diferentes.
Pode-se argumentar que o primeiro Governo Dilma enfrentou os efeitos de uma crise global. Mas, ao lado dela, houve uma política recessiva do Governo Federal, no campo fiscal e monetário, uma política que não foi “contracíclica”. Quando a economia mundial desacelera, a recomendação é erguer a economia nacional a partir do mercado interno. E quem toma esta iniciativa é, sempre, o Governo Federal. Foi o que aconteceu na China, por exemplo: a economia mundial desacelerou e o governo voltou os seus investimentos para o mercado interno, a fim de dinamizar a economia nacional e compensar a desaceleração global. O Brasil adotou uma estratégia oposta. Houve, sim, a desaceleração da economia mundial, mas ela foi agravada pelas políticas de juros elevadíssimos e de corte de gastos na economia nacional, que resultaram em redução de investimentos no mercado interno e na deterioração da indústria. Então, o país vivenciou duas forças agindo negativamente sobre a economia nacional.
Os custos do Estado com o sistema de proteção social tendem a aumentar com o envelhecimento da população. Como o país pode ser preparar para esta tendência, sem comprometer as demais políticas sociais?
Há espaço fiscal para fazer muito mais pela Saúde e pela Previdência Social no futuro. O Governo Federal tem contribuído muito para a deterioração do sistema de proteção social do país, no que diz respeito a Saúde, Previdência e Assistência Social. O Governo Lula e sobretudo o Governo Dilma concederam desoneração tributária em grande escala às empresas privadas, utilizando para isso, principalmente, a redução e a isenção de impostos que pertencem ao sistema de proteção social. Para se ter uma ideia da magnitude de recursos que deixam de ser arrecadados pelo Estado, em 2015 este montante foi estimado em R$ 282 bilhões – o equivalente a 5% do PIB. Esta impressionante quantia é maior que a soma de tudo o que foi gasto com Saúde (R$ 93 bilhões), Educação (R$ 93,9 bilhões) e Assistência Social (R$ 71 bilhões) em 2014. Os valores de redução e isenção fiscal aumentaram a cada ano na última década. Neste período, apenas no setor Saúde, as desonerações tributárias foram da ordem de R$ 25 bilhões – que, se destinados ao SUS, poderiam sustentar a oferta e a qualificação de serviços de saúde para a população. Além disso, há a Desvinculação de Receitas da União (DRU). Por meio deste mecanismo, o Governo Federal pode retirar 20% das contribuições destinada aos sistemas de proteção social – Saúde, Previdência e Assistência Social – e alocar esta verba em outros propósitos. Em 2014, o Estado brasileiro retirou do sistema de proteção social R$ 63 bilhões na forma de DRU. Este valor poderia elevar em 67% o orçamento da Saúde, que está em torno de R$ 94 bilhões. Se somarmos estes R$ 63 bilhões de DRU ao montante de R$ 25 bilhões retirado do SUS por meio das desonerações fiscais no setor de Saúde, são R$ 88 bilhões que poderiam ser revertidos em investimento para a saúde pública. Interromper este processo seria fundamental para garantir a sustentabilidade das políticas sociais no Brasil.
Penso que é possível escolher uma perspectiva não catastrófica para avaliar a transição demográfica do país, ao invés de congelar o futuro numa imagem alarmista concentrada no crescimento do número de idosos. Vários outros ângulos podem ser explorados e tudo dependerá da estratégia que as lideranças políticas do país optarão por colocar em marcha. A população com idades até 17 anos diminuirá. Logo, será menor a demanda por educação (Ensino Básico e Médio), o que disponibilizará mais recursos para investimentos educacionais. Será possível viabilizar a universalização do Ensino Básico, a elevação da qualidade do ensino e a eliminação do analfabetismo. Sem esses resultados, a solução do problema da Previdência poderá ter um alto custo social, porque será necessário melhorar os padrões tecnológicos e educacionais para elevar a produtividade da nossa sociedade. Num cenário de envelhecimento da população, não há meta mais importante que a de crescimento da produtividade. Quando um país tem reduzida a sua população ativa, é necessário compensar com o crescimento da produção por trabalhador. E isso poderá ser viabilizado com políticas públicas adequadas, como a política industrial, de Ciência, Tecnologia e Inovação e, sobretudo, com a política educacional.
Uma percepção alternativa sobre o tema do envelhecimento populacional está condicionada sobretudo à compreensão do papel do gasto público na demanda efetiva. As transferências com o sistema público de seguridade são consideradas gastos autônomos pela teoria da demanda efetiva. São benéficos não apenas para a redução da pobreza e das desigualdades sociais, mas também favoráveis à demanda agregada, à formação de capital e ao crescimento. Por ser uma renda que atende a uma população com elevada propensão a consumir (doentes, desempregados, acidentados do trabalho, idosos aposentados e pessoas de baixa renda), ela será gasta de forma integral assim que for recebida. Transformar-se-á, portanto, na aquisição de medicamentos, alimentos, vestuário e outros bens de primeira necessidade que dinamizam a economia. Quando o Estado realiza esse tipo de gasto, eleva o consumo das famílias e empresas, eleva o montante de demanda agregada, o nível de produto, de emprego e de lucro. A consequência será, também, o aumento da arrecadação tributária, que financiará os gastos que tiveram que ser realizados. O suposto “fardo” das aposentadorias se transforma, assim, num esquema favorável ao capital e à criação e capacidade produtiva.
Considerando este contexto, em médio e longo prazo, quais os impactos da abertura da Saúde ao capital estrangeiro?
Os dados apresentados nos mostram que a mercantilização da Saúde avança de forma avassaladora no Brasil. É dramático o que está ocorrendo em relação à renúncia fiscal. A economia não cresce, o Estado arrecada menos e ainda concede isenções tributárias em larga escala para empresas privadas do setor Saúde e para as famílias comprarem planos de saúde privados. Em 2015, o Governo Federal deixou de arrecadar das empresas e famílias, somente na Saúde, um valor estimado em R$ 25 bilhões. São recursos que vão elevar a margem de lucro das empresas e que poderiam ser utilizados na saúde pública, atendendo a uma população que é altamente vulnerável e não pode arcar com o elevado preço dos serviços praticados pelo mercado. Tudo isso irá resultar, sem dúvida, em uma enorme precarização da Saúde.
A recente abertura da Saúde ao capital estrangeiro tende a potencializar esse processo e, em breve, teremos um setor em sua maior parte internacionalizado. Isso é inevitável diante da atual conjuntura. É um raciocínio economicamente simples: se a economia desacelera, as empresas privadas nacionais perdem fôlego e passam a enfrentar dificuldades financeiras – algumas delas endividaram-se muito e estão quebrando. É claro que o capital estrangeiro ocupará esse espaço de mercado e comprará as empresas nacionais por um preço muito baixo, aproveitando também a valorização do dólar. Não é difícil concluir que, em longo prazo, essa dinâmica levará à substituição do serviço público pelo privado internacional, sendo este sustentado economicamente pelas desonerações tributárias e outras facilidades garantidas pelo Estado brasileiro. Em outras palavras, o dinheiro público passará a sustentar o capital estrangeiro, agora mais do que antes. Hoje, no Brasil, o capital privado nacional atende a mais da metade do total dos serviços de saúde ofertados. Esse espaço, com certeza, será ocupado pelo capital estrangeiro. Tudo isso estimulado pelo Estado brasileiro.
Que cenários futuros podem ser projetados para o Brasil e o setor Saúde a partir dessas constatações?
Infelizmente, não é possível ter uma posição otimista. De fato, os números não trazem boas notícias. A Saúde depende muito do que acontece na economia e o dinamismo da economia do país será diretamente influenciado pela forma como o Estado organiza e executa seus gastos. Em outras palavras, o Estado é um grande player da economia. Analisando os dados de gastos do Governo Federal de janeiro a agosto de 2015, em comparação ao mesmo período de 2014, verificamos que o investimento público, que já vinha em marcha de redução acentuada, foi ainda mais contraído: caiu 36%. O custeio foi reduzido em mais de 5%. Ao mesmo tempo, o Brasil aumentou as despesas com juros em 91% neste período. Surpreendentemente, os gastos com Saúde não diminuíram. Considerando os dados de janeiro a agosto de 2014 em valores reais, o gasto do Governo Federal com o setor foi da ordem de R$ 57,5 milhões. No mesmo período de 2015, os gastos com a Saúde chegaram a R$ 62,5 milhões. Então houve crescimento de 1,68% nas despesas com Saúde. Apesar deste aparente crescimento, o momento atual não é favorável: o cenário do gasto público com Saúde é de desaceleração. Nos últimos quatro anos, de 2011 a 2014, a taxa média de crescimento anual das despesas em Saúde permaneceu congelada em 1,5% do PIB – um gasto menor do que o praticado entre 2003 e 2005, quando os investimentos no setor Saúde estavam em torno de 1,7% do PIB. Houve um retrocesso em relação ao início dos anos 2000. E, agora, um pesado ajuste fiscal. Como esperar algo diferente para o futuro?
O processo recessivo, que se acentuou em 2015 e perdurará em 2016, irá anular boa parte das conquistas sociais das últimas décadas, sobretudo as relacionadas à distribuição de renda e à melhoria da qualidade de vida dos segmentos mais pobres da população. As conquistas aconteceram até 2010, porém não geraram mudanças estruturais para o país, o que tornou o seu alcance muito limitado. E não há conquista social que se sustente sem uma economia forte. A parcela mais pobre da população, que aparentemente ascendeu econômica e socialmente e ampliou o seu padrão de consumo, agora enfrentará muita dificuldade. São pessoas que estão altamente endividadas; que são afetadas diretamente pelo aumento do desemprego, da inflação e dos juros. Tudo isso nos levará a um sistema de saúde pública ainda mais superlotado, diante de um Estado que pretende gastar menos com investimentos sociais e privatizar mais.
Quais seriam as estratégias adequadas à recuperação das políticas sociais e à manutenção, em longo prazo, de um modelo de desenvolvimento social no Brasil?
É impossível um país ter um sistema de saúde universal próspero e acolher o combate à pobreza se a economia não prosperar, porque o seu desempenho nessas áreas depende diretamente de investimentos do Estado em Ciência, Tecnologia e Inovação; do pagamento de funcionários de forma adequada; da ampliação da infraestrutura do setor. Manter e ampliar a infraestrutura da Saúde é caro, pois trata-se de um sistema universal que se propõe a atender com excelência as demandas de saúde de 200 milhões de pessoas. Se não houver investimento do Governo Federal neste sentido, de forma a conduzir a economia ao crescimento, é claro que o sistema de saúde irá retroceder.
Portanto, para o SUS ser próspero é preciso haver um projeto de desenvolvimento social que o coloque como prioridade do país. Para isso, a mentalidade de finanças ajustadas e de austericídio fiscal tem que ser suplantada. Existir uma tendência de envelhecimento da população não quer dizer que, no futuro, o país terá que amargar políticas necessariamente restritivas. Os custos dessa transição podem ser bem administrados, com políticas econômicas e sociais adequadas. Há a possibilidade de transformar essas circunstâncias em estratégias favoráveis, se houver uma nova perspectiva de desenvolvimento, que trate o envelhecimento não como um problema demográfico, mas como um problema socioeconômico, como um conflito entre ricos e pobres. E só será assim se for possível agregar forças sociais e políticas expressivas que possam garantir um rumo alternativo para o país.
Bel Levy
Saúde Amanhã
23/11/2015