Quais as tendências e os desafios para a força de trabalho do Sistema Único de Saúde (SUS) no horizonte dos próximos 20 anos? O tema, alvo de investigação da rede Brasil Saúde Amanhã, é tratado em profundidade no livro Brasil Saúde Amanhã: Organização dos Cuidados em Saúde, a ser lançado ainda em 2015 pela iniciativa. Nesta entrevista, a pesquisadora em Saúde Coletiva Thereza Christina Varella, coautora do estudo “Projeção das Capacidades de Formação de Profissionais de Saúde”, que integra o volume, discute as principais ações que podem ser desenvolvidas no presente para aprimorar, em médio e longo prazo, a força de trabalho do SUS. Para ela, é fundamental investir na qualidade da formação e nas oportunidades de trabalho e de aprimoramento profissional para todas as categorias profissionais da Saúde, para além da Medicina: “Não se faz atenção à saúde de qualidade com uma única categoria profissional. O trabalho no setor Saúde, para ter resultados positivos, deve ser coletivo e cooperado”, declara.
Qual a importância de investir em iniciativas como a rede Brasil Saúde Amanhã, que promove a prospecção estratégica do futuro do sistema de saúde brasileiro?
A rede Brasil Saúde Amanhã inova ao apontar cenários para a saúde pública nos próximos 20 anos. Tal iniciativa possibilita um planejamento de médio e longo prazo nos diferentes subsetores da Saúde que, tradicionalmente, vêm operando de forma imediatista e por demanda de problemas. A construção de condicionalidades para a organização do sistema de saúde não é trivial e envolve, dentre outras questões, tempo para que os investimentos feitos hoje resultem em mudanças em décadas à frente. Então, para investigar a capacidade do país na formação de profissionais de saúde no horizonte das próximas duas décadas, utilizamos uma triangulação de metodologias. Em primeiro lugar, realizamos a revisão sistemática sobre o tema para explorar as produções na área. Em paralelo, realizamos um Webdelphi com especialistas das cinco profissões de saúde elencadas pelo estudo: Enfermagem, Medicina, Odontologia, Farmácia e Fisioterapia. O Webdelphi é uma técnica da pesquisa qualitativa que busca o consenso de opiniões de um grupo de especialistas sobre eventos futuros. A partir daí, construímos e analisamos séries históricas para as graduações das 14 profissões de saúde, considerando os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas do Ministério da Educação, com base no censo do Ensino Superior. Por fim, com a utilização de ferramentas estatísticas, fizemos as projeções para os próximos 20 anos.
Como está organizada hoje a força de trabalho do sistema de saúde brasileiro e quais são as tendências para o futuro?
Considerando a atenção direta à saúde, a força de trabalho do setor é formada por 14 profissões de nível superior e cerca de 45 de nível técnico e auxiliar. De acordo com dados de 2009 da pesquisa de Assistência Médico-Sanitária do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), temos cerca de 1,9 milhões de postos de trabalho na Saúde, sendo 51,2% no segmento público e, nele, mais de 60% na esfera municipal. Verificamos, também, grande concentração regional, com 50% dos profissionais na região Sudeste. Cabe destacar que grande parte da oferta de profissionais nas últimas décadas – cerca de 70% – foi feita pelo setor privado de ensino. Verificamos, ainda, que nas próximas décadas teremos uma tendência ascendente na oferta de médicos e um crescimento linear para as demais profissões. A Enfermagem, que ostentou o maior crescimento, provavelmente passará a apresentar crescimento negativo até alcançar um patamar que acompanhe o populacional.
Considerando o horizonte dos próximos 20 anos, como o país pode se preparar para aprimorar a força de trabalho para o sistema de saúde?
Um dos grandes desafios a serem enfrentados é a qualidade da formação dos profissionais de saúde. Em nosso estudo, observamos uma grande concentração de cursos com conceitos 2 e 3 no Exame Nacional de Desempenho do Estudante (ENADE) – situação comum a todas as áreas investigadas. Paralelamente, convivemos com uma grande resistência das corporações em regulamentar exames de proficiência e de avaliação de competências. Neste contexto, iniciativas como a Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS) e o Telessaúde poderiam ser estratégias eficientes para a qualificação dos profissionais de saúde. Entretanto, observa-se hoje um direcionamento de investimentos concentrados na categoria médica. O programa Mais Médicos parece ser a única agenda do Ministério da Saude no que tange à incorporação de profissionais ao SUS e é, também, a única prioridade para políticas de aprimoramento profissional. Ocorre que não se faz atenção à saúde de qualidade com uma única categoria profissional. O trabalho no setor Saúde, para ter resultados positivos, deve ser coletivo e cooperado.
No âmbito específico de quadros para o SUS, quais os desafios críticos que devem ser enfrentados para o aprimoramento e consolidação de um sistema de saúde universal e equitativo?
Consolidar um sistema de saúde universal e equitativo envolve uma série de questões complexas e a força de trabalho é uma delas. Entretanto, seria total ingenuidade atribuir à quantidade, à qualidade e à distribuição dos profissionais de saúde a única via de resolução dos problemas. Há que se buscar processos de mudança de atuação dos profissionais, com revisão de competências, de saberes e habilidades, de métodos de ensino e dos múltiplos papéis que serão requeridos para o desempenho de práticas ampliadas e complexas, em que cuidado e contexto são indissociáveis. Um passo importante para o aprimorar a formação da força de trabalho do SUS seria
a regulamentação e a acreditação independentes dos cursos de graduação da Saúde. Na última década verificamos um crescimento desordenado desses cursos, concentrado no setor privado e com financiamento público. O resultado são cursos com baixa qualidade, como se verifica no desempenho pífio dos alunos no ENADE. Isso significa que estamos colocando no mercado profissionais despreparados para atuar de forma qualificada na Saúde – e isto não é pontual a uma ou outra categoria, ocorre em todas as profissões de saúde. Em contrapartida, observa-se pouco investimento em programas que resgatem as competências profissionais. Transformar este quadro é fundamental para que, em médio e longo prazo, possamos alcançar melhores resultados.
Equipe Saúde Amanhã, Bel Levy, 27/07/2015