“Não basta ampliar o gasto público, é preciso diminuir o gasto privado”

Entrevista com Artur Monte Cardoso

O economista Artur Monte Cardoso, professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), disse em entrevista para a Iniciativa Saúde Amanhã que para garantir os recursos necessários para o financiamento do SUS será preciso ir além da reforma tributária em discussão no Congresso Nacional. Ele defendeu uma mudança radical na composição dos gastos com saúde no Brasil, em que os recursos públicos representam hoje apenas 40% do total. Para aumentar essa fatia, ele lembrou que é preciso, ao mesmo tempo, reduzir o gasto privado com planos de saúde e medicamentos. Essa inversão, segundo ele, só seria possível com uma reforma tributária que buscasse na própria sociedade os recursos para financiar a saúde e, assim, atrair com a melhoria do serviço público quem hoje compra saúde privada para o SUS. Uma operação que ele sugeriu se dar por uma dupla ação, o aumento de impostos sobre a renda e a propriedade e o fim dos incentivos e isenções ao setor privado.

Por Leonardo Mattos

Como a atual estrutura tributária brasileira impacta no financiamento da saúde e na alocação do gasto público e privado em saúde?

A atual estrutura tributária brasileira é considerada regressiva, isto é, arrecada mais de quem tem menor renda do que de quem tem maior renda, o que limita o caráter redistributivo da política de saúde, que poderia contar com mais fontes e fontes mais redistributivas, como o Imposto de Renda, para fortalecê-la. Aliás, em sentido oposto, há muitas políticas que favorecem o setor privado, como o desconto dos gastos com saúde privada no cálculo da base de incidência do imposto de renda; as desonerações das contribuições para instituições privadas que atuam na saúde; e mesmo políticas específicas, como o PROADI (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde) que desonerou grandes hospitais privados ao custo de cerca de R$ 7,9 bilhões em 13 anos, em troca de consultorias e cursos. A maioria dos tributos (dois terços) são arrecadados pelo Governo Federal; mesmo com os repasses obrigatórios para estados e municípios, as decisões são centralizadas em Brasília. Como o SUS foi pensado na Constituição de 1988 com a descentralização de responsabilidades e de recursos, as despesas próprias com saúde dos entes subnacionais ficam limitadas. O Governo Federal gastou apenas 1,5% do PIB com o SUS em 2022.

Quais seriam os principais efeitos das mudanças propostas pela reforma tributária em discussão?

A atual proposta de reforma tributária busca unir duas propostas de emenda constitucional, uma da Câmara e outra do Senado, em discussão desde 2019. O seu objetivo é simplificar o sistema tributário, unificando os tributos sobre consumo de bens e serviços – como PIS/Cofins, IPI, ICMS e ISS – em um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de tipo imposto sobre valor adicionado (IVA), com poucas alíquotas, regras mais claras e arrecadação no destino (do consumo). Tanto o governo Lula como o Congresso colocaram como prioridade votar a reforma ainda no primeiro semestre, discutindo no segundo semestre pontos específicos em lei complementar, como desonerações de alguns setores. A reforma muda profundamente a proporção da arrecadação entre os estados e os municípios, de tal forma que se prevê uma transição longa da mudança para diluir os impactos no tempo, de até 50 anos.

Quais são as principais disputas em curso? Que setores e grupos políticos têm se mobilizado em torno da inserção da saúde na reforma?

Além dessa disputa dentro da federação pela partilha de recursos, há uma discussão sobre quais serão as alíquotas dos mais diversos setores. Como a reforma busca simplificar o sistema, a sua base é o estabelecimento de uma alíquota única, de 25%, que permita que os valores arrecadados se mantenham, sem diminuir nem ampliar o total de tributos arrecadados. Nessa conta, a cada setor que obtêm alguma redução de alíquota, é necessário ampliar para os demais. O setor da saúde privada – indústria farmacêutica, de máquinas e equipamentos, de insumos, de serviços de saúde e mesmo planos e seguros de saúde – está fazendo muita atuação política para tratamento diferenciado. Alguns propõem até zerar a alíquota para seus bens ou serviços. Os setores de educação e saúde privados são fortes para obter tratamento diferenciado, mas muitos outros estão fazendo seus lobbies nesse mesmo sentido.

Quais seriam os principais elementos para se pensar uma reforma tributária alinhada à garantia do direito universal à saúde? Esses elementos estão presentes na discussão atual?

Será preciso ir além desta reforma. A reforma atual modifica a tributação de bens e serviços. A proposta em discussão no Congresso prevê que o IBS (Imposto sobre bens e serviços) seja um pouco mais progressivo, com mecanismos, por exemplo, de cashback para os mais pobres. Há ainda a previsão de imposto seletivo sobre produtos como cigarro e bebidas alcoólicas, tributo muito importante para a saúde, reconhecido internacionalmente. Para garantir o direito universal à saúde, é preciso cruzar algumas fronteiras.  O Brasil gasta já cerca de 10% do PIB (Produto Interno Bruto) com saúde, mas o último dado do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) fala que apenas 40% é gasto público. Isso precisa mudar radicalmente: pelas referências internacionais, o gasto com o SUS precisa ser de 65% do total. Não basta ampliar o gasto público, é preciso diminuir o gasto privado, seja o gasto com planos de saúde, seja o gasto com serviços e medicamentos. Então, ampliar recursos de impostos sobre a renda e a propriedade permitiria buscar esses recursos que já estão na sociedade, mas utilizados para gastos privados. Um passo básico é retirar os incentivos e isenções do setor privado e reverter os recursos para os fundos de saúde. O passo político é tornar mais fácil o acesso pelo SUS do que pelo setor privado, com mais recursos. E para isso o SUS precisa pensar e atuar estrategicamente nos mercados, como no mercado de trabalho dos profissionais de saúde, de insumos estratégicos, medicamentos entre outros.

*Professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC/ UFRJ)