A regionalização da saúde e o financiamento da Saúde são os temas desta entrevista com a pesquisadora Ana Luiza Viana, professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Ana Luiza dedica-se à análise de políticas públicas e trabalha especialmente com Políticas de Saúde, Economia Política da Saúde e Saúde e Desenvolvimento. Para ela, equacionar o gerenciamento de recursos da Saúde – e, sobretudo, definir as fontes de financiamento do setor – é estratégico para efetivar a regionalização e a conformação do Sistema Único de Saúde (SUS) como veículo da garantia da universalidade e da equidade.
Por que o financiamento da Saúde é tão complexo no Brasil?
De acordo com a Constituição Federal, a Saúde é uma das três áreas que integram a seguridade social, que deve ser financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, mediante recursos provenientes dos orçamentos das três esferas de governo e de um conjunto de contribuições sociais que incidem sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho, o faturamento e o lucro das empresas, a receita de concursos de prognósticos e, desde 2003, a importação de bens e serviços do exterior. Dessa forma, conforme consta na Carta, “o Sistema Único de Saúde deve ser financiado com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”.
No entanto, o padrão de financiamento da Saúde no Brasil é caracterizado por um elevado aporte de recursos provenientes de fontes privadas. Mais que isso: recursos públicos são utilizados de variadas maneiras para financiar o gasto privado, na medida em que o Estado abre mão de parte dos impostos e contribuições sociais relativos a gastos com Saúde que deveriam ser pagos por famílias, empregadores, indústria farmacêutica e hospitais filantrópicos. No Imposto de Renda, famílias deduzem os gastos com planos de saúde, médicos, dentistas e demais profissionais de saúde, hospitais, exames laboratoriais, serviços radiológicos, aparelhos ortopédicos e próteses ortopédicas e dentárias. A renúncia se aplica também aos empregadores que fornecem assistência médica, odontológica e farmacêutica a seus funcionários, à indústria farmacêutica e aos hospitais filantrópicos. Recursos que poderiam ser destinados ao SUS.
Dados apresentados por Carlos Ocké-Reis (2013) mostram que, no plano federal, as isenções fiscais representaram R$ 15,8 bilhões em 2011, com tendência de crescimento. Em termos reais, esse valor representa um aumento de 44,4% na comparação com 2003. Pode-se verificar também que cerca de 50% do total do gasto tributário federal se refere às despesas médicas das famílias, por meio da isenção de Imposto de Renda de Pessoa Física. Embora menos expressiva em magnitude, a dedução com assistência à saúde fornecida por empregadores – a chamada isenção de Imposto de Renda de Pessoa Jurídica – representou R$ 2,9 bilhões em 2011 – mesmo patamar das desonerações para a indústria farmacêutica e ligeiramente superior aos incentivos dados aos hospitais filantrópicos.
Recursos públicos também financiam a esfera privada quando unidades do SUS prestam atendimento a beneficiários de seguros e planos de saúde, principalmente no que se refere a coberturas excluídas pelos planos. Somente no período 2010-2011, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) cobrou cerca de R$ 510 milhões das operadoras de planos privados de assistência à saúde a título de ressarcimento ao SUS. Entretanto, boa parte desse valor não chega ao Fundo Nacional de Saúde, pois as operadoras simplesmente se recusam a pagar o valor cobrado.
O que pode ser feito para melhorar este quadro?
Existem mecanismos legais para garantir o provimento de recursos. A partir do ano 2000, com a aprovação da Emenda Constitucional 29, novas regras de financiamento das ações e serviços públicos de saúde passaram a vigorar no país, o que promoveu o aumento de recursos para o SUS nas três esferas de governo. Observamos que a aprovação da Emenda Constitucional 29 teve impactos diferenciados em cada ente da federação e foi bem-sucedida ao atender ao princípio constitucional da descentralização, ampliando a participação de Estados e municípios no financiamento das ações e serviços de saúde.
Apesar dos aportes adicionais de recursos, deve-se destacar os limites dessa expansão, na medida em que a magnitude de recursos está condicionada, de um lado, pela evolução das receitas públicas estaduais e municipais e, de outro, pela taxa de crescimento da economia, já que os aportes federais devem ser corrigidos pela variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). Além disso, há suspeitas de que muitos Estados e municípios simplesmente descumprem a vinculação, introduzindo outras rubricas no gasto com saúde ou subestimando a disponibilidade de recursos próprios para efeito de cálculo do percentual a ser aplicado na saúde.
Com a aprovação da lei 141/2012, as necessidades de saúde da população –junto às dimensões epidemiológica, demográfica, socioeconômica, espacial e de capacidade de oferta de ações e de serviços de saúde – passaram a orientar o rateio dos recursos do Governo Federal vinculados a ações e serviços públicos de saúde e repassados aos Estados e municípios. Se é verdade que os critérios atualmente adotados para o cálculo do repasse de recursos ainda não contemplam as reais necessidades de saúde da população em cada localidade, é importante registrar o avanço obtido na forma como as transferências têm sido efetuadas, mediante o estabelecimento do repasse “fundo a fundo”. Esse tipo de repasse consiste na transferência, regular e automática, de valores do Fundo Nacional de Saúde para os fundos estaduais e municipais, independentemente de convênios ou instrumentos similares.
Quais as perspectivas para o financiamento setorial da Saúde, no horizonte dos próximos 20 anos?
O início do ano de 2015 não foi promissor: derrotas e a aprovação de novos dispositivos como a do orçamento impositivo que retiram recursos da saúde (PEC 358) e a abertura para o capital estrangeiro (MP 656) são sinalizadores de que a estratégia adotada se afasta da consolidação de um sistema público de caráter universal.
Os desafios para se alcançar um financiamento estável e suficiente para dar conta do princípio da universalidade estão associados ao aumento do gasto governamental per capita em saúde, ao mesmo tempo em que ocorre a redução do peso do gasto privado no gasto total em saúde, principalmente no que se refere às despesas das famílias de rendimentos mais baixos na aquisição de medicamentos. Enfrentaremos, ainda, problemas relativos às capacidades de autofinanciamento de Estados e municípios e à distribuição das ações e serviços de saúde no território nacional.
Está claro que precisamos de maior flexibilidade no uso dos recursos transferidos da União aos Estados e municípios, assim como de uma menor fragmentação no repasse e de inovações gerenciais que otimizem recursos. Também há que se discutir o papel desempenhado pelos gastos indiretos do governo, como deduções, isenções e outros benefícios fiscais,na expansão do mercado de saúde suplementar e rever os critérios de alocação de recursos às esferas subnacionais, contemplando as necessidades de saúde da população.
Como essas questões impactam a gestão do SUS, especialmente a regionalização da atenção à saúde?
O Brasil mudou muito nos últimos 15 anos. Mudanças que podem ser percebidas, por exemplo, pelo aumento do PIB, da renda per capita, do poder de consumo das famílias e do nível de escolaridade da população. A queda expressiva da mortalidade infantil é um reflexo direto da articulação de políticas econômicas e sociais voltadas para a melhoria das condições socioeconômicas, o combate às desigualdades e à pobreza no país.
Em termos de desconcentração regional houve uma expansão de regiões de maior desenvolvimento socioeconômico para o interior do país e as macrorregiões do Centro-Oeste, Norte e em algumas áreas do Nordeste.Houve mudanças expressivas nas três heranças principais da ocupação humana e econômica do território brasileiro: forte concentração nos espaços litorâneos, herança do período colonial, do modelo primário exportador, que concentrou a população, as cidades e as bases produtivas no litoral; a diversidade regional, dada a estruturação do desenvolvimento em seis biomas diferentes e doze grandes bacias hidrográficas, gerando complexos econômicos diversos que deixaram marcas profundas; e a desigualdade regional, que se ampliou com a industrialização, apesar de ter criado um forte mercado interno ao longo do século XX.
É essencial que a política de regionalização da saúde ganhe uma maior centralidade na agenda das três esferas de governo e seja acompanhada por uma estratégia de investimento público em saúde. Assim, a questão do financiamento é chave para seguirmos avançando.
O que é preciso para, no horizonte dos próximos 20 anos, conquistarmos um sistema de saúde eficaz, que atenda de forma universal e equânime as demandas da população brasileira?
O esforço de pesquisa no país deveria estar voltado para a investigação sobre os problemas futuros: olhar a realidade de hoje com a preocupação de detectar quais são os elementos que podem influenciar tanto a oferta de recursos necessários para melhorar a vida humana, quanto a evolução do quadro demográfico e sua distribuição territorial. Nesse sentido, o projeto Brasil Saúde Amanhã está desenvolvendo novas tecnologias para o avanço dessa perspectiva e, ao mesmo tempo, aponta para os formuladores de políticas quais são os entraves e facilidades que podem condicionar ações mais efetivas. Iniciativas como essa auxiliam na elaboração do país que queremos viver nas próximas décadas. Se não iremos transformar profundamente nossa realidade, podemos ao menos contribuir decisivamente para avançarmos em diversas questões ligadas à qualidade de vida dos cidadãos e ao fortalecimento da democracia no Brasil.
Os estudos prospectivos nos permitem ver ao longe e planejar, corrigir rumos, criar e adaptar políticas públicas que enfrentem nossas ainda severas desigualdades. Esses estudos também podem e devem nos ajudar a promover a equidade, a justiça e, assim, contribuir com a sociedade e os governos para chegarmos ao país que queremos para as futuras gerações. E não alcançaremos isto sem um refinado olhar que integre questões que, se em algum momento foram excludentes, já não o são. Hoje é impossível falar de saúde sem pensar em meio ambiente, transporte, educação, moradia, saneamento, economia. É fundamental ampliarmos nosso escopo sobre o significado da saúde. Temos que recuperar o conceito ampliado de saúde elaborado pelo sanitarista Sergio Arouca. Senão, estaremos incorrendo num gigantesco erro de nos preocuparmos apenas com questões pontuais e atuais e, assim, deixar para o futuro um sistema de saúde pública insustentável.
É preciso, também, que o Estado brasileiro, seus gestores e a sociedade como um todo reconheçam as maiores conquistas sociais que tivemos na Constituição Federal de 1988: o SUS e o direito à saúde. Promover este olhar é o nosso dever. Hoje já convivemos com imensas complexidades e muitas outras vão surgir ou se intensificar nas próximas décadas, em virtude das mudanças demográficas e epidemiológicas pelas quais o Brasil passa. Não me refiro a episódios triviais, mas a algumas questões estruturais que podem, sim, colocar em risco a manutenção do sistema público brasileiro conquistado em 1988. Nós já sofremos de alguns males que podem acelerar a implosão do SUS integral, como o conservadorismo político e econômico que, aliado a sofisticados arranjos de comunicação e mídia, empurram cada vez mais os brasileiros para se sentirem fora do SUS – ainda que jamais estejam. Não há, na sociedade brasileira, senso de pertencimento ao sistema público de saúde, de igualdade pelo direito. É preciso que a nação, como um todo, se aproprie do SUS e defenda essa importante conquista social.
Foto: Abrasco
Marina Schneider, Equipe Saúde Amanhã, 02/03/2015