“Efetivar a regionalização do Sistema Único de Saúde (SUS) é o caminho para superar as barreiras de acesso aos serviços de saúde.” A conclusão é do pesquisador Francisco Viacava, colaborador da rede Brasil Saúde Amanhã. Coordenador do estudo “Informações na Esfera Municipal”, a ser publicado no volume Brasil Saúde Amanhã: Organização dos Cuidados em Saúde, Viacava destaca nesta entrevista a importância da dimensão espacial no planejamento de longo prazo da Saúde. O relatório da pesquisa, que apresenta os resultados obtidos e descreve a metodologia aplicada, está disponível para consulta neste portal, na seção Publicações.
Qual a importância da dimensão espacial nos estudos prospectivos sobre Saúde?
A extensão territorial do Brasil, a história e o dinamismo de sua ocupação, a grande diversidade de biomas e de utilização de seus espaços colocam grandes desafios para a organização equitativa e integrada de recursos para o atendimento das necessidades de saúde da população. Neste sentido, o estudo que desenvolvemos no âmbito da rede Brasil Saúde Amanhã buscou analisar o volume de internações hospitalares e de procedimentos diagnósticos e terapêuticos em pacientes não hospitalizados no SUS e estabelecer o fluxo destes pacientes no território nacional. A partir daí, investigamos as diversas situações de concentração de internações e procedimentos nos municípios brasileiros e elaboramos um grafo que considera os deslocamentos de pacientes dos municípios com menor frequência de procedimentos realizados para aqueles com maior frequência desses mesmos procedimentos. Assim, pudemos observar a predominância do fluxo e o local de atração e concentração de pacientes, evidenciando polos de atendimento.
Esse tipo de estudo permite a identificação de vazios assistenciais e assim contribui para a indicação de estratégias de longo prazo para superação ou minimização dessas barreiras de acesso ao sistema de saúde. A pesquisa reafirma os princípios que devem presidir as políticas de saúde no país. No caso específico da distribuição territorial, embora a Lei 8080/1990 tenha estabelecido em seu artigo 8º que os serviços de saúde executados pelo SUS devem ser organizados de forma regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade crescente, apenas a partir do final dos anos 1990 tiveram início, em escala nacional, os processos formais de definição de regiões de saúde. Efetivar o processo de regionalização do SUS, portanto, deve ser uma prioridade do Estado brasileiro.
Considerando as tendências da população brasileira e de seus fluxos migratórios para os próximos 20 anos, quais os desafios para a organização do sistema de saúde e a garantia da universalidade e da equidade do SUS?
A acelerada mudança demográfica e epidemiológica ocorrida a partir da segunda metade do século 20, com o envelhecimento populacional e o predomínio das doenças crônico-degenerativas, vem impondo a necessidade de se repensar o modelo de organização do sistema de saúde. Uma vez que a integralidade do acesso aos serviços passa a ser requisito essencial para responder às necessidades de saúde de diversos grupos populacionais, a identificação e superação das barreiras para o acesso e uso dos serviços de saúde tornam-se imprescindíveis – dentre elas, as barreiras geográficas decorrentes da localização e capacidade da oferta, a distância e o custo do transporte. E o planejamento de longo prazo é essencial neste processo.
Neste estudo, através da análise da atenção à saúde realizada em serviços públicos ou privados, contratados pelos SUS, feita a partir do Sistema de Internações Hospitalares (SIH), constatou-se que os municípios mais populosos se encontram, na maioria das vezes, entre aqueles que mais internam pacientes, quando considerado o volume de internações de alta complexidade. Os dados apontam que nos procedimentos de alta complexidade cerca de 20 municípios são responsáveis por mais de 50% das internações, independentemente da especialidade analisada. Esse percentual é ainda mais elevado à medida que aumenta a complexidade do atendimento. Por exemplo, no caso dos transplantes de medula e de órgãos, 20 municípios respondem por 80% a 100% dos atendimentos. Nos tratamentos cirúrgicos oncológicos, 20 municípios respondem desde 57% (câncer de estomago) até 72% (câncer de próstata) dos atendimentos. Equilibrar este nível de concentração no acesso aos serviços de saúde é um desafio importante para os próximos anos.
Quais os efeitos dessas transformações na escala subnacional e quais os seus impactos para a regionalização do SUS?
Tendo em vista a concentração do atendimento, as necessidades de saúde de residentes em municípios com baixa capacidade de atenção só podem ser atendidas em outros municípios. Nas internações de baixa-média complexidade são pequenas as distâncias percorridas pelos pacientes e, em geral, eles conseguem ser atendidos no interior do Estado onde residem. Entretanto, nas internações de alta complexidade, assim como para procedimentos diagnósticos e terapêuticos, são observados fluxos intensos e distâncias maiores, indicando a existência de polos nacionais. Em relação a procedimentos cirúrgicos, os fluxos parecem ser mais intensos em comparação aos procedimentos clínicos. Em alguns casos, municípios que concentram as internações de maior complexidade apresentam maior percentual de atendimento a não residentes.
O comportamento do fluxo de pacientes pode ser explicado como resultado do próprio processo de urbanização maciça, que embora produza cinturões de miséria em uma escala micro, acaba por facilitar o acesso de grandes contingentes populacionais em busca de recursos. Em alguns casos, a oferta maior de serviços especializados em cidades de maior porte ocorre dentro do contexto de conurbação, ou seja, a extensão contínua e o eventual encontro das áreas urbanizadas de dois ou mais municípios, como no caso da região metropolitana de São Paulo. Essa característica é observada para além de áreas metropolitanas dentro de uma mesma unidade da federação, como no caso de Petrolina e Juazeiro, na região Nordeste do país, e de tantos outros centros populacionais limítrofes entre Estados. Nesses casos, o entendimento dos fluxos de pacientes deve ser analisado de forma específica, como previsto no Decreto Lei 7.508, que dispõe sobre a regionalização e a constituição de redes que atuem na vigilância e na atenção à saúde.
De que modo a organização dos fixos e fluxos do SUS pode minorar a concentração da atenção à saúde em determinadas regiões e promover a equidade no acesso à saúde?
A análise dos fluxos de pacientes em busca de atenção à saúde deve ser pensada considerando o grau de capacitação técnica dada pela oferta de tecnologia e de recursos humanos capacitados, mas também pela organização dos serviços e das redes de atenção que devem conduzir os fluxos. Através do SIH, no caso da mamografia, por exemplo, os 20 municípios que mais realizaram procedimentos respondem por 30% do total atendido no país. Isso evidencia uma melhor distribuição da oferta do serviço, que é de média complexidade, no território nacional. Nos outros procedimentos diagnósticos e terapêuticos (radioterapia, quimioterapia, ressonância magnética, tomografia) observa-se comportamento semelhante aos procedimentos de alta complexidade, isto é, 20 municípios respondem por 50% a 60% do total de atendimentos no SUS.
Dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde – CNES poderão orientar as possibilidades de investimentos para ampliar a distribuição de tecnologia ou a organização das redes. E a rede de deslocamento de pacientes pode servir de subsídio para descrever como se dão as conexões, como se expressa a distribuição do atendimento à saúde e, ainda, para descrever as desigualdades geográficas no acesso, explicadas seja pela disponibilidade de serviços, seja pela estruturação da oferta que marginaliza (no sentido espacial da palavra) e priva populações mais carentes dos ganhos que o desenvolvimento econômico traz ao espaço social.
Bel Levy
Saúde Amanhã
13/07/2015