Oportunidades de inovação para a Saúde

“É possível associar a lógica econômica à social e fazer apostas nacionais para desenvolver o Complexo Econômico Industrial da Saúde de forma alinhada às necessidades da população brasileira”. A avaliação é do pesquisador José Maldonado, docente do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da  Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), que dedica-se ao estudo dos processos de inovação em saúde no país e no mundo. Como colaborador do projeto Brasil Saúde Amanhã, Maldonado desenvolveu o estudo “Base Mecânica, Eletrônica e de Materiais”, que integra o volume “Complexo Econômico Industrial da Saúde”, a ser lançado pela rede Brasil Saúde Amanhã. Nesta entrevista, ele analisa as tendências futuras para o setor Saúde em um contexto global de inovação tecnológica e expansão de mercados. Em relação à capacidade produtiva e inovativa do país, Maldonado é otimista: “Saúde é oportunidade”.

Por que é importante estudar o sistema de saúde a partir de suas perspectivas futuras e como é possível aplicar esta abordagem ao Complexo Econômico Industrial da Saúde?

Estudos prospectivos buscam não só realizar o diagnóstico atual de uma situação, mas também traçar tendências futuras; identificar fraquezas, fragilidades e oportunidades. Isso é possível por meio do diálogo com especialistas das diversas áreas envolvidas na Saúde e em seu complexo produtivo e de inovação. O esforço do pesquisador, neste caso, é balancear as diferentes perspectivas a partir de uma visão que associa economia, política e proteção social. O diálogo entre essas dimensões pressupõe traçar políticas que objetivem o reforço das vantagens competitivas da indústria nacional e da capacidade produtiva e inovativa do país.

Para isso dar certo, é preciso consolidar no Brasil a perspectiva sistêmica da competitividade. As variáveis que modulam a competitividade das empresas vão além dos custos e preços dos produtos e dos investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento. Isso tudo é muito importante. Mas para pensar em competitividade – e isto afeta o Brasil como um todo e as indústrias da Saúde em particular – é preciso considerar as dimensões da indústria, da Ciência e da Tecnologia, do comércio exterior, dos recursos humanos, a questão tributária, a regulação. Políticas de inovação não serão suficientes se não forem criadas as bases para a efetiva competitividade da indústria nacional.

Sob esse ponto de vista, a Saúde não é gasto. A Saúde é oportunidade. Uma oportunidade de investimento, de prever gastos futuros e desenvolver indústrias portadoras de futuro. São indústrias intensivas em Ciência, Tecnologia e Inovação, que incorporam todos os grandes avanços nas áreas de equipamentos e materiais, biotecnologia, nanotecnologia, dentre outras. As indústrias da Saúde demandam conhecimentos a todas as áreas inovadoras do conhecimento e são fontes de oportunidade para geração de renda, emprego e inovação para o país. Por isso a prospecção estratégica do futuro é tão importante: para identificar oportunidades de crescimento que devem, então, nortear as políticas públicas e os programas de governo.

Quais as perspectivas para o Complexo Econômico Industrial da Saúde no horizonte dos próximos 20 anos?

O Brasil tem um vasto potencial no campo da Saúde – a questão é o que fazer com esta potencialidade. As indústrias da Saúde são intensivas em Ciência, Tecnologia e Inovação e, também, altamente concentradas. Essa combinação leva à formação de oligopólios diferenciados, altamente especializados e com elevadíssima competitividade. No setor farmacêutico, os dez maiores grupos controlam 50% do mercado mundial. Na indústria de equipamentos médicos, hospitalares e odontológicos, as 20 maiores empresas controlam 70% do mercado mundial. Essa concentração tende a aumentar e um número menor de empresas concentrará um poder econômico e tecnológico cada vez maior.

Este tipo de mercado requer alto investimento em Pesquisa e Desenvolvimento para a geração permanente de novos produtos, tratamentos e soluções. E as indústrias no Brasil tem apresentado uma fragilidade estrutural em termos de inovação e de produção. A balança comercial do país registra um déficit crescente e precisamos saber como lidar com isso. Ao mesmo tempo, o Brasil apresenta características muito interessantes. O país já é o sexto colocado no mercado farmacêutico global. Na indústria de equipamentos médicos, hospitalares e odontológicos, o país é o décimo maior mercado mundial, com perspectivas de crescimento.

Então, o cenário é de incertezas. A Saúde é um campo de tensões entre as dimensões econômica e social, em que eficiência produtiva, acúmulo de capital e dinâmica competitiva se contrapõem à garantia de um estado de bem-estar social, com pleno acesso da população ao sistema de saúde. Outro campo de tensão na Saúde é a convivência de forças públicas e privadas, o que nos traz a necessidade da regulação. O Estado precisa fazer o papel de árbitro entre as demandas da Saúde e da Economia. Isso é fundamental, por exemplo, na regulação dos preços dos medicamentos, pois não se pode abandonar a população à lógica privada. É preciso haver uma instância que garanta o acesso da população aos medicamentos, em detrimento do avanço do capital. A lógica capitalista é uma, a lógica sanitária é outra e o Estado precisa definir e impor esse limite.

A partir do atual momento de ajuste fiscal e de contenção de gastos com políticas sociais, quais são os cenários futuros para a Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde?

Mesmo em um momento de retração econômica precisamos lutar para que os investimentos em Saúde sejam mantidos. Além de essencial para a população, o setor é fonte de oportunidade para o crescimento do país. Por outro lado, se o Brasil adotar uma agenda neoliberal, tudo isso será comprometido. Não sabemos se esta crise econômica é apenas um soluço ou se realmente significará algo mais grave. Certamente a tendência de crescimento que o Brasil vinha apresentando se atrasará alguns anos, mas podemos ser otimistas e considerar isto apenas uma curva no caminho. Haverá uma contenção geral de recursos e investimentos, pois diante da crise as empresas nacionais que já têm poucos recursos para inovação certamente precisarão de mais investimentos para se manter.

Depois da grande fase neoliberal que o Brasil viveu após a abertura comercial na década de 1990, efetivamente houve a entrada do novo século e o governo que se instalou no país a partir de 2002 trouxe a retomada do papel do Estado como formulador de políticas que buscam o desenvolvimento nacional. E isto vale para a política industrial, a política tecnológica e, também, para a política de Saúde. Houve todo um conjunto de ações para o reforço da capacidade inovativa e produtiva nacional. Há uma série de iniciativas e políticas nacionais em curso no Brasil desde início dos anos 2000, como a Política Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde, o Mais Saúde, o PAC da Inovação, o Brasil Maior, uma série de programas governamentais para o reforço da capacitação científica, tecnológica e produtiva do país. Para o Brasil é estratégico manter e ampliar este esforço para a consolidação e o fortalecimento do Complexo Econômico Industrial da Saúde.

A nossa expectativa é que isso aconteça ao longo dos próximos doze anos. Uma via de ação se dá por meio das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), criadas pelo Ministério da Saúde em 2009, que buscam internalizar capacidades inovativas e produtivas em território brasileiro por meio de parcerias público-privadas. Essa dinâmica teve início com a indústria de fármacos e medicamentos e já vemos a sua expansão para a indústria de equipamentos médicos, hospitalares e odontológicos. É uma oportunidade de mercado bastante segura para a iniciativa privada, pois envolve a garantia de compras públicas pelo SUS. O Brasil detém um grande poder de compra do Estado e deve utilizá-lo em suas negociações. Os agentes internacionais não querem perder um mercado nacional efetivo e em potencial, não só privado, mas também público.

Como as políticas atuais para o Complexo Econômico e Industrial da Saúde podem impactar, em médio e longo prazo, a consolidação do SUS conforme previsto na Constituição Federal?

Tudo depende da conjuntura política, de seus desdobramentos econômicos e da postura que o país irá assumir. O que defendemos, como bem define Carlos Gadelha, é que a Saúde pode, sim, integrar harmoniosamente as dimensões econômica e social. Produtos e serviços da Saúde são gerados a partir de uma base produtiva e inovativa que desenvolve conhecimentos, tecnologias e recursos para o país. Mas a Saúde também tem uma perspectiva social; é um valor humano e está associada diretamente a estados de bem-estar e proteção social. Se essas duas dimensões se conjugarem e estabelecerem uma efetiva integração na formulação de políticas, as oportunidades para o Complexo Econômico Industrial da Saúde se tornam francamente promissoras.

O Estado tem e sempre terá o papel essencial de associar as demandas do sistema produtivo às necessidades sociais, utilizando o seu poder de compra e de negociação para estimular o desenvolvimento produtivo e inovativo nacional de forma alinhada às demandas sociais do país. O mercado global está atento ao potencial de compra do Brasil, seja pelo setor público ou privado. A dinâmica de competição da indústria mundial, associada às perspectivas de crescimento sobretudo das economias emergentes, dentre elas o Brasil, tem estimulado a entrada de multinacionais no país e isto tende a dinamizar a economia. Este movimento já vem ocorrendo. As multinacionais que sempre estiveram instaladas no Brasil intensificaram suas atividades no país, sobretudo na compra de empresas nacionais.

O grande mercado consumidor mundial está no Brasil, na China, na Índia, na Rússia. O Brasil é o único país do mundo com 200 milhões de habitantes e dimensões continentais que assumiu o compromisso de oferecer um sistema de saúde universal, público e de qualidade para a sua população. E as compras do SUS são muito significativas para a economia mundial: hoje, o somatório das compras diretas e indiretas da indústria de equipamentos e materiais médicos, hospitalares e odontológicos aponta que 50% das transações são realizadas pelo Estado brasileiro. E isso garante um enorme poder de barganha para o país.

Apesar da desaceleração em diversos setores da economia, o de insumos farmacêuticos apresenta tendência de crescimento a taxas elevadas. Quais as perspectivas de médio e longo prazo para o setor de produtos e equipamentos médicos?

A Saúde é um nicho muito complexo da indústria. Só a Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos, Odontológicos, Hospitalares e de Laboratórios (Abimo)  integra 11 mil famílias de produtos. É uma indústria marcada por grande heterogeneidade tecnológica. O setor de equipamentos, por exemplo, envolve desde uma simples gaze ou seringa até sofisticados equipamentos para exames de imagem. Trata-se, portanto, de um oligopólio diferenciado, em que as grandes multinacionais da indústria controlam o mercado mundial.

A partir disso, podemos identificar algumas oportunidades para o Brasil. À exceção dos Estados Unidos, que domina o mercado de forma abrangente, os demais países desenvolvidos investiram na segmentação do mercado como forma de driblar a concorrência norte-americana. Assim, vemos países como a Alemanha ou o Japão altamente especializados em áreas específicas da indústria da Saúde. É isto, necessariamente, que o Brasil deve fazer. Na pesquisa desenvolvida pelo projeto Brasil Saúde Amanhã indicamos algumas áreas promissoras para o país, considerando a heterogeneidade do mercado e a diversidade da população brasileira e de suas demandas de saúde.

Dentre elas, destacamos a indústria de equipamentos médicos, o campo da saúde neonatal, todo o segmento da odontologia e de implantes, órteses e próteses. São áreas estratégicas para a autonomia do país diante do mercado global da saúde. Para desenvolvê-las pode-se adotar o modelo de parcerias público-privadas bem reguladas pelo Estado e voltadas ao interesse da população brasileira e não às grandes corporações internacionais. O SUS é o grande consumidor deste mercado e o Estado deve considerar o seu poder de compra pública em suas negociações. É possível associar a lógica econômica à social e fazer apostas nacionais que atendam satisfatoriamente a ambas as perspectivas.

Considerando as tendências mapeadas, quais as políticas e ações recomendadas para o curto prazo?

Além de gerar capacidade produtiva para a indústria nacional, precisamos observar a capacidade de incorporação tecnológica do Brasil; a capacidade social coletiva do país para absorver esses avanços. Afinal, de que adiantaria gerar novos produtos, insumos, técnicas e equipamentos tecnológicos para a Saúde, se tudo isso não for incorporado pelo sistema de saúde e disponibilizado para a população brasileira?

O Brasil precisa investir em incorporação tecnológica. Há que se pressionar as indústrias para reduzir o custo unitário dos equipamentos de saúde ou, ao menos, garantir que as novas tecnologias reduzam o custo dos tratamentos e serviços de saúde. Há uma demanda social muito forte, na saúde pública e no setor privado, para a permanente incorporação de tecnologias cada vez mais desenvolvidas e inovadoras. E essa dinâmica se acirra com o envelhecimento populacional, a transição epidemiológica e o aumento da demanda por exames e tratamentos mais sofisticados.

Portanto, é preciso discutir a lógica da incorporação tecnológica, pois nem sempre o desenvolvimento tecnológico das indústrias da Saúde representa benefícios para a saúde da população. Além dos altos preços que esses recursos podem atingir, muitos produtos não são realmente mais eficazes do que já está disponível no mercado por preços mais baixos. O Estado precisa assumir o papel de regulador deste processo de incorporação tecnológica e de mediador de um mercado que deve atender, antes de tudo, às necessidades de saúde da população brasileira.

Bel Levy
Saúde Amanhã
11/05/2015