“É necessário um novo discurso político de defesa do sistema público de saúde”. A recomendação é do sociólogo Roberto Dutra Torres Junior, diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Instituto de Política Econômica Aplicada (Ipea). Dia 12 de novembro, Torres esteve na Fiocruz durante reunião técnica do projeto Brasil Saúde Amanhã, em que as duas instituições assinaram um Protocolo de Intenções para a cooperação técnica em estudos prospectivos. Nesta entrevista, ele comenta os propósitos da colaboração institucional e discute os desafios para sustentação do Sistema Único de Saúde (SUS) no horizonte dos próximos 20 anos.
Quais os objetivos da cooperação técnica entre Fiocruz e Ipea para o biênio 2016-2017?
Estudos de prospecção do futuro são de suma importância para o país, porque colocam na ordem do dia o pensamento de longo prazo – uma lacuna histórica do Brasil no que diz respeito ao planejamento de políticas públicas. A iniciativa Brasil Saúde Amanhã traz uma colaboração ímpar neste sentido, ao dar os primeiros passos, no presente, para uma abordagem estratégica do futuro. Isso é fundamental, pois não há perspectiva de longo prazo que tenha valor real se não desencadear ações no presente. Então, os caminhos apontados pela rede Brasil Saúde Amanhã sugerem ações e políticas a serem implementadas no presente, de forma a impactar positivamente o futuro do país e do setor Saúde. E isso é inovador no Brasil.
O projeto Brasil Saúde Amanhã é fundamental para o setor Saúde e traz contribuições decisivas para o país ao analisar as diferentes dimensões políticas e sociais que influenciam e são igualmente influenciadas pelas políticas de saúde. É preciso conectar todas as questões que hoje impactam a Saúde – como o financiamento setorial, a organização do sistema de saúde, a formação de recursos humanos para o SUS, as estratégias políticas de legitimação do sistema de saúde pública, dentre outras – a uma perspectiva de longo prazo. Esta, sem dúvida, é nossa principal contribuição. A parceria entre Fiocruz e Ipea, que celebramos com este Protocolo de Intenções, institucionaliza nossos esforços em compor um planejamento estratégico de longo prazo para o Brasil e o setor Saúde. As duas instituições não têm, como finalidade primeira, a missão de realizar ou fiscalizar políticas públicas. Mas temos o compromisso de orientar os caminhos de médio e longo prazo mais adequados para o país, em direção ao desenvolvimento social e ao fortalecimento da democracia e das instituições públicas.
Em longo prazo, quais os impactos do atual contexto macroeconômico global para a Saúde?
Esta é uma questão complexa. Como demonstram pesquisadores do Ipea e da Fiocruz em seus estudos, a Saúde não é apenas impactada pela macroeconomia, mas também influencia diretamente os rumos econômicos de um país. À primeira vista, pode parecer uma equação simples: se o cenário macroeconômico está ruim e tende a permanecer assim, a Saúde será negativamente impactada. Mas para uma análise completa é preciso, também, inverter o fator causal: em que medida uma política de contingenciamento orçamentário, como a que tem sido aplicada ao setor Saúde, ajuda a agravar a crise econômica e a capacidade financeira do Estado?
Obviamente, se a política de ajuste fiscal permanecer em longo prazo, a tendência é que o setor Saúde sofra ainda mais. Por outro lado, a situação pode ser revertida, pois o gasto em Saúde não gera resultados econômicos necessariamente ruins e pode ajudar a gerar receitas para o país. Então a Saúde pode, sim, ser um setor de oportunidades para a economia – mas isso depende essencialmente da condução política. E a visão hegemônica hoje, infelizmente, é a de que a racionalidade econômica depende unilateralmente do ajuste fiscal. É necessário perceber que o gasto com a Saúde não é apenas uma despesa, mas um investimento para o país, que pode contribuir diretamente com o aquecimento da economia nacional.
O senhor aponta a deslegitimação do SUS como um dos principais desafios à sustentação do sistema de saúde pública no país. Como se dá este processo?
Trata-se de uma disputa ideológica – e também política – que tem consequências diretas sobre os principais gargalos do SUS, como o financiamento setorial. A deslegitimação do SUS claramente serve aos interesses privatistas da Saúde. Quanto menor for a legitimidade do SUS junto à sociedade brasileira mais favorável será o contexto político para o subfinanciamento setorial e a privatização da Saúde. É exatamente a este processo que estamos assistindo, com o Congresso Nacional a favor de iniciativas privadas em todos os setores da política pública, notadamente na Saúde. A atual configuração política desfavorável ao SUS poderia ser freada em um ambiente de maior legitimidade do sistema público de saúde. Mas a medida que a legitimidade do SUS é minada, cresce a força política dos grupos privatistas favoráveis ao subfinanciamento da Saúde e ao avanço da iniciativa privada no setor.
Contraditoriamente, o próprio Estado contribui para deslegitimação do SUS e, consequentemente, para a legitimação progressiva do sistema de saúde suplementar – que cada vez mais se coloca não como um sistema complementar ao público, mas como uma alternativa ao SUS. Isso acontece porque, hoje, o Estado brasileiro tem posições conflitantes em relação ao sistema público de saúde. Ao mesmo tempo em que há o compromisso de transformar o SUS no que a Constituição Federal determina que ele seja – um sistema público de saúde, universal e equânime, com uma abordagem integral dos indivíduos – o próprio Estado, por meio de incentivos tributários, dá um sinal oposto para a população. É como se o Estado dissesse para o cidadão brasileiro: “Quando puder, quando tiver melhores condições financeiras, saia do SUS, busque um plano de saúde”. Isso precisa mudar.
Quais as perspectivas para as políticas de legitimação do SUS no horizonte dos próximos 20 anos?
Essa é uma questão que ainda carece de pesquisas mais aprofundadas, que considerem a perspectiva histórica do SUS. Para prospectar o futuro é preciso reconstruir o passado, entender o dinamismo das tendências que se apresentam, como elas foram construídas no passado e quais serão os seus desdobramentos no futuro. Embora este seja um tema ainda pouco pesquisado, os escassos estudos que existem apontam para uma perspectiva nada otimista. Percebemos que o SUS tem passado por um processo crescente de deslegitimação por diferentes extratos da sociedade, inclusive os considerados “SUS dependentes”. Este é um processo que passa essencialmente pelos meios de comunicação de massa, que fazem uma leitura negativa do SUS, desconsiderando todos os avanços conquistados nesses 27 anos.
Há que se aprofundar os estudos sobre as expectativas da população sobre o SUS e o sistema de saúde como um todo. É fundamental termos dados do presente para inferir como estará a legitimação do SUS junto à população no futuro. Precisamos saber qual será o entendimento da nova classe trabalhadora sobre o SUS nas próximas décadas. Esta nova classe trabalhadora confia no SUS? Quer o SUS? Ou essas pessoas já estão convencidas de que precisam pagar menos impostos porque, invariavelmente, se desejarem um sistema de saúde de qualidade precisarão pagar individualmente por isso? Embora não haja pesquisas específicas sobre o tema, podemos dizer que esta nova classe trabalhadora tende a se distanciar do SUS. O que parece, hoje, é que essas pessoas têm uma visão negativa do Estado, como uma instituição que cobra muitos impostos e entrega serviços de baixa qualidade. Logo, o senso comum tende a preferir pagar menos impostos e arcar com os custos de um sistema privado de saúde. A minha previsão é que, se não houver uma atuação política decisiva no sentido de mudar essa percepção da sociedade sobre o SUS, o Estado contará com cada vez menos apoio, inclusive pelos setores populares.
Quais seriam as políticas necessárias no presente para promover, em longo prazo, a legitimação do SUS?
Seriam necessárias medidas de duas ordens. Primeiro, ações concretas que efetivem e aprimorem o acesso dos cidadãos brasileiros ao SUS. Para isso, é necessário realizar o diagnóstico das principais necessidades de saúde da população e garantir o seu pleno atendimento. Nossos estudos apontam que tais necessidades estão, em sua maioria, compreendidas na Atenção Básica e de média complexidade. E é necessária, também, uma iniciativa de ordem ideológica no sentido de valorizar o SUS e reconhecer os seus méritos e as suas conquistas. Os setores estatais e sociais que defendem o SUS precisam acirrar a disputa pela hegemonia ideológica da Saúde, que evidentemente está, hoje, controlada pelo setor privado. É necessário um novo discurso político de defesa do sistema público de saúde.
Neste sentido, a parceria entre Fiocruz e Ipea, por meio da rede Brasil Saúde Amanhã, colabora para identificar quais são as principais demandas da sociedade brasileira – sobretudo a nova classe trabalhadora – em relação ao SUS. É preciso revelar a visão desta classe emergente sobre o SUS, entender como ela recebe os discursos oficiais sobre o sistema de saúde púbica e por que este discurso não tem funcionado. Hoje, o SUS é muito melhor do que a visão que maioria dos brasileiros tem dele. Sabemos que muitos serviços de saúde são prestados com mais qualidade e eficácia pelo SUS, como a aplicação de vacinas ou o atendimento em pediatria, por exemplo. Mas esta realidade não é consenso entre a população. Hoje, a visão que se tem do SUS é a pior possível. Essa equação precisa ser equilibrada e por isso é tão importante que a rede Brasil Saúde Amanhã integre a dimensão da legitimidade do SUS em seus estudos de prospecção estratégica do futuro.
Neste contexto, o que se pode esperar, para as próximas décadas, em relação às relações público-privadas na Saúde?
O atual modelo das relações público-privadas na Saúde, exemplificado pela recente abertura do setor ao capital estrangeiro, reforça o processo de deslegitimação do SUS. O que podemos esperar desta dinâmica é o enfraquecimento do sistema público e a crescente associação das grandes empresas brasileiras ao capital estrangeiro. Isso significaria reproduzir, na esfera da Saúde, um tipo de desenvolvimento dependente do capital privado estrangeiro, como já acontece em outros setores nacionais. Tudo isso reforça a tendência privatista pela qual o Brasil vem passando.
É necessário recolocar na agenda da pesquisa em Saúde o tema das classes sociais. O sistema público de saúde é, normativamente, universalista. A proposta é que todos os cidadãos, por serem cidadãos, tenham acesso ao mesmo sistema de saúde. Como outros direitos sociais, a partir desta perspectiva, o direito à saúde pretende neutralizar as desigualdades sociais, que são tão fortes no Brasil. A grande questão é a disputa que existe entre um Estado reformador, que visa neutralizar as desigualdades sociais por meio da garantia de direitos, e uma sociedade altamente conservadora, dividida em classes. Sem uma melhor compreensão sobre com que classes sociais podemos efetivamente contar para defender o SUS e sobre como ampliar uma coalização social de apoio ao SUS, não teremos força política para enfrentar o processo de privatização da Saúde. Portanto, é necessário um estudo sociológico sobre o SUS e as percepções da população brasileira acerca do sistema púbico de saúde. Nenhuma política social se sustenta sem o apoio da população. Além do apoio parlamentar, que é imprescindível para a existência e o sucesso de uma política pública, é fundamental o apoio da sociedade – e para isso é preciso legitimar o SUS.
Bel Levy
Saúde Amanhã
30/11/2015