“Para ampliar a participação da Saúde no gasto público nacional, a condição essencial é que o setor seja considerado prioritário para o país, o que nos últimos anos não tem acontecido”. Esta é a avaliação do médico sanitarista Sérgio Francisco Piola, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Núcleo de Saúde Pública da Universidade de Brasília (UnB). Na primeira fase do projeto Brasil Saúde Amanhã, Piola coordenou o estudo sobre estruturas de financiamento e gasto do sistema público de saúde, que integra o volume “Estrutura do Financiamento e do Gasto Setorial”, do livro “A Saúde no Brasil em 2030: Diretrizes para a Prospecção Estratégica do Sistema de Saúde Brasileiro”. Nesta entrevista, Piola discute os caminhos para a promoção da universalidade e equidade do Sistema Único de Saúde (SUS) no horizonte dos próximos 20 anos.
Por que investir na prospecção estratégica de futuro como metodologia para definição de políticas públicas de Saúde?
A área da Saúde é muito importante para não ser planejada dentro de uma perspectiva de médio e longo prazo. O setor Saúde impacta fortemente a Economia em função dos recursos que mobiliza. E, além disso, é um componente imprescindível ao bem-estar social. Portanto, não se trata apenas de investir em novas tecnologias. O grande desafio não está na capacidade de inovação, mas em levar os benefícios desse processo para um maior número de pessoas. Neste sentido, mudanças antes impensáveis podem vir a ocorrer nas próximas décadas. E, para isso, a prospecção do futuro é estratégica.
Pode-se dizer que o financiamento da saúde pública depende de decisões de ordem de política fiscal, macroeconômica e, em última instância, de decisões sobre o modelo de proteção social brasileiro. Quanto a esta última questão, no horizonte das próximas décadas, devemos considerar a possibilidade de reverter a duplicidade na atenção à saúde. Na área da Saúde, recursos públicos deveriam ser destinados exclusivamente ao SUS, o sistema universal a que todos os brasileiros têm direito. No entanto, diferentes vias de acesso, lastreadas em maior ou menor proporção por recursos públicos, por meio de renúncia fiscal, espelham as desigualdades que ainda persistem na realidade social brasileira. Essa dinâmica deveria ser desestimulada. Identificar tendências de futuro e suas consequências em longo prazo é fundamental para que se possa tomar as decisões mais acertadas para o SUS e a população brasileira.
No horizonte dos próximos 20 anos, quais as perspectivas para a garantia da universalidade, equidade e integralidade no SUS?
O nosso sistema público de Saúde tem buscado garantir o direito de acesso universal, a equidade e a integralidade na atenção à saúde. Mas, na falta de um efetivo sistema de proteção social, as famílias têm que vender bens, desfazer-se de ativos ou se endividar para custear os gastos com a saúde. Não obstante, até mesmo para conseguir sobreviver, o SUS precisa delimitar melhor o alcance da integralidade da atenção à saúde, pois nenhum sistema público do mundo põe à disposição de todos, de imediato, todos os últimos avanços da medicina.
Por outro lado, por ser o SUS um sistema financiado por recursos públicos, a equidade no financiamento da Saúde dependerá da equidade existente no sistema tributário. Sabe-se que os sistemas tributários nacionais, de uma forma geral, são pouco equitativos. Em alguns países, como o Brasil, o fato da arrecadação oriunda de tributos indiretos ser maior do que a proveniente dos tributos diretos faz com que o nosso sistema tributário seja bastante injusto, pois taxa de forma mais intensa a população de menor renda. Tributa-se mais os rendimentos do trabalho e menos a riqueza acumulada por propriedade ou herança, por exemplo.
Já a equidade no acesso e a utilização dos serviços de saúde, via alocação de recursos, embora seja objetivo muito importante, não é de fácil implementação, sobretudo se o entendimento de alocação de recursos não se referir somente aos recursos financeiros. Alcançar uma distribuição mais equilibrada dos recursos físicos e humanos no SUS não é nada trivial. Ainda com relação à equidade no financiamento e no acesso ao sistema de saúde, um dos problemas a ser enfrentado é o fato de recursos públicos, via renúncia fiscal, financiarem parte do gasto das famílias e empresas com planos e seguros privados de saúde. Não é socialmente justo que uma parcela da população tenha uma “dupla cobertura” de saúde sustentada por recursos públicos.
Que ameaças o avanço de uma “dupla cobertura” pode trazer ao SUS em médio e longo prazo?
Apesar de seus problemas, minha expectativa é que o SUS sobreviva aos ataques atuais e futuros; que consiga sobreviver ao subfinanciamento crônico, que agora se torna mais agudo com o ajuste fiscal. Sobretudo, que consiga resistir às propostas que procuram, insidiosamente, solapar o conceito de saúde como direito social, a exemplo da PEC 451/2014, que inclui a assistência à saúde como direito do trabalhador e obrigação das empresas. Tal iniciativa é mais um favorecimento ao segmento de planos e seguros privados de saúde e um estímulo à segmentação da atenção à saúde, para não dizer à duplicação do sistema de saúde do Brasil.
Um dos cenários que pode ganhar força nos próximos anos é o de aumento dessa segmentação, sobretudo se mantidas as atuais restrições financeiras ao SUS e os incentivos ao setor privado. Se os problemas de gestão do SUS não forem resolvidos, especialmente os relacionados às responsabilidades federativas, o sistema público de saúde será cada vez mais direcionado aos segmentos mais pobres da população, enquanto a cobertura “universal” contemplará os tratamentos mais dispendiosos.
Quais as tendências de investimento do setor privado na Saúde para as próximas décadas e quais os impactos dessa dinâmica para o SUS?
O Brasil tem um setor Saúde muito dinâmico e o investimento privado continuará crescendo. Esse crescimento poderá ser favorecido pela alteração constitucional recente que permite a entrada de capital estrangeiro na Saúde. América Latina, Ásia e Pacífico Sul sãos as novas fronteiras de expansão das empresas de assistência à saúde. A magnitude do gasto privado no Brasil e os incentivos direcionados a esses serviços tornam o país um mercado extremamente atraente para empresas de saúde e investidores estrangeiros. Além disso, ainda em 2008, o Brasil já era considerado o décimo maior mercado na área da Saúde, segundo os relatórios da Comissão Americana de Comércio de Serviços Internacional de 2011 e 2013. Para o SUS, o crescimento de investimentos estrangeiros não trará benefícios. Pelo contrário, pode trazer dificuldades à competição por mão de obra.
A abertura da Saúde ao capital estrangeiro, sem dúvida, acrescentará ainda mais desafios à regulação do setor. A baixa capacidade regulatória, que é um problema estrutural em nosso país, é um dos motivos de atração para grandes empresas internacionais que atuam no setor. Diante desse quadro, a abertura, se era inevitável, uma vez que as pressões externas pela liberação do comércio na área de serviços já eram muitos intensas, poderia ter sido, pelo menos, postergada até que fosse aumentada a capacidade reguladora.
Quais seriam as políticas necessárias para, no longo prazo, ampliar a participação da Saúde no gasto público nacional?
O Brasil apresenta baixo gasto público com a Saúde para um país com um sistema de cobertura universal. Inúmeras foram as iniciativas, algumas já implementadas, para aumentar o gasto público com a Saúde: definição do percentual da receita do Orçamento da Seguridade Social; contribuição específica (CPMF); vinculação de percentual das receitas com estabelecimento de piso (Emenda Constitucional 29); e vinculação da participação da União. Hoje, a Emenda Constitucional 86, de 2015, estabelece a participação da União, para 2016, em 13,2% da Receita Corrente Líquida. Já para 2020, o percentual será de 15%.
Para ampliar a participação da Saúde no gasto público nacional, a condição essencial é que o setor seja considerado prioritário para o país, o que nos últimos anos não tem acontecido. Esta avaliação pode parecer um contra senso, quando se sabe que somente o gasto da União com o SUS passou de R$ 41,3 bilhões, em 2000, para R$ 72,3 bilhões, em 2011, a preços deste último ano. Contudo, como proporção do PIB ou como proporção da receita corrente da União, o gasto federal com o SUS se manteve praticamente o mesmo. Desta forma, só foi cumprida a obrigação, mas não houve a aplicação de recursos adicionais ao piso, como ocorreu nos estados e municípios. Aplicar mais do que o valor mínimo refletiria um grau maior de prioridade. Mas ampliar o gasto público com a Saúde, dentro do gasto público total, requer uma rediscussão sobre todo o orçamento público, inclusive sobre a prioridade sempre atribuída ao pagamento dos juros e encargos da dívida.
Bel Levy
Saúde Amanhã
07/12/2015