Um novo SUS, para uma nova população brasileira

Viabilizar o acesso universal à Saúde e à Educação, em detrimento da lógica neoliberal que vigora atualmente no Brasil. Esta é a principal recomendação de Antônio Tadeu Ribeiro de Oliveira, pesquisador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e colaborador do projeto Brasil Saúde Amanhã. O demógrafo ressalta nesta entrevista a urgência de políticas públicas para enfrentar as desigualdades sociais e iniquidades em saúde, em nível nacional e regional. Ao lado de Maria Monica Vieira Caetano O’Neill, Antônio Tadeu é autor do capítulo “Dinâmica Demográfica e Distribuição Espacial da População: o acesso aos serviços de saúde”, que integra o livro “Brasil Saúde Amanhã: População, Economia e Gestão”, fruto do projeto Brasil Saúde Amanhã a ser lançado pela Editora Fiocruz. Para ele, efetivar a regionalização do Sistema Único de Saúde (SUS) requer estudos aprofundados sobre a população brasileira, suas demandas sociais e necessidades de saúde. E, também, um olhar permanente para o futuro. “Apenas em um horizonte de longo prazo poderemos estruturar um sistema universal de saúde que atenda às novas demandas de nossa nova população”, conclui.

Por que é estratégico para a Saúde desenvolver estudos sobre a população a partir de projeções do futuro?

Estudos sobre a população são fundamentais em qualquer contexto – não existe política pública sem população. Se não existir uma população, não haverá a necessidade de política pública. Por isso, o olhar sobre a população brasileira – e sobretudo o olhar para o seu futuro – é tão importante. Precisamos, sempre, pensar o futuro da população, para onde ela caminha e que tipos de serviços de saúde serão necessários para atender as novas demandas que surgirão. O envelhecimento da população brasileira e o  seu processo de transição epidemiológica estão dados no horizonte dos próximos 20 anos. Agora, precisamos encontrar maneiras para mitigar os seus efeitos negativos, do ponto de vista da Saúde, das políticas sociais e da Economia.

Diante desse desafio, na primeira fase do projeto Brasil Saúde Amanhã trabalhamos na elaboração de macrocenários para o Brasil, a partir da constatação sobre a redução da fecundidade e o aumento da esperança de vida ao nascer. Agora, nesta segunda etapa, visamos descentralizar o estudo, desagregar os dados da prospecção realizada anteriormente em nível nacional, para analisar a situação atual de cada região do país e seus respectivos cenários futuros. Neste exercício prospectivo, consideramos o perfil demográfico da população brasileira,  a sua distribuição espacial no território nacional e a oferta de serviços de saúde pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

O estudo foi desenvolvido em duas frentes, seguindo as perspectivas da demografia e da distribuição espacial da população e da oferta dos serviços de Saúde. Para prospectarmos os cenários futuros ditamos diferentes ritmos para o envelhecimento da população – condição que afetará diretamente os custos da Saúde. E trabalhamos com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que indicam uma projeção da população brasileira até 2060 e dos Estados até 2050. Para fazer essas projeções para o futuro, o IBGE considera algumas hipóteses, como a esperança de vida ao nascer, a fecundidade e a migração. E a partir de um estudo sobre o comportamento destas três componentes da dinâmica demográfica em longo prazo é possível inferir qual é o horizonte que se projeta para o Brasil e para o SUS e quais as políticas públicas necessárias em curto, médio e longo prazo.

Quais as consequências do envelhecimento da população brasileira para o futuro do sistema de Saúde?

O envelhecimento da população brasileira é uma realidade com a qual precisaremos lidar. Este quadro poderia ser alterado, apenas, pelo aumento das taxas de fecundidade,  o que levaria ao aumento das taxas de natalidade. Porém, este é um processo de médio-longo prazo, pois levará de 20 a 25 anos até que os bebês cresçam e se integrem à sociedade formalmente, ao mercado de trabalho, à economia do país. Portanto, diante da realidade que se apresenta, é preciso pensar como o envelhecimento da população impactará a Saúde, a Previdência Social e o desenvolvimento econômico e social do país.

Para a Economia, o envelhecimento da população significa o aumento de custos com a Saúde e a Previdência Social. A chamada transição epidemiológica apresenta novas demandas de alta complexidade ao sistema de saúde, como as neoplasias e doenças cardiovasculares, que têm elevado custo de tratamento, com equipamentos e medicamentos caros. Em um país jovem, por sua vez, as demandas são outras, mais relacionadas às crianças, focadas na prevenção e promoção da saúde e mais baratas.

Considerando um cenário plausível e provável para o futuro da população brasileira, podemos esperar que nos próximos 20 anos a taxa de fecundidade nacional mantenha a tendência de redução, chegando a 1,5 filho por mulher, e a esperança de vida ao nascer permaneça em torno de 80 anos. Este quadro levará ao envelhecimento da população, como efeito da transição demográfica, em níveis que demandará fortes investimentos no sistema de proteção social (incluindo Saúde e Previdência Social). Por outro lado, o cenário mais pessimista para 2030 indica taxas de imigração e fecundidade muito reduzidas, baixo desempenho econômico e consequente saída de população para o exterior, ou seja, mais dificuldades para enfrentar os desafios colocados pelo envelhecimento populacional. De uma forma ou de outra, tudo isso trará consequências diretas para a organização do sistema de saúde e para a economia e o desenvolvimento social do país.

Esse quadro demanda, portanto, investimentos em Educação, em geração de renda e emprego, em melhoria das condições de vida nas cidades. Em outras palavras, é preciso investir no desenvolvimento social do país, sobretudo em Educação. Precisamos ter oferta de emprego, de Educação e Saúde, para que as pessoas queiram ficar no Brasil. Investir em Educação é primordial para gerar conhecimento, produtividade e inovação tecnológica e, assim, garantir autonomia e independência do país na resolução de seus problemas. No caso da Saúde, isso significa formar profissionais de excelência e desenvolver tecnologias de ponta. Tudo isso agudiza a questão do financiamento e da regulação do setor, impactando a oferta de serviços assistenciais, o investimento em recursos humanos e em desenvolvimento tecnológico e a proteção ou liberação de patentes. Enfim, é preciso reinventar o país e o SUS para que possamos enfrentar os desafios do envelhecimento populacional.

Considerando este mesmo parâmetro prospectivo, quais os efeitos destas transformações na escala subnacional e quais os seus impactos para a regionalização do SUS?

Não podemos pensar em políticas de Saúde isoladamente. A forma como a economia brasileira se insere globalmente faz com que o desenvolvimento econômico passe, em maior medida, pelas cidades médias e do interior do país, seja pela produção das commodities agrícolas ou minerais; seja para fugir do custo da mão-de-obra e da maior resistência sindical, situações bem presentes nas grandes cidades. O cenário de maior crescimento demográfico das cidades médias tende a se prolongar pelos próximos anos e isso deve ser levado em conta no planejamento da oferta dos serviços de saúde, que devem se adequar a essa nova realidade.

Repensar a regionalização do SUS faz parte desse processo de melhor atender a sociedade. Por isso, nesta segunda etapa do projeto Brasil Saúde Amanhã aprofundamos as análises sobre o futuro da população brasileira e suas demandas de saúde ao ajustar o olhar para as cinco regiões do país, tão diversas entre si. O estudo indica um cenário de crescimento das cidades médias, na periferia dos grandes centros e no interior do país. Isso indica que as cidades que hoje são médias e pequenas vão crescer – e com isso vão crescer as demandas locais de saúde.  Em função disso, a investigação apontou duas questões relevantes: a assimetria regional na oferta dos serviços de atendimento à saúde, em termos de equipamentos e especialidades, e, como consequência, um deslocamento populacional mais intenso que o necessário, compondo a chamada “peregrinação na linha cuidado”.

Neste sentido, identificamos a necessidade de melhor distribuir os serviços de saúde no território, além de orientar o planejamento da oferta de serviços de saúde de modo a evitar deslocamentos desnecessários da população. Por meio de dados e estatísticas, o estudo demonstra a assimetria do sistema de saúde brasileiro, com serviços e especialidades médicas concentradas no eixo Centro-Sul, inclusive com casos de sobreoferta, enquanto falta acesso no eixo Norte-Nordeste. Falta, portanto, uma política integrada e regionalizada para compreender quais são as demandas locais, como se comportarão no futuro e como devem ser atendidas.

Como o atual momento de retração econômica e a abertura da Saúde ao capital estrangeiro impactam essa dinâmica, em médio e longo prazo?

A retração econômica que o país enfrenta poderá reduzir o ritmo de crescimento das cidades médias e, em alguma medida, redirecionar os fluxos migratórios para os grandes centros. Mas isto não irá alterar o quadro estrutural de nossa inserção periférica na economia global. Ou seja, passado o momento de retração econômica, a tendência é que volte o maior dinamismo das cidades médias e a consequente atração de população para essas áreas.

A entrada do capital estrangeiro na Saúde, por sua vez, obedece à mesma lógica da entrada de capital em qualquer setor da Economia: a busca pelo lucro. E hoje, neste cenário de crescimento dinâmico das cidades médias, o capital estrangeiro passa a se interessar também por esses novos mercados consumidores de Saúde, para além das capitais que já estavam em suas rotas de atuação. E este investimento do capital estrangeiro não chega aonde o país mais precisa, aonde estão, por exemplo, os profissionais vinculados ao programa Mais Médicos. Então esta dinâmica aprofunda ainda mais as desigualdades sociais do país, os desequilíbrios em relação ao acesso aos serviços de saúde e, consequentemente, as iniquidades.

Sobretudo diante da atual retração econômica, que tem impactos mais fortes sobre as cidades menores, com economia mais fraca, o investimento estrangeiro tende a se concentrar ainda mais nos grandes centros urbanos, que já concentram a oferta de serviços de saúde. Trata-se, portanto, de um reforço desta hegemonia, o que é um paradoxo para um sistema de saúde que se pretende equitativo. O que defendemos é outro caminho: que o SUS se transforme, de fato, em um sistema universal. Isso significa que a pessoa mais pobre e a pessoa mais rica do país devem receber o mesmo tratamento, a mesma atenção à saúde. Defendemos, primordialmente, que o SUS se estruture a ponto de equalizar as assimetrias que persistem no acesso à Saúde.

Isso deixaria pouco espaço para a concorrência do capital estrangeiro e do capital privado nacional, que em suas respectivas lógicas enxergam a Saúde como uma mercadoria. No entanto, a abertura do setor ao capital estrangeiro certamente irá intensificar essas desigualdades. No entanto, o país tem seguido uma política neoliberal, que se coaduna perfeitamente aos interesses do capital privado e do capital estrangeiro. Precisamos romper com isso.

Como essas questões devem ser consideradas na agenda de desenvolvimento social do país e de fortalecimento do SUS?

O Brasil passará por profundas mudanças na sua estrutura populacional: ainda teremos uma fase de aumento da população em idade ativa e deveríamos aproveitar este  momento para formalizar a força de trabalho ainda abundante, irrigando a contribuição da Previdência Social. Depois, passaremos por uma fase que combinará a redução dos segmentos etários de crianças e jovens em idade de trabalhar e o aumento continuado da população idosa.

O desenvolvimento social do país passa, necessariamente, pela compreensão desses desafios. Para afrontar essas questões é de fundamental importância avançar em inovação tecnológica e aumentar a nossa produtividade, o que só será possível com fortes investimentos em Educação universal e de qualidade. Esse movimento, se bem encaminhado, nos permitirá avançar na implementação de políticas universais de Educação e Saúde. Com isso, não apenas o SUS se fortalecerá, como será instrumento chave na condução de uma política nacional que buscará eliminar a desigualdade na oferta dos serviços de Saúde, agregando o fator qualidade.

Também precisamos considerar que  o Brasil passa por duas transições demográficas. São ritmos diferentes e, logo, implicações distintas para o país e cada uma de suas regiões. Enquanto as doenças crônicas não transmissíveis tendem a se intensificar no Sul e no Sudeste, exigindo mais recursos para a atenção à saúde de idosos nestas regiões, o Norte e o Nordeste enfrentam desafios relacionados às chamadas doenças da pobreza, que ainda persistem fortemente nestes territórios. E, ao mesmo tempo, começam a apresentar os primeiros sinais de envelhecimento da população. É preciso pensar em todas essas realidades.

Isso acontece porque o Sul e o Sudeste apresentam taxas de fecundidade mais baixas e uma esperança de vida ao nascer mais elevada. Entender essas tendências é crucial para planejar políticas públicas de Saúde contundentes no médio e no longo prazo. No Sul e no Sudeste será preciso ampliar e intensificar o cuidado ao idoso. No Norte e no Nordeste, por sua vez, ainda enfrentaremos problemas com as crianças. Ter as projeções de futuro – para o país e desagregadas por região – é fundamental para o planejamento de políticas de Saúde que atendam as reais necessidades das diferentes populações do Brasil.

Então hoje precisamos trabalhar para preparar o sistema de saúde para esta nova realidade. E é isso que estamos fazendo ao estudar o futuro. O sistema de saúde precisa estar preparado para eliminar todas as assimetrias que existem no país, respondendo às desigualdades gerais da nação e às iniquidades específicas de cada região. Isso significa colocar em prática a regionalização do SUS.

O que pode ser feito no presente para mitigar os efeitos negativos do envelhecimento populacional e garantir um futuro mais estável para o Brasil e o SUS?

O primeiro passo, sem dúvida, é retomar o crescimento econômico. Sem uma economia forte é impossível investir em Educação e Saúde como áreas prioritárias. E, por mais paradoxal que possa parecer, para garantir a reposição – e quiçá o crescimento da força produtiva nacional – é preciso investir em políticas de incentivo à natalidade, em curto prazo no eixo Sul-Sudeste e em longo prazo no eixo Norte-Nordeste. Uma medida como essa não pode ser desassociada de ações de planejamento familiar, para que o crescimento aconteça de forma equilibrada. Precisamos ter claro que ainda temos um grande contingente de pessoas tendo filhos acima de sua capacidade social e, ao mesmo tempo, muitas famílias com um ritmo de procriação abaixo do que chamamos de “reprodução produtiva”. Então, em termos de políticas públicas, temos que trabalhar considerando essas duas tendências.

Do ponto de vista demográfico, uma medida para mitigar os efeitos do envelhecimento da população sobre a economia é adotar políticas de migração. Isto é, trazer pessoas de fora, em idade laboral, para que esses profissionais entrem no mercado de trabalho brasileiro, produzam riqueza, paguem impostos, aportem recursos para a Saúde e a Previdência Social. São políticas que o país deveria empreender, mas que não estão dadas. E, seguindo o curso natural de nossa demografia, o cenário de longo prazo, sem dúvida, é a redução das taxas de fecundidade e maior envelhecimento populacional.

Em suma, o que defendemos é um projeto de país. Defendemos que, em vez de políticas pontuais, sejam realizadas reformas estruturais de forma a garantir o melhor futuro possível para o Brasil e para o SUS. Para isso é preciso adotar uma outra lógica de desenvolvimento e investir em qualidade de vida, para que os brasileiros, diante da oferta de Saúde,  Educação, trabalho e renda, decidam ficar no país, criar seus filhos aqui e, assim, contribuir para o fortalecimento da produtividade nacional. Isso é fundamental para que, no futuro, o país aumente sua capacidade produtiva, em termos de recursos humanos e tecnológicos. E isso tudo irá se reverter para a Saúde, por meio do desenvolvimento de patentes, insumos e serviços públicos cada vez mais qualificados.

Bel Levy
Saúde Amanhã
30/03/2015