A economista Érika Aragão, diretora do Departamento de Economia da Saúde, Investimento e Desempenho (DESID) da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE) do Ministério da Saúde, conversou com a Iniciativa Saúde Amanhã sobre o cenário que se anuncia com a Reforma Tributária proposta pelo Governo Lula e aprovada pelo Congresso Nacional. Apesar das incertezas sobre a regulamentação da reforma, que inclui alíquotas e detalhamento sobre regimes especiais de tributação, Erika afirmou já ser possível antecipar alguns bons resultados das mudanças que estão por vir. O primeiro e mais visível deles é a simplificação do sistema tributário que, entre outras impactos, porá um fim à guerra fiscal entre estados e entre municípios. Ela destacou ainda que as isenções previstas na reforma tendem a tornar o complexo industrial da saúde mais competitivo, o que contribui para a atual política de governo que persegue a soberania sanitária, e que a regulamentação dos novos impostos que se seguirão à promulgação da emenda constitucional que altera o sistema tributário brasileiro, apesar de disputada por vários lobbies, abrirá novas oportunidades para o financiamento da saúde pública. “Sou otimista”, resumiu, dizendo esperar que a segunda fase da reforma que se dedicará aos impostos sobre renda e sobre patrimônio traga melhores notícias para a saúde, com o aumento do volume de investimentos no setor público.
Por Luciana Conti
Quais impactos Reforma Tributária aprovada pelo Congresso Nacional pode ter sobre o setor de saúde?
A primeira coisa a se destacar é que temos um sistema tributário bastante complexo atualmente e a simplificação é algo que já deveria ter sido feita há muito tempo e é muito importante. Aprovar uma reforma que vem sendo discutida há cerca de 30 anos já é um ganho. Além disso, a emenda aprovada tem vários aspectos positivos. O primeiro deles é pôr fim à guerra fiscal, com a tributação deixando de ser na fonte e passando a ser no fim da cadeia produtiva, o que acaba com a possibilidade de estados e de municípios fazerem concessões fiscais para atrair empresas. Essa simplificação não necessariamente está vinculada a uma grande transformação, que depende da discussão que virá agora, após a aprovação da reforma proposta pelo governo, mas uma coisa já está posta: a saúde já está colocada como uma área prioritária, com a previsão de subsídios, o que é bom. Digo saúde no sentido da produção industrial, que tende a ser impactada positivamente e tornar-se um setor mais produtivo com as desonerações das exportações e de investimentos. Isso é muito bom agora que estamos vendo um grande investimento do Programa de Aceleração do Crescimento 2 (PAC) no complexo industrial da saúde, visando a soberania sanitária. A dependência externa de produtos de saúde tem consequências muito ruins em momentos de crise, como vimos na pandemia da Covid-19, onde cada um bota o preço que quer nos produtos e quem não tem soberania sanitária fica na dependência dos países com autonomia. Como a Reforma Tributária prevê desoneração nas exportações e nos investimentos e tem um foco grande na área de saúde, um aspecto positivo que vislumbramos é o aumento da competitividade do setor produtivo, o que significa dizer mais autonomia sanitária para o Brasil, mais produtos para o Sistema Único de Saúde (SUS) e maior produção nacional para a saúde. Ainda não sabemos qual será a magnitude desses benefícios, mas sabemos que na hora da briga a saúde estará resguardada por ser prioritária.
A Reforma Tributária vai garantir isenção de impostos a serviços de saúde e medicamentos e manter o regime específico de tributação para os planos de saúde. Como essas regras impactam o SUS? Elas significam transferência de recursos públicos para o setor privado?
Na área do consumo, ainda não está fechado como serão as alíquotas e que produtos e serviços serão desonerados. Quem vai definir isso serão os projetos de lei e as leis complementares a serem discutidas após a reforma. Só teremos como saber qual impacto dessas mudanças no SUS quando soubermos quais setores serão mais desonerados ou onerados. Se houver mais desoneração ou subsídio para planos de saúde ou hospitais privados, por exemplo, será ruim para o SUS, mas será bom se esses benefícios forem para serviços que atuam de forma complementar ao SUS. As desonerações dos medicamentos se recaírem sobre aqueles prioritários para o SUS serão boas para o setor público. Mas isso ainda não está definido e o máximo que podemos fazer, enquanto saúde pública, é acompanhar o que vai acontecer daqui para frente. Mas acho muito pouco provável que haja um amento de subsídio para a saúde privada, porque hoje já há bastante desoneração. Eu sou otimista e acredito muito no diálogo intersetorial que existe no governo. Minha expectativa é de que, como tem sido até agora, a posição do governo nessas desonerações seja pactuada. Há também a pressão dos movimentos da reforma sanitária, que acompanham de perto esses movimentos.
A senhora acredita que a tendência do Congresso Nacional ao discutir a regulamentação da Reforma Tributária seja de aumentar as isenções para o setor privado ou mantê-las no nível atual?
É difícil antecipar esse cenário. Sabemos que haverá uma alíquota diferenciada para o setor da saúde e que ela vai ser definida em lei. Hoje o foco é a aprovação da reforma em si, a questão da regulamentação das desonerações virá em um movimento futuro. Mas, como falei, sou uma pessoa otimista. Esse Congresso não é favorável, tem uma posição não necessariamente alinhada com as perspectivas de desenvolvimento que o Governo Lula trouxe como proposta, mas as relações nesse intervalo de tempo podem mudar. Essa questão, como dizemos em planejamento, não está sob nossa governança.
Como ficam os repasses constitucionais para a saúde com os novos impostos sobre valor agregado, que reduziram o sistema fiscal brasileiro a três impostos – a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e o Imposto Seletivo (IS)? Já dá para prever o impacto da reforma sobre as disparidades regionais?
A grande questão é a redistribuição, já que os IVAs da Reforma Tributária estão juntando impostos federais, estaduais e municipais. Essa questão do pacto federativo exigirá muita discussão. O nosso modelo de IVA assimilou também as contribuições, como PIS e Cofins, e como os recursos advindos delas serão redistribuídos é uma questão que vai precisar ser discutida. Hoje há definições gerais sobre a redistribuição. O modelo da reforma é dual, as contribuições sobre bens e serviços será de competência federal e o IBS dos estados e municípios. A perspectiva é que seja criado um comitê para definir a nova ordem da distribuição desses recursos.
Outro ponto relevante discutido durante a reforma foi o Imposto Seletivo (IS), que está sendo chamado de Imposto do Pecado, que taxa produtos nocivos à saúde, como o tabaco, o álcool, os alimentos ultraprocessados e os agrotóxicos. Qual a importância desse imposto para a saúde?
A tributação sobre a produção e comercialização de produtos prejudiciais à saúde é uma briga que vários movimentos travam há muito tempo. A gente acompanhou o quanto a maior oneração foi importante na área de tabaco, de cigarro. Essas políticas desestimulam o consumo desses produtos, que passam a ficar mais caros e menos competitivos. Hoje é mais barato comer um biscoito do que comer uma fruta. Temos muita dificuldade com o lobby dos alimentos, dos açucarados e dos ultraprocessados e essa oneração é importante para as políticas de prevenção à saúde. Nesse caso, tem a perspectiva de uma grande parte da arrecadação do imposto do pecado ser transferido para os estados e os municípios, o que seria uma forma importante de redistribuição de recursos no país.
A reforma aprovada pelo Congresso tem um caráter redistributivo?
Até agora a Reforma Tributária tratou do consumo. Os impostos sobre bens e serviços têm caráter regressivo, com todos pagando a mesma coisa independente da renda. Se você reduz, por exemplo, o imposto sobre a cesta básica todo mundo que come feijão vai se beneficiar. A população será beneficiada por esse reforma de forma indireta. Apesar de suas limitações, a simplificação do sistema tributário é necessária. Ela pode não ser a melhor, mas é a possível. Do jeito que está não funciona, traz desigualdade entre estados e municípios e de modo geral a simplificação é muito importante, mas não resolve tudo. As mudanças que estão sendo discutidas agora têm um caráter redistributivo apenas entre os setores da economia, com a redução de desigualdades. Se tivermos menos isenção na área privada de saúde o setor público agradece. Na área da saúde, esperamos mais estímulo para a produção de bens para a saúde, para a exportação e para os investimentos na saúde que são necessários.
O Ministério da Fazenda anunciou uma segunda etapa da reforma, voltada principalmente para a tributação da renda e do patrimônio. Que questões relevantes para o setor saúde devem ser observadas nesse segundo momento?
É preciso trabalhar no sentido de limitar as renúncias fiscais do setor privado, caso contrário haverá uma transferência de recursos do público para o privado e redução de arrecadação. Com o novo arcabouço fiscal, o ideal é que mantenhamos um bom nível de arrecadação para garantirmos investimentos públicos. Estamos muito atentos a essa questão, como serão esses impostos após uma reforma. Temos que acompanhar, nas discussões da segunda etapa da Reforma Tributária, a relação entre os impostos sobre a renda e o patrimônio e aqueles sobre o consumo. Em boa parte dos cerca de 170 países que adotam imposto sobre o valor agregado, os tributos sobre a renda e o patrimônio têm um peso maior na carga tributária do que aqueles sobre o consumo. Ainda será preciso discutir para onde serão destinados os recursos advindos da reforma. Isso faz parte da disputa. Mas repito que sou uma pessoa otimista. Acho que seria muito complicado a saúde perder no contexto de pós pandemia em que vivemos, com o reconhecimento da importância do SUS para proteger a vida. O que vivemos foi muito duro. Acredito que a saúde tende mais a ganhar do que a perder.