Entre a emergência da variante ômicron, tensões geopolíticas e as discussões do tratado sobre pandemias, Conselho Executivo da OMS se reúne

A emergência da variante ômicron adiou mais uma vez o tão esperado arrefecimento e controle da pandemia de Covid-19. A explosão dos contágios em todo o mundo, as persistentes e profundas iniquidades na distribuição global de vacinas, as dificuldades dos países centrais com a “epidemia dos não vacinados” e as ameaças sobre a retomada da atividade econômica elevaram novamente a temperatura da discussão internacional sobre a responsabilidade das potências globais e dos organismos multilaterais na condução da resposta à crise sanitária global. E, como pano de fundo, a deterioração do cenário geopolítico com a escalada das disputas entre, de um lado, Estados Unidos e Europa ocidental, fragilizados, e de outro China e Rússia, cada vez mais próximas.

É nesse contexto que ocorreu, entre os dias 25 e 29 de janeiro, a 150ª reunião do Conselho Executivo da Organização Mundial da Saúde (OMS), em Genebra, Suíça. Um primeiro fato marcante, apesar de já altamente esperado, foi a votação unânime do conselho pela recondução de Tedros Adhanom para um segundo mandato de cinco anos como diretor-geral da entidade. As eleições ocorrerão durante a Assembleia Mundial de Saúde, em maio. O gesto reforçou o reconhecimento dos Estados membros da liderança de Tedros, especialmente durante a pandemia de Covid-19.

A discussão mais esperada foi sobre a regulação internacional sobre emergências sanitárias. O Conselho Executivo da OMS aprovou um documento preliminar proposto pelos Estados Unidos para fortalecer e reformar a International Health Regulations, único marco legal internacional em ameaças sanitárias da OMS. Em declaração oficial, convocou os Estados membros a discutirem emendas e indicou avanços na formação de um comitê sobre emergências sanitárias.

Apesar da legitimidade de Tedros e das ambiciosas diretrizes anunciadas para a próxima gestão pelo diretor-geral, os desafios da OMS são enormes. Mesmo com todo o progresso científico na compreensão da Covid-19 e no desenvolvimento de diversas alternativas terapêuticas, em especial as vacinas, é notável o fracasso do consórcio Covax Facility, espécie de parceria público-privada que representou a principal da iniciativa da OMS para promover o acesso às vacinas. A situação de brutal desigualdade na distribuição evidenciou a fraqueza e a baixa legitimidade do organismo internacional para coordenar, liderar e arbitrar uma resposta global à emergência sanitária. A crescente percepção sobre a necessidade da construção e reconstrução de sistemas de saúde públicos e universais também não encontrou eco nas propostas e ações da OMS, prevalecendo a visão da década anterior, centrada no conceito de “cobertura universal de saúde”.

Isso também se relaciona a problemas estruturais da organização. Enquanto os Estados membros, especialmente as grandes potências, se recusam a ampliar as contribuições obrigatórias na escala necessária, cerca de três quartos do financiamento continua sendo oriundo de contribuições voluntárias de entidades filantrópicas, como a Fundação Bill e Melinda Gates, e empresas privadas. Essa dependência e os conflitos de interesses estabelecidos dificultam, por exemplo, que a OMS se contraponha a importantes doadores para defender a flexibilização dos acordos de propriedade intelectual sobre tecnologias relacionadas à Covid-19, o que poderia beneficiar diretamente os países do Sul Global.

A influência dos doadores nas prioridades, organização e ações da entidade dificultam o direcionamento de esforços e fortalecimento de capacidades em aspectos estratégicos da governança global em saúde, restando muitas vezes uma agenda de discussão fragmentada e insuficiente frente aos desafios trazidos pela pandemia no campo saúde pública. Além disso, em um momento global de elevação das tensões geopolíticas, pairam dúvidas sobre a disposição das grandes potências econômicas e militares em dar maior poder e legitimidade à OMS, como parte de uma reforma mais ampla das instituições e do próprio sistema internacional pós Covid-19.

Nas negociações do tratado internacional sobre pandemias, um dos aspectos mais delicados é justamente a autoridade da OMS para fazer inspeções sanitárias em qualquer surto. Não apenas China e Estados Unidos, mas também o Brasil e outros países emergentes veem a proposta como possível violação à soberania. Outros pontos sensíveis são o acesso a tecnologias e o compartilhamento de amostras biológicas.

Falando em Brasil, o país foi indicado pelas Américas para fazer parte do órgão restrito de países com a missão de negociar um tratado internacional sobre pandemias. Apesar do isolamento diplomático, apostou-se na mudança de ares no governo central e na experiência do Itamaraty em construir consensos entre diferentes grupos de países. O órgão negociador também contará com Egito, Japão, Holanda, África do Sul e Tailândia e deve começar a desenhar as bases do acordo para discussão nos próximos anos.

Leonardo Mattos
Saúde Amanhã
15/02/2022