A incorporação do direito ao aborto ao texto da Constituição francesa, aprovada no último dia 4 pelas câmaras alta e baixa, convocadas pelo presidente Emmanuel Macron para uma sessão extraordinária no Palácio de Versalhes, foi uma resposta da sociedade e do Estado francês à onda conservadora que tem ameaçado não apenas o debate em torno da interrupção da gravidez, mas também as legislações de países que o garantem totalmente ou parcialmente, como é o caso do Brasil. O episódio mais notório se deu com a votação da Suprema Corte dos EUA que, em 2022, 49 anos depois de reconhecer a legalidade do aborto, baseada no direito à privacidade previsto na 14ª Emenda, decidiu retroceder e dar aos Estados federados a prerrogativa de legislar pela legalidade ou não do procedimento. Estimativas de ativistas feministas nos EUA dão conta de que cerca de 20 milhões de mulheres estadunidenses tiveram negado pela sentença o acesso ao aborto legal.
A decisão do congresso francês foi tomada com ampla margem de votos – dos 852 deputados e senadores reunidos, 780 votaram a favor e 72 contra – e teve o apoio de 85% da população. A legislação francesa foi historicamente muito severa com o aborto, chegando a considera-lo um crime contra a unidade nacional, o Estado e o povo francês e, por isso, sendo passível até de pena de morte. Em 1943, uma aborteira foi guilhotinada como exemplo. O aborto só foi legalizado em 1975, com a aprovação da lei proposta pela então ministra da Saúde Simone Veil, ícone da emancipação feminina e sobrevivente do Holocausto. O projeto, para ser aprovado na época, se centrava na saúde pública e não nos direitos das mulheres de dispor sobre os seus corpos e era incialmente bastante restritivo. A lei, que incialmente valia apenas por cinco anos, sofreu várias mudanças, a mais recente em 2022 quando passou a permitir abortos até a 14ª semana de gravidez, financiados pela seguridade social e sem a necessidade de justificativas. Essas mudanças ao longo da história, fizeram com que a França se tornasse um dos países que mais facilitam o acesso ao aborto. Dados do Estado francês mostram que um terço das francesas recorrem ao aborto pelo menos uma vez na vida para interromper uma gravidez. A promulgação da emenda aprovada dia 4 de março foi realizada dia 8, como parte das comemorações do Dia Internacional da Mulher.
No dia seguinte à aprovação do direito constitucional pelo Congresso, a TV francesa exibiu o filme L’Événement, de 2021, da diretora Audrey Diwan, uma adaptação para o cinema do livro homônimo da escritora Annie Ernaux, que, em 2022, foi laureada com o Prêmio Nobel de Literatura. O livro trata do drama do aborto ilegal e a violência que ele perpetra contra a mulher sob a ótica das memórias da autora, que, em 1963 aos 23 anos, se submeteu ao processo de um aborto clandestino para interromper uma gravidez indesejada. No Brasil, o livro e o filme ganharam o título de O acontecimento.