Sempre que o mundo se depara com uma epidemia, a narrativa predominante gira em torno dos problemas e dificuldades gerados à população. No entanto, o Brasil, apesar das dificuldades econômicas e políticas recentes, assumiu um protagonismo no enfrentamento ao mosquito Aedes aegypti, transmissor do vírus da zika. Afinal, a estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS), apesar de suas já conhecidas deficiências, possui ampla capilaridade e complexidade que permeia assistência, diagnóstico, vigilância, pesquisas, desenvolvimento e inovação tecnológica. Para tratar do tema, Região e Redes ouviu o presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Paulo Gadelha. “Essa experiência com a epidemia zika é fruto de um trabalho coordenado, mas precisamos olhar para a frente porque esse não será o nosso último caso de epidemia.”
Região e Redes: A Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu alerta mundial sobre a epidemia de zika. O Brasil é o país mais atingido, mas também tem uma grande vantagem em relação aos demais: o SUS. Gostaríamos que o senhor falasse sobre o papel do SUS, como sistema público, universal e integral, no enfrentamento dessa epidemia.
Paulo Gadelha: Em sua vinda ao Brasil [em fevereiro passado], a diretora-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Margareth Chan, destacou para a mídia e em encontros reservados que a solução para o zika vírus passa pelo Brasil. Isso é um reconhecimento importante. O problema surgiu com características muito novas, atingiu uma grande população que não tinha imunidade contra o vírus e o Brasil teve uma importante capacidade de resposta. A evolução da ciência e desenvolvimento tecnológico permitiu que o problema fosse identificado muito rapidamente, e o governo pode decretar emergência sanitária. Tudo num período curto. Existem convenções internacionais e nacionais que exigem um processo muito mais lento de avaliação, com discussões das causas até que se permita assumir decisões. Tudo isso [a agilidade] está associado a duas dimensões: ao SUS e a uma base tecnológica nacional forte.
RR: A Fiocruz, uma instituição do SUS, tem demonstrado capacidade técnica, tecnológica e de formação de recursos humanos que ajudam o país com esse e outros problemas. Qual a importância de uma instituição forte no campo da pesquisa e desenvolvimento tecnológico para a sustentabilidade do SUS?
PG: Dada a experiência da Fiocruz, foi possível otimizar seu acervo institucional e dar respostas muito rápidas. Foi possível observar a evolução e a descaracterização do vírus em líquido amniótico e, depois, passando pela barreira placentária, até poder ter clareza que o zica causa malformação congênita, em especial a microcefalia, e tem um efeito significativo em Síndrome de Guillain-Barré [condição rara em que o sistema imunológico ataca células dos nervos periféricos causando fraqueza muscular e perda de sensibilidade]. O problema maior aconteceu no Brasil. E, quando Margareth Chan diz que a solução passa pelo Brasil, é porque nós temos aqui material genético capaz de gerar referências para a construção de painéis, para a validação de testes, para o processo de desenvolvimento de vacinas e para pesquisas clínicas. Tudo isso tem que acontecer em local onde se tem presença significativa de casos. E também onde se tem capacidade de estrutura para organizar essa pesquisa clínica multicêntrica em várias regiões. Nesse caso, tanto a Fiocruz como várias instituições brasileiras têm dado respostas muito significativas.
Nós já estruturamos uma organização de pesquisa em três locais no Brasil (Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro) e estamos fechando agora ações conjuntas de pesquisa do Brasil e de outros países. Essa experiência com a epidemia zika é fruto de um trabalho coordenado, mas precisamos olhar para a frente porque esse não será o nosso último caso de epidemia. Temos que dar conta dos desafios atuais mas também consolidar estruturas permanentes de respostas para o futuro.
RR: Quais são, na sua visão, as principais contribuições da Fiocruz para o desenvolvimento da pesquisa no Brasil?
PG: A nossa história como instituição está no nascedouro de todo um processo de vínculo e criação de estruturas permanentes entre os desafios da saúde, a base de pesquisa e desenvolvimento tecnológico e dos temas e demandas nacionais da sociedade brasileira. Nascemos respondendo a uma emergência sanitária no início do século passado [a Fiocruz foi criada para fabricar soros e vacinas contra a peste bubônica]. Ao longo desse processo algumas características estruturais têm sido recriadas e adaptadas a cada momento histórico. Ser parte do Ministério da Saúde faz com que a instituição tenha direcionalidade de demandas e capacidade de otimizar a sua pesquisa para a resolução de problemas. Outra característica importante é lidar com uma diferenciação enorme de atividades, mas que geram sinergia, como é o caso agora da zika. Temos áreas de referência e excelência estudando, já há muito tempo, malformações congênitas no Instituto Nacional de Saúde da Mulher e da Criança, no Instituto Nacional de Tecnologia… Mas também temos as áreas que trabalham, desde o início da instituição, com a questão dos vetores e isso perpassa toda a Fiocruz. Temos o pessoal que lida com modelagem e respostas à saúde pública. Outro pessoal que trabalha a comunicação social e a mobilização.
RR: Não é possível pensar o SUS sem esse suporte tão amplo…
PG: Essa diversidade nos dá uma vantagem comparativa porque nos permite dominar todo o processo de produção de insumos e tecnologias. Tudo isso nos dá também a capacidade de atuar de maneira compartilhada e em rede, tanto com instituições públicas como privadas. Essa característica está dada por um ethos da instituição. Isto é, trabalhamos conjuntamente em um processo de longo prazo, não apenas com temas da pesquisa, mas também ajudando a construir uma base produtiva nacional para permitir que o país seja capaz de dar respostas às demandas do conjunto da população e do SUS.
Temos a clareza da generosidade do sistema público brasileiro, da sua concepção social a da sua concepção de responder do ponto de vista da equidade social. O SUS será um projeto sem viabilidade se nós não tivermos no país uma base de pesquisa tecnológica e industrial suficiente para fornecer os insumos e as tecnologias compatíveis com o nosso desenvolvimento econômico. Isso está no cerne e na trajetória da Fiocruz.
RR: A epidemia zika deu força novamente ao debate sobre os determinantes sociais da doença para além do campo da saúde. Saneamento, moradia, educação, urbanização e questão ambiental foram alguns dos temas que alimentaram as discussões pelo país. Qual a importância dessa abordagem para o enfrentamento das epidemias?
PG: Temos tido uma verdadeira cruzada para que a determinação social da doença receba uma atenção e relevância não só como partido acadêmico. O grande problema é a maneira como os governos enfrentam as questões de emergência. Por um lado, é compreensível que se queira dar resultados imediatos dada a magnitude dos danos. Mas o grande problema é que se você não lida com os problemas estruturais acaba buscando soluções que são claramente muito mais custosas. Recentemente, a OMS liberou um relatório que demonstra que, no caso da dengue, os efeitos sobre a carga de doenças podem ser minimizados em torno de 90% se operarmos iniciativas de melhorias ambientais factíveis. Não estamos falando de mudanças de natureza de modelo ideal. Coloque-se aí a questão do saneamento, do acesso à água, da recuperação de matas. Esse processo pode dar conta não apenas da zika, mas de um conjunto de problemas e ameaças que vem pela frente. Muitas vezes lidamos com a resposta de curto prazo sem perceber que é muito mais custosa em amplos sentidos. De todo modo, não podemos fazer o discurso de que aí estão as causas últimas e não responder às demandas imediatas. A situação está dada, precisa de respostas rápidas, precisa reduzir vetor e desenvolver vacina. Essas são soluções que têm uma possibilidade de impacto bastante forte em curto e médio prazo. O grande desafio é como associar essas duas questões.
RR: Esse grande sistema sobre o qual você fala sofre de problemas crônicos, como o subfinanciamento. A falta de recursos se intensifica a cada crise e o SUS está cada vez mais ameaçado. Como essa questão deve ser enfrentada a fim de garantir as conquistas pós Constituição de 1988 e para darmos conta dos desafios do futuro?
PG: Esse é o grande desafio a se colocar: que sociedade e que país a gente quer? Como citei, a capacidade de resposta do Brasil foi invejada. A partir da ponta do atendimento num hospital no Nordeste, acionar um sistema de vigilância, ciência e tecnologia que são dimensões do SUS. O outro lado da moeda é que nós estamos preparados para dar resposta ao que acontece com a presença significativa de crianças microcefálicas e outras com retardo no desenvolvimento, ou mesmo os casos crescentes de Guillain-Barré. Isso tem um impacto enorme. Nós temos a vantagem de contar com a estratégia de saúde da família no campo da atenção básica. Temos uma experiência longa na educação popular em saúde. Tudo isso está sendo chamado para dar respostas, aumentando a demanda e o impacto sobre o sistema.
Fazemos aqui cenários prospectivos com o Saúde Amanhã que nos mostram que uma população com expectativa de vida de pouco mais de 60 anos apresentava uma carga de doenças e demandas por serviços de saúde totalmente diferenciada de uma população com uma expectativa de vida entre 70 e 80 anos. Esta população idosa demanda cuidados contínuos, desde processos de prevenção até de alta complexidade e também assistência social.
RR: Essas mudanças demográficas, epidemiológicas, ambientais agrava ainda mais a falta de recursos…
PG: Se nós não tivermos uma resposta muito na contramão do que temos percebido com o desfinanciamento do SUS e com a incapacidade de se preparar para a dimensão dos desafios que virão, esse sistema tão bem concebido e tão generoso vai ter (e já está tendo) um estresse, uma dificuldade de lidar com essa realidade. O pior é que é um mecanismo perverso. Os atores políticos não se mobilizam para dar as condições de sustentabilidade do SUS ao mesmo tempo que imputam ao SUS todos os aspectos negativos do não atendimento às demandas da saúde.
Esse mecanismo perverso está envolvido com as visões cada vez mais hegemônicas de concepção de sociedade e de papel do Estado. E também com processos, investimentos e aberturas no sentido de transformar a saúde em mercadoria. Isso está colocado escancaradamente no plano internacional e com presença cada vez mais forte no Brasil. Dimensões importantes das crises política e econômica que estamos vivendo vão se expressar também em propostas totalmente regressivas e contraditórias com o que nós construímos. E aí está um grande perigo. Certamente a zika e suas consequências é uma ponta do iceberg se nós não revertermos essa tendência.
RR: Corremos o risco de ter o SUS transformado em um modelo de mínimo social, fragmentado e direcionado?
PG: Sem dúvida! Toda a pressão e alguns projetos que antes eram mais implícitos e que hoje são explícitos estão colocando o tensionamento nessa direção. Já se enfrentava internacionalmente o embate entre a nossa visão de sistemas universais e a defesa de coberturas universais, colocadas como cesta mínima, e processos fragmentados. A conjuntura brasileira de hoje se torna muito mais favorável a essa outra concepção norteadora do SUS. Porque as teses colocadas são de redução da presença do Estado, teses de que a abertura ao capital estrangeiro resolveria problemas de demanda social relacionadas à saúde. Tudo isso está indo na contramão do nosso ideário.
RR: Quais são os principais apontamentos de futuro para o SUS hoje? Por onde podemos ou devemos caminhar?
PG: Precisamos enfrentar questões mais amplas que conferem centralidade ao SUS, desde o financiamento até a capacidade de conformação de modelos de gestão e os debates sobre modelos tecnológicos. E também discutir como se dá o modelo de desenvolvimento do país, envolvendo situações mais amplas – que levam à perda de qualidade de vida e aos problemas de saúde. É necessário ainda discutir a possibilidade de se construir uma base produtiva e de pesquisa tecnológica que consiga dar sustentabilidade ao desafio imenso que é ter um sistema universal para uma população de 200 milhões de habitantes. O projeto de sociedade e de país, o papel do Estado, o modelo de desenvolvimento sustentável, conectados com demandas sociais do campo da saúde, serão os grandes determinantes da viabilidade e consolidação do SUS.
RR: A reforma sanitária brasileira sempre demonstrou ligação íntima entre saúde e democracia. Hoje, a conjuntura política e econômica nos impõe uma agenda recessiva que coloca em risco os direitos universais, como o SUS, a Previdência, o direitos trabalhistas. Como você vê o que tem acontecido no país, principalmente nos últimos meses?
PG: Nos próximos dias vamos emitir um posicionamento da Instituição. Mas acredito que a linha a ser adotada é dar sequência ao nosso trabalho de participação da Fiocruz na construção do SUS a partir do lema “saúde e democracia”. Acredito na defesa da democracia e da legalidade democrática, no sentido de que se deve respeitar a manifestação colocada nas urnas. Devemos estar totalmente atentos e com capacidade de respostas nos processos manipulatórios que estão colocados no jogo político.
Portal Regiões e Redes, março 2016