Por Melissa Pomeroy e Bianca Suyama*
A agenda de desenvolvimento Pós 2015, que culminará nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), aspira ser o novo marco global para o desenvolvimento. Uma vez acordada, será essa agenda que orientará as políticas e investimentos de países em desenvolvimento e, principalmente, daqueles classificados como países de baixa renda, que dependem sobremaneira da cooperação internacional e dos financiamentos geridos pelas Instituições Financeiras Internacionais (IFIs). Assim como aconteceu com os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs), o consenso ao redor dos ODS significa um pacto político da comunidade internacional e deverá, teoricamente, orientar a agenda das agências de cooperação internacionais e organizações multilaterais, servindo como instrumento para canalizar recursos e definindo formatos e estratégias de atuação.
Se por um lado os ODMs foram importantes para elevar e legitimar internacionalmente a importância do combate à pobreza, em um período marcado pelo evidente fracasso do decálogo de recomendações e condicionalidades do Consenso de Washington, por outro são inúmeras as críticas relacionadas ao seu processo de construção e resultados. Em busca de um consenso entre os diversos Estados-membros da ONU, os ODMs se constituíram em oito metas generalistas, baseados em receituários e desvinculados de outros compromissos firmados em âmbitos multilaterais ou regionais. Ainda, as metas pecavam por sua falta de perspectiva de gênero e sua pouca reflexão sobre a desigualdade como causa da pobreza.
O processo de elaboração da agenda pós 2015 apresenta algumas respostas às críticas elaboradas aos ODMs, mas o acordo selado na 69ª Assembleia da ONU em relação aos ODS segue se configurando como uma agenda de desenvolvimento mínima onde desafios e contradições substantivos persistem: esteve formalmente aberta à participação da sociedade civil, mas esta se caracterizou por desigualdades de recursos, informações e âmbitos de decisão; apresenta avanços nas questões de gênero (transversalmente e, marcadamente, em seu objetivo 5), mas não registra mudanças significativas em relação aos direitos sexuais e reprodutivos e à população LGBT; reconhece a importância dos povos indígenas, pescadores e mulheres rurais para o combate à insegurança alimentar, mas não os reconhece como atores fundamentais para o equilíbrio climático; baseia-se no tripé desenvolvimento econômico-social-ambiental, proposto pela Rio +20 e incorpora a necessidade de diminuir a desigualdade entre e dentro dos países (objetivo 10), mas sobrevaloriza o papel do setor privado como alternativa de financiamento para o desenvolvimento e não explora as contradições que o atual estágio de desenvolvimento capitalista impõe, no que diz respeito às causas da desigualdade social e das crises climática, financeira, alimentar e energética, à captura do político pelo econômico e à financeirização de bens comuns e meio ambiente.
Claramente, a formulação dos ODS é, em si, um importante campo de disputa sobre modelos de desenvolvimento e alternativas no âmbito internacional. Neste sentido, reforçamos a importância da cooperação internacional não só como campo de ação, mas também como espaço dinâmico de discussão política do que é considerado legítimo e possível. Dentro deste debate, muitos esperam que o Brasil e outros provedores de Cooperação Sul-Sul (CSS) contribuam com novos caminhos a paradigmas. À continuação, apontam-se alguns dos campos em disputa nos debates do Pós-2015, nos quais espera-se um protagonismo da delegação brasileira em diálogo com a sociedade brasileira, nos processos de negociação dos ODS.
Pobreza versus desigualdade
O objetivo declarado do sistema de ajuda ao desenvolvimento, ou cooperação Norte-Sul, é a redução da pobreza. As organizações internacionais tiveram grande papel na construção do entendimento sobre a pobreza e as maneiras de enfrentá-la. O foco exclusivo na redução da pobreza resultou, muitas vezes, na tecnificação e despolitização do desenvolvimento, que desconsidera as dinâmicas de poder que produzem e reproduzem a pobreza, exclusão e desigualdade.
Apesar de isso não significar que esforços globais para a redução da pobreza são dispensáveis, ressalta a necessidade de reflexão sobre quais devem ser os principais objetivos da cooperação e os caminhos para atingi-los. Neste sentido, a inclusão de um objetivo 10 – ‘’reduzir desigualdade inter e entre países” – deve ser visto como uma vitória. O grande protagonista desse embate foi o G77, China e Brasil (é importante ressaltar que a posição governamental foi influenciada pelo diálogo com a sociedade civil).
Entretanto, os indicadores do objetivo são pouco específicos. Nas propostas enviadas pela sociedade civil brasileira ao Grupo de Trabalho Interministerial sobre a Agenda de Desenvolvimento Pós 2015 do governo brasileiro foi ressaltada a necessidade de incluir a linguagem de direitos, especificando os diversos grupos sociais vulneráveis. A existência de dados confiáveis e desagregados para esses diferentes grupos também é essencial para o monitoramento das metas.
Um passo para frente e dois para trás – a necessidade de coerência de políticas
Um dos grandes desafios dos ODS é promover coerência de políticas que assegurem complementariedade de esforços em diferentes esferas – cooperação, comércio e financiamento. A coerência de políticas requer uma visão consistente do desenvolvimento perseguido. Diante dos diversos interesses em disputa, a construção dessa visão se configura como uma tarefa complexa (e, talvez, impossível).
Podemos observar essa complexidade na CSS brasileira, que se orienta a adensar suas relações com os países em desenvolvimento na busca de benefícios mútuos. Nessas relações, cooperação, incentivos comerciais, créditos concessionais e às exportações, muitas vezes, se misturam.
A área da agricultura, em particular, reflete as tensões entre diferentes interesses e visões de desenvolvimento. O Brasil compartilha experiências em agricultura familiar, ao mesmo tempo que promove o agribusiness via projetos de cooperação técnica e financeira. Para alguns, a complementariedade destas abordagens é o que justamente caracteriza a trajetória do desenvolvimento agrícola do País. No entanto, representantes da sociedade civil e da academia vêm ressaltando que estas lógicas, por serem contraditórias, estão exportando nossos conflitos internos.
Por outro lado, alguns projetos de cooperação se baseiam não apenas no compartilhamento de experiências mas, também, no diálogo direto com agendas multilaterais que respondem a uma noção de desenvolvimento na qual o comércio internacional joga um papel fundamental, como o Projeto Cotton 4, que simboliza batalhas travadas na OMC.
Responsabilidade e financiamento – Estado ou setor privado como indutor do desenvolvimento?
São cada vez mais influentes os discursos sobre parcerias público-privadas e modelos de governança multi-atores, que implicam em maior fragmentação da governança global, colocam em cheque a representatividade do sistema e não apresentam nenhum tipo de mecanismo de prestação de contas. Vale destacar também que, frente ao desafio de financiamento, organizações brasileiras, em consonância com movimentos internacionais, indicaram a criação de taxa sobre as transações financeiras internacionais como uma alternativa para levantar recursos para o desenvolvimento.
Ainda com relação ao financiamento, ao materializar as intenções de fortalecer uma ordem internacional multipolar, o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) dos BRICS emerge como um peça importante. O NBD afirma perseguir o desenvolvimento sustentável, porém a definição sobre qual é o seu entendimento sobre esse conceito será decisiva e definirá o caráter dos projetos financiados. Frente à importância da diversificação de financiamento para apoiar projetos alternativos preocupa o fato de que os esforços brasileiros em relação a potenciais fontes para países do Sul – o ‘Fundo IBAS para o Alívio da Fome e da Pobreza’ e o Banco do Sul – continuem cambaleantes.
Com relação ao setor privado, é preocupante a tendência em redirecionar foco e recursos da cooperação para proporcionar ambientes favoráveis ao negócio e promover a participação do setor privado no desenvolvimento dos países.
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A negociação dos ODS faz transparecer as diversas posições que estão disputando os caminhos da agenda de desenvolvimento internacional. Apesar das questões relacionadas à legitimidade e representatividade do processo de construção dos ODS, o engajamento neste debate é importante pois ele pautará não só a agenda da cooperação internacional, mas também definirá as noções de desenvolvimento que serão difundidas pelas organizações multilaterais.
O papel do Brasil tem sido definitivo em algumas questões (como os objetivos 10 e 16) e espera-se que, na definição de indicadores e meios de implementação, o País mantenha seu protagonismo em diálogo com a sociedade brasileira. Esse diálogo é congruente com a visão que a política externa, assim como qualquer política pública, está sujeita à disputa de interesses presentes na sociedade e deve, portanto, estar sob escrutínio público e contar com espaços institucionalizados de participação, conforme a demanda por conformação de um Conselho Participativo de Política Externa, onde se incluiria também os debates sobre cooperação internacional.
*Melissa Pomeroy é coordenadora de programas do Centro de Estudos e Articulação da Cooperação Sul-Sul (Articulação SUL) e coordenadora do Observatório Brasil e o Sul. Bianca Suyama é coordenadora executiva do Articulação SUL e integrante do GRRI. Veja mais análises e notícias em http://obs.org.br/pos2015
Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais – Carta Capital, 09/10/2014