Sanitaristas reveem ênfase dada à municipalização, que acabou fragmentando o sistema, e destacam as regiões de saúde como forma de se alcançar a universalização
Em 1992, o tema da 9ª Conferência Nacional de Saúde indicava: Municipalização é o caminho. Em 2014, sanitaristas reveem criticamente o processo de descentralização da saúde no Brasil e reinventam esse slogan. Agora, “regionalização é o caminho”. A frase foi dita pelo presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Luis Eugenio Portela, em seminário do 7º Congresso Interno da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 1º de agosto. “A regionalização é o caminho porque pode permitir superar a fragmentação municipalista do sistema de saúde”, explica Luis Eugenio à Radis.
A fragmentação se deu pelo privilégio ao papel do município sem a face da coordenação regional e com fraco papel dos estados brasileiros na ordenação de redes assistenciais, na avaliação da pesquisadora Ana Luiza d’Ávila Viana, coordenadora do estudo Regiões e Redes, que reúne 90 pesquisadores em todo o país voltados a abordar o tema sob diversas perspectivas. Somou-se a isso, segundo ela, padrão de financiamento baseado fortemente em recursos municipais e transferências federais.
“A ênfase nos municípios inibiu a cobertura universal”, afirma Ana Luiza. Mesmo municípios com maior nível de renda tiveram dificuldade de construir uma rede de serviços que ofereça cuidados da atenção primária à alta complexidade. Naqueles com menos recursos, o que se constata hoje são vazios assistenciais — especialmente de equipamentos de maior complexidade, o que gera peregrinação de moradores de municípios de pequeno porte para grandes capitais em busca de atendimento especializado.
Autor de proposta recente que põe em destaque as regiões de saúde, intitulada SUS Brasil, o professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Estadual de Campinas Gastão Wagner é outro nome que aponta que, sem a constituição de redes, o país não conseguirá garantir a integralidade do cuidado. “Foram atribuídas aos municípios responsabilidades impossíveis de serem atingidas: da atenção básica à alta complexidade, passando pelas especialidades, pelo enfrentamento de epidemias…”. O caminho, então, é regionalizar.
Municipalização ‘exagerada’
A descentralização é um dos princípios organizativos do SUS, estabelecidos em 1990, pela Lei 8.080. O texto previa descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo, ênfase na descentralização dos serviços para os municípios e regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde. “A municipalização foi a estratégia mais viável de descentralização, pois permitiu a aliança entre os sanitaristas e os municipalistas. Olhando, retrospectivamente, é possível pensar que houve, sim, um exagero na municipalização, como se fosse possível que todos os municípios cumprissem o papel de único prestador de serviços”, analisa Luis Eugenio.
No processo, diz ele, ocorreu um desvirtuamento da noção de “comando único”: quando criado, o conceito pretendia unificar o comando do sistema de saúde no Ministério da Saúde e nas secretarias da Saúde, superando a dicotomia com a área da Previdência Social. No entanto, passou-se a se falar de “comando único municipal”, o que, segundo o presidente da Abrasco, não faz sentido em uma Federação — “ainda mais em uma área como a Saúde, que exige participação solidária das três esferas de governo”.
Luis Eugenio analisa que, por um lado, a descentralização representou avanço importante para concretizar o SUS. Foi o que propiciou a expansão da oferta, fortemente dependente dos investimentos feitos pelos municípios, sobretudo na atenção básica; estimulou a formação dos Conselhos Municipais de Saúde, criando espaço significativo de participação social; e sustentou o fortalecimento da racionalidade técnico-sanitária, com a organização de estruturas administrativas (as secretarias municipais de Saúde) para conduzir as políticas da área.
Por outro, indica ele, a descentralização não foi acompanhada do fortalecimento dos mecanismos de coordenação federativas, entre União, estados e municípios. “Hoje, está claro que a descentralização fazia parte também do projeto neoliberal de redução da ação estatal na área social, com a desresponsabilização da União com a execução de políticas sociais”, observa.
O presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Antônio Carlos Figueiredo Nardi concorda que, do modo como aconteceu, a descentralização colocou sobre os municípios um peso muito grande. “Em um sistema interfederativo e solidário, temos que ser solidários em tudo, dividir inclusive os ônus — entre eles o financiamento”. A média de investimento dos municípios na saúde é hoje de 22% da receita, com alguns chegando até 30%, quando a lei estabelece aplicação mínima de 15%.
O que diferencia o discurso de Nardi do de Luis Eugênio é que, para Nardi, o “exagero” foi positivo. “A municipalização da saúde mostrou a que veio. Se não tivesse sido tão radical, o sistema não teria se efetivado. São hoje os municípios que tocam o SUS. É nos municípios que a saúde acontece. São os municípios que contratam, atendem, executam todos os serviços de saúde”.
Norma após norma
De acordo com Ana Luiza, a política de saúde dos governos desenvolveu formas de indução da descentralização e da regionalização do SUS. A regulação desses processos foi realizada pelo Ministério da Saúde por meio da normatização, com a edição anual de dezenas de portarias, em geral associadas a mecanismos financeiros, que favoreceram a adesão e implementação das políticas pelos gestores locais e estaduais.
Sucessivas Normas Operacionais do SUS trataram da regionalização. A Norma Operacional Básica do SUS 01/93 referiu-se à estratégia da regionalização a partir de um enfoque na articulação e mobilização municipal, com vistas a garantir acesso à saúde, embora ainda não priorizasse a estruturação de regiões de saúde. A Norma Operacional Básica do SUS 01/96, com a finalidade de promover o avanço e consolidar a gestão municipal, reafirmou que a rede de serviços municipais deveria ser organizada segundo as diretrizes da Constituição de 1988.
“O balanço que se faz do modelo de descentralização no SUS nos anos 1990 é de que ele foi importante para a expansão da cobertura de serviços e recursos públicos provenientes dos governos subnacionais. Porém, não foi capaz de resolver as imensas desigualdades regionais presentes no acesso, na utilização e no gasto público em saúde; além de não ter conduzido à integração de serviços, instituições e práticas nos territórios, nem à formação de arranjos mais cooperativos na saúde”, conclui Ana Luiza no artigo Expansão, qualificação e regionalização da oferta de serviços e ações de saúde, que assina com mais três autores.
A definição de região de saúde apareceu pela primeira vez com a publicação das Normas Operacionais de Assistência à Saúde do SUS 01/2001, cujo principal objetivo era a equidade na alocação de recursos e no acesso às ações e serviços de saúde. A regionalização foi definida, então, como macroestratégia para aprimorar a descentralização.
Em 2006, com a publicação do Pacto pela Saúde, a concepção da regionalização foi ampliada para além da assistência e apresentada como eixo estruturante do Pacto de Gestão, sendo responsável por potencializar o processo de descentralização, fortalecendo estados e municípios para exercerem seu papel de gestores. A Portaria 4.279, de 2010, definiu as regiões como áreas de abrangência territorial e populacional sob a responsabilidade das redes de atenção à saúde.
Coap esvaziado
O conceito de região de saúde foi retomado no Decreto 7.508/11 e na Resolução CIT Nº 1, de 29 de setembro de 2011, sendo definida como “espaço geográfico contínuo constituído por agrupamentos de municípios limítrofes, delimitado a partir de identidades culturais, econômicas e sociais e de redes de comunicação e infraestrutura de transportes compartilhados, com a finalidade de integrar a organização, o planejamento e a execução de ações e serviços de saúde” (Radis 109).
De acordo com o texto, uma região deve ter, no mínimo, ações e serviços de atenção primária, urgência e emergência, atenção psicossocial, atenção ambulatorial especializada e hospitalar e vigilância em saúde. À época, foram identificadas pelo Ministério da Saúde 419 regiões, que deveriam ter condições para realizar de consultas de rotina a tratamentos complexos. Os instrumentos para sua efetivação seriam o mapa sanitário; os Contratos Organizativos de Ação Pública (Coap); os planos de saúde; a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (Renases); a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename); e as Comissões Intergestores.
Mas, de lá prá cá, apenas três estados aderiram ao Coap: Ceará, Mato Grosso do Sul e Sergipe. Nardi explica que estados e municípios resistem porque não há recursos novos envolvidos. “Não vamos assinar mais do mesmo. O Coap deveria servir para identificar a capacidade instalada hoje em todo o Brasil, as necessidades para diminuir os vazios assistenciais e os recursos financeiros para acabar com esses vazios”, diz.
Luis Eugenio lamenta que o contrato organizativo de ação pública, que para ele “é uma alternativa”, não tenha sido amplamente adotado. “O Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) é muito explícito, nesse caso: sem dinheiro novo não há como assumir compromissos de maneira tão formalizada. Os gestores municipais também estão inseguros em assumir compromissos, ainda mais com o próprio Poder Executivo federal se dando o direito de denunciar os gestores que não cumprirem o contratado”.
SUS Brasil
No bojo da discussão “adere” ou “não adere” ao Coap, Gastão Wagner apresentou uma proposta, que ele chama de SUS Brasil: uma autarquia especial integrada pelo Ministério da Saúde, Secretarias de Estado da Saúde e Secretarias Municipais de Saúde, organizada por regiões de saúde, às quais caberia a gestão de redes de atenção integral à saúde (ver pág. 16). Tendo como núcleo organizacional as Regiões de Saúde, a nova autarquia buscaria superar a fragmentação, a privatização e a inadequação da política de pessoal do sistema. “O objetivo é aumentar a articulação do SUS, fazer uma reforma da gestão pública e diminuir a interferência político-partidária clientelista na saúde sem burocratizar”, explica.
Assim, diz, haveria um planejamento conjunto da saúde em cada uma das regiões (que ele propõe serem 202 no país): onde falta atenção básica? quais são os problemas de urgência e emergência? onde há tratamento de câncer? que municípios contam com centros de atenção psicossocial? Os profissionais de saúde seriam contratados pelo SUS Brasil, por concurso, com plano de carreira a partir de financiamento comum: da União, dos estados e de cada município (conforme o número de trabalhadores).
“Mais do que uma proposta, o SUS Brasil é uma provocação. Uma maneira de acabar com a privatização da saúde e diminuir a multiplicidade de modelos de gestão”, diz Gastão. “Temos que repensar a administração pública, fazer a reforma da reforma de que falo há tanto tempo. E já temos experiências positivas com as universidades federais, que são autarquias, públicas e com controle governamental. Se a minha provocação servir para se criar uma autarquia somente para carreira na saúde, tirando dos municípios essa responsabilidade, já seria uma grande vitória”.
Luis Eugenio avalia que é uma boa ideia, no sentido de que toca na questão central das regiões e das redes, a partir do aperfeiçoamento dos mecanismos de coordenação federativa. “Em tese, uma autarquia tripartite resolveria todos os problemas de descoordenação federativa”, analisa, ressalvando que “a viabilidade de criação de uma autarquia desse porte e dessa complexidade, no entanto, não é evidente”. Já Nardi afirma discordar “veementemente” da proposta: “O Coap com financiamento é a necessidade que o SUS tem para ser efetivado”.
Luz no fim do caminho
“No fundo, a estruturação das regiões está a exigir a revisão do pacto federativo, ou melhor, está a exigir o cumprimento do pacto formalizado na Constituição federal de 1988”, vai além o presidente da Abrasco. “Com efeito, ao longo dos anos 90, o Governo Federal voltou a concentrar a arrecadação de recursos da sociedade (via contribuições, já que as receitas de impostos são obrigatoriamente divididas), sem voltar a assumir as responsabilidades pela execução de políticas públicas, que foram descentralizadas pela Constituição. Nesse sentido, a reforma tributária é urgente, assim como o maior compartilhamento de responsabilidades entre as três esferas de governo. O Programa Mais Médicos talvez seja um bom exemplo de como esse compartilhamento de responsabilidades pode ser produtivo”.
Ele aponta que o Ministério da Saúde, assim como diversas secretarias estaduais e mesmo grupos de municípios, têm feito esforços significativos para estruturar algumas redes, mas vê limitações nesses esforços. “Primeiramente, as redes não precisam ser sempre temáticas (rede de urgências, rede de câncer, rede Cegonha etc.). Ao contrário, a ideia de rede sugere a busca da integralidade da atenção. Em segundo lugar, o subfinanciamento do SUS tem inviabilizado negociações sérias entre os distintos municípios e entre estes e os estados e a União para constituir as redes. Chega-se, quase sempre, ao impasse, na discussão sobre quem vai assumir os custos que ultrapassam os montantes repassados pelo Fundo Nacional de Saúde”, diz, para logo reforçar a importância das redes.
“A regionalização apresenta as vantagens de um sistema descentralizado — adequação das políticas e dos serviços à situação epidemiológica local e favorecimento da participação democrática, já que os espaços de decisão permanecem próximos dos cidadãos comuns — sem as desvantagens de um sistema fragmentado. Há a escala necessária para uma gestão eficiente e colaborativa e conforma um espaço de decisão em que as três esferas de governo são estimuladas a compartilhar”.
Revista Radis, 30/09/2014