Em um cenário de crescimento da resistência microbiana aos antibióticos existentes no mercado, a busca por novos medicamentos tornou-se um desafio da saúde pública. Devido à emergência deste tema, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou, em maio de 2014, o primeiro relatório global sobre o assunto. No estudo, a análise de dados oriundos de 114 países apontou a relação existente entre as mutações sofridas pelas bactérias e o uso abusivo de antibióticos. De acordo com o documento, a resistência a antibióticos está colocando pacientes em risco tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento, à medida que bactérias responsáveis por diversas infecções perigosas desenvolvem resistência às substâncias que costumavam combatê-las.
Para chamar a importância para este assunto, a OMS celebra, de 16 a 22 de novembro, a Semana Mundial de Conscientização da Resistência Microbiana, com a meta de incentivar melhores práticas entre o público em geral, profissionais de saúde e agentes políticos. Neste ano, foi também aprovado um plano de ação global para mitigar o problema, incluindo os eixos de comunicação, educação e formação continuada. O tema da Campanha da OMS, “antibióticos: manuseie com cuidado”, deixa claro que os medicamentos são recursos preciosos, devendo ser utilizados nas situações corretas, para tratar infecções, apenas sendo prescritos por profissionais de saúde certificados.
Um dado relevante fornecido por um estudo da revista científica The Lancet é que entre os anos de 2000 e 2010 o consumo de antibióticos aumentou em 76% em países dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Em paralelo, a indicação destas substâncias sem prescrição médica também cresceu de forma acentuada.
Era pós-antibiótico
Se os atuais medicamentos existentes no mercado não são mais capazes de conter o avanço de infecções, alerta a OMS, o mundo caminha para a era pós-antibiótico, na qual será necessário desenvolver novas opções de tratamento. A questão torna-se ainda mais delicada quando as infecções causadas por superbactérias, associadas a doenças como tuberculose, matam mais de 8,2 milhões de pessoas.
De acordo com projeções do Instituto de pesquisas Rand Europe e da empresa de consultoria KPMG, as mortes anuais relacionadas a casos de doenças provocadas por bactérias resistentes a antibióticos poderão chegar em 2050 a 4,7 milhões na Ásia, 4,1 na África e 392 mil na América Latina. Atenta a esta tendência, a Fiocruz mantém contato com diversas entidades que atuam na busca de novas soluções. Em outubro, o presidente da comissão Antimicrobial Resistence (AMR), Jim O’Neill, e a conselheira chefe do Governo Britânico para assuntos de saúde, Sally Davies, reuniram-se com gestores e pesquisadores da Fundação para apresentar estudos que alertam para os problemas relacionados à resistência antimicrobiana.
O objetivo da visita ao Brasil foi alertar autoridades, empresas farmacêuticas e produtores do setor agrícola-pecuário sobre os riscos associados ao aparecimento, à propagação e à contenção da resistência aos medicamentos, além de conhecer o que é feito no país em termos de pesquisa e de políticas públicas para enfrentar o problema. Bio-Manguinhos também segue na trilha da busca por novos alvos. O pesquisador do Laboratório de Tecnologia Recombinante (Later) e professor Jose Procopio Moreno Senna, que conduz duas linhas de pesquisa relacionada a biofármacos no Instituto, representou o Brasil no encontro que aconteceu em outubro, nos Estados Unidos, agregando representantes da indústria, instituições de pesquisa, órgãos de fomento e especialistas. “Em um contexto de escassez das fontes de descoberta de novas substâncias e aumento da resistência aos antibióticos, terapias alternativas precisam ser desenvolvidas. Me orgulha muito representar a Fiocruz e ver como a unidade é reconhecida internacionalmente por seu trabalho em prol da saúde pública”, declara.
Senna lidera duas linhas de pesquisas com anticorpos monoclonais em Bio-Manguinhos, uma focada em estafilococos multirresistentes e outra sobre Acinetobacter baumannii, duas das principais causas de infecções no ambiente hospitalar. “Na mesa redonda, todos concordaram que um dos passos para driblar a inexistência de um produto para combate a estas bactérias super-resistentes seria considerar tais medicamentos drogas órfãs, o que poderia acelerar as etapas das pesquisas e obter resultados mais eficazes”, detalhou.
O microbiologista afirma que as dificuldades nos investimentos para novas drogas residem nos altos custos, o que tem levado a indústria farmacêutica a trabalhar com moléculas já descobertas”, revelou. Outros desafios são as complexidades da escolha do alvo, reprodução em um modelo animal e o desenho dos ensaios clínicos. “Para ter maiores chances de sucesso, o anticorpo monoclonal precisa ter atividade neutralizante, ou seja, ter a capacidade de matar o patógeno sem necessitar do auxílio do sistema imune do paciente, uma vez que em infecções hospitalares, grande parte dos pacientes infectados estão imunodeprimidos”, ressalta.
A doutoranda do Programa de Biologia Celular e Molecular do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) e pesquisadora do Laboratório de Tecnologia Recombinante (Later), Anna Erika Vieira de Araujo, iniciou, em julho de 2013, os estudos sobre a avaliação da proteína recombinante rOmpA de Acinetobacter baumannii como alvo para imunoterapia, realizando as primeiras tentativas de clonagem da proteína.
O tema, que parece complicado à primeira vista, é de grande importância para a saúde pública, já que as infecções causadas por bactérias multirresistentes, como a Acinetobacter baumannii, representam cada vez mais um problema em escala mundial. O patógeno, considerado oportunista, acometendo especialmente pacientes hospitalizados e causa infecções graves, como pneumonias, meningites e septicemias.
Atualmente, a pesquisadora está aprimorando o ensaio em modelos murinos e tentando clonar outras proteínas que se tornem potenciais alvos. “Com melhores resultados, direcionaremos, de forma mais adequada, a resposta imune”, acrescentou.
Parceria sólida
A equipe de Procópio Senna conta com o apoio fundamental do Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), que atua como centro colaborador da Rede de Resistência Microbiana Hospitalar (rede RM), da Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde.
Por receber amostras para caracterização dos mecanismos de resistência, oriundas de quase todo o país, o Laboratório possui um acervo com exemplares de bactérias multirresistentes que compõem a Coleção de Culturas de Bactérias de Origem Hospitalar do IOC. Este material é utilizado em pesquisas relacionadas à epidemiologia molecular, no desenvolvimento de novos alvos para o controle de infecções e em novos métodos de diagnóstico.
A pesquisadora e microbiologista do IOC, Ana Paula Assef, conta que em caso de ocorrência de surto em um hospital, o laboratório faz a tipagem molecular das amostras para avaliar a relação entre elas, além de identificar o mecanismo de resistência. Assef lembra que nos anos 80, para tratamento de infecções provocadas por bactérias multirresistentes, utilizava-se um grupo de drogas potentes de última geração, chamadas carbapenêmicos. “Com o aumento da utilização destas drogas, houve uma elevação significativa da taxa de resistência a estas substâncias, assim voltou-se a utilizar as polimixinas, drogas antigas que apresentam certa toxicidade ao homem”, afirma.
A pesquisadora explica que, atualmente, uns dos principais problemas relacionados a resistência nos hospitais são as bactérias produtoras de carbapenemases, como a enzima KPC. Antes restrita a ambientes hospitalares, agora estas enzimas também podem ser encontradas no meio ambiente. Assef fez parte de uma pesquisa que analisou a água do Rio Carioca, no Rio de Janeiro, em 2014 e encontrou tal enzima.
“Bactérias produtoras da enzima KPC foram identificadas em amostras de água coletadas em três pontos do Rio Carioca que atravessam a Zona Sul da cidade: no Largo do Boticário, no Cosme Velho; no Aterro do Flamengo, antes da estação de tratamento do rio; e na foz do Rio Carioca, no ponto onde ele desagua na Praia do Flamengo”, acrescenta.
A microbiologista destaca que as bactérias que produzem carbapenemases, como a KPC, são resistentes aos principais antibióticos utilizados no mercado, exigindo o uso de medicamentos mais potentes. Daí a importância da busca por novos alvos e investimentos em anticorpos monoclonais e da realização de investimentos para pesquisas no setor, já que o problema se torna um desafio em todo o planeta.
Portal Fiocruz, 19/11/2015