“A epidemia do vírus zika no Brasil lança luz sobre a possibilidade da emergência de novos e desconhecidos vírus, com potencial de causar importante dano à saúde da população. O desafio colocado é a detecção precoce e a oferta ágil de diagnóstico e tratamento adequados”, afirma a epidemiologista Marília Sá Carvalho, pesquisadora do Programa de Computação Científica da Fiocruz. Nesta entrevista, ela explica que, se o surgimento de novas patologias sempre ocorreu, a alta velocidade com que passaram a se propagar é uma característica da sociedade contemporânea – o que exige do Sistema Único de Saúde (SUS) ações estratégicas. “O SUS precisa ser capaz de realizar a investigação e o acompanhamento de todas as crianças nascidas no período de risco nos locais onde houve epidemia de zika, de modo que comprometimentos neurológicos sejam detectados precocemente, no âmbito da atenção primária”, defende.
Como estudos de futuro contribuem para a prevenção e o enfrentamento de emergências sanitárias, como a provocada pelo vírus zika?
A epidemia do vírus zika no Brasil lança luz sobre os riscos de outras emergências sanitárias e os desafios na oferta ágil de diagnóstico e tratamento adequados. Além desta doença, o mundo foi surpreendido, recentemente, pela epidemia de ebola. O mesmo aconteceu com o HIV entre as décadas de 1980 e 1990. As doenças infecciosas emergentes, ou re-emergentes, são assim denominadas por um aumento mais ou menos abrupto na incidência ou severidade do quadro, em locais onde não existiam previamente da mesma forma. Em geral, estão associadas a: adaptação microbiana, por exemplo as bactérias super-resistentes das UTIs, e o aumento do uso de antimicrobianos na criação de animais, aumentando a frequência de resistência; mudanças no ambiente facilitando a ocupação de novos nichos; e aspectos demográficos e socioeconômicos, entre os quais a alta densidade populacional, os deslocamentos maciços de pessoas causados por guerras e desastres naturais.
Chama atenção a rapidez com que diversas dessas doenças se espalharam em diferentes países. O esforço de prospectar o futuro é especialmente importante diante da velocidade e da frequência com que novos patógenos emergem na sociedade contemporânea, cada vez mais marcada pela mobilidade das populações e pela consolidação de megacidades. Qualquer estudo em relação às probabilidades da ocorrência desse tipo de evento deve considerar a aceleração da ascensão de novos vírus. As prospecções precisam olhar, por exemplo, para a Amazônia – um dos maiores repositórios de vírus desconhecidos que podem vir a se tornar emergentes – e se debruçar sobre as redes de assistência e de vigilância que deverão ser implantadas para responder a esses eventos. Conhecer a situação atual da população e do sistema de saúde e antever cenários futuros é fundamental nesse processo.
Diante do desafio de longo prazo imposto pelo vírus zika, como o sistema de saúde brasileiro deve se preparar para garantir universalidade, equidade e integralidade na atenção às pessoas com microcefalia?
Há gargalos perceptíveis que vão além das áreas de planejamento e gestão. Embora a ampliação da Atenção Básica por meio do Programa Saúde da Família seja um sucesso, o mesmo não ocorre com as especialidades – essenciais na assistência às crianças com microcefalia, que dependem de acesso precoce a fisioterapeutas, fonoaudiólogos e neurologistas para ter chances concretas de melhorar. Muitas vezes, os serviços de média e alta complexidade só estão disponíveis em bairros ou cidades distantes e, para garantir a universalidade, equidade e integralidade, o SUS deve considerar as dificuldades de deslocamento do paciente até os locais que oferecem atendimento especializado. Como não é possível ofertar esse nível de especialidade em cada Clínica da Família, é preciso concentrar o atendimento nos locais de mais fácil acesso. Tudo isso considerando que esta é uma demanda de longo prazo: os bebês que este ano nasceram com danos neurológicos causados pelo zika vírus se tornarão adultos e idosos com necessidades especiais.
Publicado recentemente na revista The Lancet, um estudo que analisa mais de 1.500 casos de crianças com microcefalia confirmada mostra que esta condição é apenas a ponta do iceberg de danos provocados pelo vírus zika. Outro estudo detecta anormalidades no ultrassom do feto, mesmo em casos de infecção no terceiro trimestre da gestação. Um conjunto de pessoas que nasceu com o perímetro encefálico normal ainda se revelará portadora de necessidades especiais. Esses indivíduos precisam ser diagnosticados o mais cedo possível, pois a estimulação precoce é indispensável para melhorar as chances de desenvolvimento neuronal. Isso significa que o SUS deve ser capaz de realizar a investigação e o acompanhamento de todas as crianças nascidas no período de risco da epidemia de zika, de modo que comprometimentos neurológicos sejam detectados precocemente, no âmbito da atenção primária, independentemente do perímetro encefálico do bebê.
Neste contexto, questões envolvendo os direitos reprodutivos das mulheres, como a descriminalização do aborto, tendem a ganhar força. Quais as tendências para o futuro?
Publicamos uma série de artigos de posição sobre esta questão na edição de maio dos Cadernos de Saúde Pública. De fato, está dado um embate político no Brasil entre parcelas da sociedade extremamente conservadoras e a saúde pública. E isto demanda um enfrentamento social urgente. É preciso haver pressão em defesa da saúde da mulher no âmbito da mudança futura da legislação brasileira. Já em relação ao presente, uma outra luta deve ocorrer em paralelo, no âmbito do SUS. Refiro-me à discussão sobre o direito à objeção de consciência por parte dos médicos. No setor público, os profissionais da saúde não deveriam poder se recusar a fazer o aborto, caso ele seja autorizado judicialmente, porque o Estado é laico.
É importante pensarmos para onde esse embate levará o Brasil. Nos Estados Unidos, recentemente, a Suprema Corte decretou ilegal uma medida do Texas que obrigava clínicas de aborto a disporem de recursos hospitalares ou a estarem próximas de hospitais. Na prática, a medida levaria ao fechamento de quase todas as instituições locais, restando apenas algumas, nas metrópoles, o que dificultaria o acesso ao aborto sob o pretexto de se estar defendendo a saúde da mulher. A Suprema Corte norte-americana considerou que a determinação limitaria o acesso das mulheres a um direito garantido desde a década de 1960, induzindo-as a procedimentos inseguros. É importante frisar que a decisão se baseou inteiramente na discussão sobre a saúde da mulher. Seria adequado que o Brasil, como um Estado laico, adotasse esta mesma perspectiva. É necessário priorizar as questões de saúde pública e de saúde da mulher.
Como a pesquisa e a produção científica no campo da Saúde Coletiva têm contribuído na resposta ao vírus zika? Quais as perspectivas para as próximas décadas?
O Brasil teve um comportamento fantástico em relação à resposta à epidemia. A atuação do país está sendo respeitada e valorizada em simpósios e debates internacionais. A percepção precoce do problema e a coragem em afirmar rapidamente as consequências graves da doença indicam que o Brasil tem uma capacidade instalada muito forte. Paralelamente, há a reconhecida competência brasileira no campo do desenvolvimento de vacinas e kits diagnósticos – aspectos favoráveis na área da Saúde Coletiva no Brasil. A capilaridade do SUS também é um ativo importante, que precisa ser reconhecido. Apesar de todos os problemas de nosso sistema de saúde, o país levantou e confirmou a suspeita clínica do vírus zika com muita agilidade. E isso foi fundamental para a resposta brasileira à epidemia.
Um recurso que ainda não é explorado suficientemente é a grande quantidade de dados disponíveis, gerados pelos sistemas de informação em saúde, que poderiam ser melhor aproveitados. Poderiam ser desenvolvidos laboratórios sentinelas para monitorar as doenças febris nas portas de entrada do país e em áreas próximas a florestas, de modo a diagnosticar com ainda mais rapidez a emergência de novos patógenos. Para analisar esses dados e cruzá-los com todas as demais informações em saúde coletadas no país, em tempo real, precisaríamos investir em ferramentas de análise, desenvolvidas ao lado de parceiros tecnológicos. Há uma extensa fronteira a ser percorrida nesse sentido. Por exemplo, semanas antes dos casos de microcefalia alertarem os neonatologistas e obstetras, provavelmente já havia um aumento de notificação de malformações fetais no Sistema de Informações dos Nascidos Vivos (SINASC), ou de uso de UTI neonatal (potencialmente identificável pela Sistema de Informações Hospitalares). Esses casos ocorreriam em cluster espaço-temporal, seguindo, obviamente, o espalhamento da onda epidêmica do Zika vírus. Técnicas de Big Data, de mineração de dados, realizadas rotineiramente nos sistemas de informação poderiam ter contribuído para antecipar a detecção do problema. E outra área onde o Brasil tem imensa facilidade: os sistemas de informações existem, tem qualidade razoável, e temos expertise para desenvolver as rotinas e métodos necessários.
Quais as perspectivas para o desenvolvimento da Epidemiologia no próximos 20 anos?
A Epidemiologia nasceu no contexto da discussão sobre ambiente, condições de vida e saúde, a partir das relações entre a cólera e a ingestão de água contaminada ou entre as condições de moradia e a ocorrência de doenças transmissíveis, como a tuberculose. Nas décadas de 1950 e 1960, com o desenvolvimento de vacinas e fármacos, a disciplina passou a se voltar para o indivíduo. Ganharam ênfase a indústria farmacêutica e a de diagnóstico, fazendo com que a Epidemiologia passasse a concentrar seus esforços na busca por fatores de risco individuais, apontando a relação entre obesidade e colesterol ou câncer e tabagismo, por exemplo. À medida que se voltou mais e mais sobre o indivíduo começou a se descolar da intervenção populacional. Sem qualquer restrição a tudo que o olhar sobre o indivíduo trouxe em termos de compreensão sobre a fisiopatologia das doenças e o desenvolvimento de novos fármacos, a disciplina não pode ignorar o contexto ou os macrodeterminantes da saúde. Não se pode atribuir ao indivíduo, isolado de seu contexto e de seu tempo, o enorme aumento de obesidade no mundo. Precisamos retomar uma Epidemiologia mais militante, que não persegue apenas a publicação de artigos, mas sim a qualidade da saúde pública, a intervenção necessária para melhorar a saúde da população. Sem medo de buscar soluções radicais, que vão de fato às raízes dos problemas, e não apenas a uma ou outra manifestação.
Bel Levy
Saúde Amanhã
11/07/2016