Regionalizar para universalizar

“Como garantir o acesso à saúde em escalas territoriais muito pequenas?”. Para a médica mexicana Asa Cristina Laurell, pesquisadora do Centro de Análisis y Estudios de Seguridad Social, este é o dilema que impõe tantos desafios à regionalização dos sistemas de saúde. A pesquisadora, uma das mais representativas da Medicina Social na América Latina, participou do seminário “Desafios da Regionalização e Conformação de Redes de Atenção em Contexto de Crise e de Desigualdades Territoriais”, realizado em dezembro de 2016 pelo Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Nesta entrevista ela aponta os desafios para a garantia da equidade no Sistema Único de Saúde (SUS) e as ameaças da agenda neoliberal à garantia da saúde como direito. “Os sistemas de saúde são um terreno de luta política e ideológica”, defende.

Como a senhora analisa a experiência brasileira de regionalização da saúde? Quais os desafios para os próximos 20 anos?

No momento em que se iniciou a Reforma Sanitária no Brasil, questionei: estão certos de que querem descentralizar a atenção à saúde? Estender tantos deveres aos municípios requer uma descentralização extrema, que é parte, inclusive, da agenda neoliberal. Descentralizar ao nível dos municípios pode funcionar muito bem em São Paulo ou no Rio de Janeiro, porque são cidades que têm o tamanho de um país da América Central, mas em municípios pequenos a realidade é outra. Ao extremo a descentralização pode levar à privatização.

Surge, então, o tema da regionalização, principalmente no que tange ao controle dos recursos, que é o ponto em que se concentra grande parte das dificuldades. Honestamente, ainda não tenho uma resposta para esse dilema: como garantir o acesso à saúde em escalas territoriais muito pequenas? O problema surge quando temos um sistema público com escassez de recursos e com populações isoladas. No México, temos municípios encravados na serra, com apenas 500 habitantes. Para sair dali, é preciso um helicóptero ou cavalos, mas neste caso a viagem demora dez horas. Há um problema de logística que precisa ser resolvido.

Dou este exemplo para mostrar que não há apenas uma solução para todos. Precisamos, sim, de um sistema que tenha recursos suficientes, incluindo os de translado. Mas é preciso partir das condições reais e dos casos concretos. Um hospital, para ser custeável, deve ter uma ocupação média de 70%. Considerando uma área pouco populosa, precisamos nos questionar o quanto estamos dispostos a investir, financeiramente. Essa decisão passa pela noção de direito à saúde e certamente não é uma preocupação do capital privado. E é a partir desta definição que a regionalização será realizada, de uma ou outra maneira.

Os países latino-americanos diferem em seus processos históricos e, logo, seus sistemas de saúde também são distintos. Qual a sua avaliação sobre a formação das Redes Integradas de Serviços de Saúde (RISS) na região?

A conformação de RISS na América Latina já nos deu boas lições e experiências. A primeira delas é que são processos de integração difíceis, complexos e de muito longo prazo. Exigem mudanças sistêmicas e não somente medidas pontuais. Requerem compromisso dos profissionais de saúde, dos prestadores de serviço e dos gestores políticos, que são responsáveis pelas tomadas de decisão. A região mostra, ainda, que pode haver modalidades diferentes até dentro de uma mesma rede.

As RISS fazem parte de todas as agendas da Saúde, sejam as mais voltadas para a privatização ou para o sistema público. Conceitualmente, essas redes são organizações que prestam serviços de saúde equitativos e estão integradas a uma população definida. É exigência que o modelo adotado seja o da Atenção Primária, com uma extensa rede de prestadores de serviços territorializados e uma coordenação assistencial de serviços especializados extra e intra-hospitalares. A rede deve ser focada na pessoa, na família e na comunidade. Sobre a governança, deve ser única, com participação social ampla e com ações intersetoriais sobre os determinantes sociais e econômicos, de forma a garantir a equidade. A organização da gestão deve ser integrada, baseada em resultados e com recursos humanos suficientes e motivados. Além disso, são necessários sistemas de informação eficientes e que conversem entre si. Esse perfil não se cumpre em nenhum de nossos países.

Quais as ameaças da agenda neoliberal para a Saúde Pública, em médio e longo prazo?

O setor Saúde é considerado um terreno a ser conquistado pela acumulação de capital no âmbito da globalização neoliberal, em uma lógica incompatível com a da Saúde Pública. De 1945 a 1980, não havia o questionamento do direito à Saúde. Essa definição de bem privado é própria do pensamento econômico neoclássico e quem a promove defende que o Estado é ineficiente e incapaz de prover serviços com qualidade.

Nesse cenário, a formação de redes, que pressupõe cooperação, é substituída pela competição típica da lógica de mercado. Este é um ponto de partida equivocado: o de que a competição no setor Saúde levará a melhores serviços e a custos mais efetivos. Não há fundamento empírico para esta premissa. Isso não acontece em nenhuma parte do mundo. Um exemplo claro é o dos Estados Unidos, que gastam muito mais que outros países e, ainda assim, têm acesso reduzido e baixa cobertura. A formação de redes, quando acontece nesse cenário, restringe-se apenas à forma vertical de ordenação do sistema de saúde.

Num horizonte de redução das desigualdades, quais ações são necessárias, em médio e longo prazo, para aprimorar a organização do sistema de saúde brasileiro?

Em relação às desigualdades, sabemos que os determinantes econômicos e sociais da saúde são tão importantes quanto a forma de organizar o sistema. Também é evidente que a destruição ou a debilitação de um sistema público, aberto para todos, só favorece a iniquidade. A proposta de criação de planos populares, que vemos hoje no Brasil, só tende a fragmentar ainda mais o sistema de saúde.

Há que se estar atento a uma série de questões que vão incrementar as desigualdades e impactar os programas de redistribuição de renda, apresentando reflexos diretos no setor Saúde. Nos exercícios de prospecção, é importante abordar formas capazes de reverter essas ações e essa lógica, uma vez que elas necessariamente levarão a um cenário em que as pessoas têm menos acesso aos serviços de saúde.

Quais os cenários para o Brasil e o SUS nas próximas décadas?

Os sistemas de saúde são um terreno de luta política e ideológica. É preciso reconhecer que não bastam procedimentos técnicos para resolver muitas questões do setor, uma vez que há um contexto de luta entre distintas visões. O cenário político impacta a estruturação do que é a instituição pública. Se não reconhecermos que estamos em um campo conflituoso, o fracasso se tornará muito mais provável, por não termos compreendido as distintas forças que se movem nesse ambiente.

O Brasil vive um momento de ruptura, exigindo a análise desse campo político. Isso não quer dizer que não haja clareza sobre onde se quer chegar, mas é preciso saber como chegar lá. Para isso, é fundamental olhar para o futuro, contemplar as possibilidades de ação e estar atento para não tomar decisões que, em longo prazo, impeçam o país de chegar ao cenário desejado: o de um Sistema Único de Saúde, público e universal, que funcione com equidade e integralidade. Este é um momento de análise e reflexão. Não se pode prospectar o futuro sem um diagnóstico preciso sobre o presente. A partir daí é que se dará o processo de transformação.

 

Renata Leite
Saúde Amanhã
09/01/2017