Coordenadora do estudo que resultou no livro Atenção Primária à Saúde na Coordenação do Cuidado em Regiões de Saúde, a professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense, Patty Fidelis de Almeida*, adianta nesta entrevista alguns resultados de sua pesquisa. Realizada em três regiões de saúde da Bahia, o trabalho identifica, entre outras coisas, a existência de “diferentes racionalidades trabalhando para construir ou para inviabilizar as redes, por meio de embates explícitos e de lógicas ocultas, como disputas de poder e de espaços”. Ela detalha também o processo de investigação aplicado: “Para avaliar a conformação de redes nas regiões de saúde não basta fazer as mesmas perguntas de investigação tradicionalmente utilizadas nos estudos para avaliação dos municípios isoladamente”.
Região e Redes: Em sua opinião, como abordar a Atenção Primária nas regiões de saúde?
Patty Fidelis de Almeida: Abordar a APS nas regiões de saúde é um desafio tanto para processos investigativos quanto para a gestão do sistema de saúde. Em nosso estudo, realizado em três regiões de saúde na Bahia, constatamos os desafios teórico-metodológicos para abordar a temática. O estudo de um objeto no campo da saúde na lógica regional – e não municipal -, desvelou a necessidade de metodologia sofisticada, lançando mão de abordagens qualitativas e quantitativas, por meio de técnicas de entrevistas e inquéritos, além de matrizes prévias com indicadores sensíveis à dinâmica intermunicipal. Entrevistas com gestores municipais, por exemplo, embora tenham sido importante fonte de evidências, mostraram-se insuficientes para captar os complexos movimentos regionais.
Nos indagamos também sobre quais seriam os indicadores sensíveis para refletir a constituição das redes regionais, que certamente são distintos dos que apenas agrupam indicadores tradicionalmente utilizados para avaliações focadas em cada município individualmente ao interior das regiões de saúde. As Comissões Intergestores Regionais (CIR) igualmente representaram espaços privilegiados de investigação. A análise das atas e observação em loco das reuniões da CIR desvelaram aspectos importantes da dinâmica entre gestores para planejamento e construção das redes nas regiões de saúde. As pesquisas podem fortalecer este espaço de governança regional e ratificar a compreensão de que a APS é uma estratégia que precisa envolver o conjunto dos municípios, na perspectiva de pensar a rede de “ponta a ponta”.
Outro fator importante é a incorporação da percepção dos usuários, visto serem estes os principais implicados/afetados pelos constrangimentos à provisão de cuidado integral em saúde e ausência de integração assistencial.
RR: Qual a importância desse tipo de abordagem?
PFA: Um dos pontos importantes, no campo da pesquisa, é sinalizar que se o olhar é para as regiões de saúde, as perguntas de investigação também devem ser capazes de abordar esta dinâmica complexa. Para avaliar a conformação de redes nas regiões de saúde não basta fazermos as mesmas perguntas de investigação tradicionalmente utilizadas nos estudos para avaliação dos municípios isoladamente. O processo de pesquisa nas regiões de saúde da Bahia nos mostrou o limite de algumas abordagens e instrumentos de investigação e a necessidade de colocarmos novas questões. Se nosso modelo de descentralização atribui a responsabilidade pela organização e gestão da APS aos municípios, quais enfrentamentos poderiam ser pensados na perspectiva regional? Qual o modelo esperado para uma APS regional? Estas perguntas nos foram sendo colocadas no decorrer do estudo.
Nesse sentido, entendemos que investigações para compreensão dos processos de constituição das redes regionalizadas necessitam de aparatos metodológicos sofisticados para captar dados de diferentes fontes e cenários. Para tanto, métodos mistos de pesquisa (qualitativa e quantitativa), por meio de triangulação de métodos, análise comparada entre regiões de saúde, análise de redes sociais, dentre outras possibilidades de estudos, podem adensar os achados e contribuir para pesquisas cada vez mais robustas. Atualmente, percebemos que itinerários assistenciais e análise de linhas do cuidado podem adensar os resultados e apontar nuances que permanecem veladas nos interstícios do processo de atenção à saúde em territórios regionais.
RR: Quais os entraves para coordenação do cuidado nas regiões de saúde?
PFA: Os resultados do estudo indicaram que a meta de conformação de redes de atenção à saúde coordenadas pela APS ainda era um tema marginal, especialmente diante da premência em garantir acesso à atenção especializada, de urgência e emergência e de atenção hospitalar. As tensões entre “municípios da região” versus “município sede” em torno da escassez de recursos repercutiam na relação entre gestores, acirrando a lógica da competição. Deste modo, nos cabe indagar quais as possibilidades de coordenação do cuidado pela APS diante da escassez de serviços capazes de responder às necessidades assistenciais de saúde da população? Por sua vez, compreendemos que sem fortalecer a APS e sua capacidade para gestão clínica e para o cuidado longitudinal, certamente o aumento na oferta de serviços especializados, também, não garantirá uma rede resolutiva.
Nos três casos estudados, o percurso dos usuários ramificava-se na rede à medida que os serviços eram fragmentados e a coordenação dispersa. Quando se extrapolava a coordenação para as regiões de saúde, o papel das Equipes de Saúde da Família dissipava-se, por diversas razões, fragilizando a produção do cuidado. A oferta de serviços especializados era fortemente dependente do setor privado e a insuficiência e subfinanciamento públicos, aliados à utilização, por vezes, inadequada, poderiam ser apontados como fatores que dificultavam a constituição das redes regionais.
Os resultados do estudo apontaram que, embora a organização dos fluxos para especialidades via APS nas regiões de saúde tenham sido formalmente constituídos, a incorporação do especialista, por compra de procedimentos, acentuava a fragmentação e fragilizava as possibilidades de coordenação e regulação assistenciais. No contexto das regiões de saúde estudadas parece ser premente a busca de outras formas de incorporação da retaguarda terapêutica, em uma perspectiva de redes intermunicipais.
Os históricos vazios assistenciais no estado da Bahia também foram reconhecidos como entraves à conformação das redes regionalizadas. Vazios assistenciais que se revelaram não apenas na ausência de serviços, mas na indisponibilidade de profissionais para o SUS. Foram avaliadas, naquele momento, de forma bastante otimista, as políticas federais para a provisão emergencial de médicos (PMM), sendo necessários estudos posteriores para avaliação dos efeitos desta política para o fortalecimento da APS. Além disso, a implantação de novos cursos de medicina no estado sinalizava a possibilidade de aumento da atração e fixação de médicos, sobretudo na APS.
Como achados não previstos no estudo, mas com repercussões sobre a coordenação do cuidado, destacaram-se os efeitos das eleições municipais de 2012, época da coleta de dados, sobretudo na instabilidade e acirramento da precariedade dos vínculos de trabalho. Entre médicos houve maior afastamento das funções especialmente por terem maior empregabilidade e possibilidade de estabelecimento de novos vínculos em outros municípios. As perdas de dados (por ausência de médicos nos serviços municipais) foram reveladoras de uma situação concreta, também, vivenciada por usuários, com reflexos nas dificuldades de acesso, no cuidado oportuno, levando a busca por serviços de pronto-atendimento e, por fim, inviabilizando a coordenação do cuidado pela APS.
As observações da CIR indicaram que a APS, de forma geral, foi um tema pouco frequente, ainda que alguns dos problemas enfrentados fossem comuns a todos os municípios da região, como a insuficiência e rotatividade de médicos tanto para a APS quanto para a atenção especializada. Neste sentido, as discussões não priorizavam o planejamento de estratégias regionais e solidárias para o enfrentamento de problemas, prevalecendo a lógica da competição, exemplificada pelo “leilão” de profissionais entre os municípios. Ainda que a APS seja uma responsabilidade de execução municipal, a CIR poderia representar um espaço de planejamento e pactuação da qualidade da oferta dos serviços de primeiro contato, a fim de minimizar os encaminhamentos e os gastos “desnecessários”, segundo avaliação reiterada dos gestores, para serviços de maior densidade tecnológica.
Ainda assim, as análises da CIR, construídas com base na observação e percepção de gestores, indicavam um cenário positivo na constituição de um lócus de governança regional. Havia a possibilidade de gestão compartilhada de problemas que afetavam o conjunto dos municípios da região, embora, muitas vezes, sucumbisse diante dos interesses locais e dos atravessamentos político partidários. Havia a percepção de que a existência deste espaço poderia minimizar atuações clientelistas na saúde, sendo este um dos pontos que parecem justificar sua defesa e fortalecimento.
Os constrangimentos para coordenação pela APS encontrados no estudo foram de diversas ordens, englobando um conjunto de serviços que não conformavam uma rede integrada, na perspectiva de articulação de sujeitos, saberes e práticas. E também uma APS que ainda carecia de robustez em seus atributos essenciais, clamando por ações que ultrapassem as fronteiras municipais para a organização da rede de atenção à saúde em regiões de saúde.
RR: Como superar esses entraves? Quais as principais conclusões do livro Atenção Primária à Saúde na Coordenação do Cuidado em Regiões de Saúde?
PFA: Destacamos a necessidade de ampliação das ações clínicas da enfermagem, apoio matricial pelas equipes de NASF e saúde bucal como medidas que poderiam contribuir para aumentar o escopo das ações ofertadas pelas Equipes de Saúde da Família. O estudo apontou, também, a necessidade de fortalecer a APS por meio da provisão regular de medicamentos e demais insumos, para segurança na resolubilidade e reconhecimento como lócus de busca regular. Apesar dos constrangimentos, a APS, na percepção de usuários e profissionais, pareceu apresentar boa resolubilidade, o que reafirma a necessidade de investimentos para fortalecê-la. A busca indistinta de serviços públicos como primeiro contato, sejam USF, policlínicas ou hospitais, demonstrou a necessidade de organização e articulação da oferta de serviços na rede, de modo que o acesso via APS seja o preferencial.
Nesse sentido, espaços como a CIR precisam ser fortalecidos e reconhecidos como lócus de governança regional solidária, capaz de superar a lógica municipalista, insuficiente para a construção de redes regionalizadas, sobretudo quando nos deparamos com milhares de municípios de pequeno porte, sem possibilidade de provisão de serviços de maior densidade tecnológica. Para tanto, a CIR deve aglutinar estratégias para que gestores possam firmar acordos conjuntos de compromissos sanitários a fim de fortalecer a oferta pública de serviços, superando os frágeis mecanismos de contratualização com o setor privado, uma vez que não há adequado acompanhamento de metas pactuadas entre prestadores privados, restringindo-se à auditoria post factum.
O estudo também sinalizou a necessidade de resgate e reposicionamento estratégico das diretorias regionais ou órgãos equivalentes por meio do apoio institucional. Os resultados apontaram que as instâncias estaduais poderiam assumir o papel de harmonizar, nas regiões de saúde, as decisões construídas e pactuadas nas CIR, bem como articular consensos nos territórios na perspectiva de integrar interesses divergentes das gestões municipais, especialmente nos municípios com maiores dificuldades técnica e gerencial.
A necessidade de comunicação entre profissionais e prestadores é consensual para alcance de melhor coordenação do cuidado. Ações de coordenação provavelmente irão falhar se estiverem sob responsabilidade apenas do médico, como já demonstram alguns estudos. Nesta investigação, por exemplo, o ACS foi responsável pela busca de informações/visitas durante a internação, indicando potencialidades para maximizar as ações de coordenação. Os resultados apontaram a necessidade de resgatar o papel do ACS, em todos os municípios, mas especialmente naqueles que são mais frágeis, amplificando as ações de vigilância, centrando o cuidado nas famílias, buscando outras formas de cuidado nos territórios de forma a fortalecer a integração horizontal.
As regiões de saúde indicam uma inflexão na descentralização e um caminho para viabilizar a integralidade assistencial e para gestão do cuidado integral. Porém, o estudo revelou que a coordenação do cuidado, quando ocorria, limita-se ao território municipal das sedes regionais, ou seja, como a grande maioria dos municípios necessitava de oferta de serviços de outros entes, a coordenação do cuidado via APS era inviabilizada, perdendo-se no fluxo apenas burocrático das centrais de marcação de consultas. O estudo reafirma que há diferentes racionalidades trabalhando para construir ou para inviabilizar as redes, por meio de embates explícitos e de lógicas ocultas (disputas de poder e de espaços), entre os diferentes sujeitos.
Por fim, entre tantos desafios, não nos parece possível a constituição de redes de cuidado integrais sem a coordenação do cuidado entre as unidades que a constituem. Assim, mesmo que se consiga oferta ampla de serviços em um determinado território, a coordenação é um atributo essencial para viabilizar o cuidado continuado e a integração assistencial, requerendo, mais do que nunca, uma forte base de APS.
*Patty Fidelis de Almeida é doutora e mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz e professora do Departamento de Planejamento em Saúde, Instituto de Saúde Coletiva, da Universidade Federal Fluminense (2013). Junto com Adriano Maia dos Santos, professor da UFBA/IMS, coordenou o projeto de pesquisa O papel da Atenção Primária à Saúde na coordenação do cuidado em redes regionalizadas em Regiões de Saúde da Bahia, que deu origem ao livro “Atenção Primária à Saúde na coordenação do cuidado em Regiões de Saúde”, editado pela EDUFBA. Ela também faz parte da equipe de pesquisadores do estudo “Regiões e Redes”.
Regiões e Redes, julho de 2016