O papel da ciência na promoção da saúde e do desenvolvimento sustentável de comunidades “esquecidas” pelo poder público e cujos territórios sofrem com impactos de grandes empreendimentos, especulação imobiliária e turismo predatório foi o tema do Seminário Internacional Saúde e Sustentabilidade, realizado na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), no Rio de Janeiro, em 9 de setembro. O seminário teve como objetivo consolidar um plano de ação para a Rede Ibero-Americana de Territórios Sustentáveis, Desenvolvimento e Saúde (RIA TSDS), da qual a Fiocruz faz parte, e contou com a participação da pesquisadora portuguesa Helena Freitas, coordenadora do Centro de Ecologia Funcional e vice-reitora da Universidade de Coimbra, em Portugal, além de pesquisadores da Fundação e de representantes do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba. A Fiocruz atua nesta região por meio do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina, que trabalha com as populações locais na identificação dos seus problemas e na busca por soluções que promovam o desenvolvimento sustentável e a saúde, denominadas “tecnologias sociais”.
Helena Freitas contou sobre a atuação da Universidade de Coimbra em Cabo Verde e Moçambique, na África, e demonstrou interesse em conhecer os modelos brasileiros de promoção da saúde comunitária. Em Cabo Verde, a universidade está instalando faculdade de medicina que deverá implantar um modelo focado em saúde pública que se ajuste à realidade das ilhas que compõem o país. Segundo ela, do ponto de vista dos indicadores sociais e de saúde, Cabo Verde está “entre Europa e África”, pois já foram feitos investimentos que levaram a progressos em saúde e educação. “O país pode fazer um modelo experimental adequado ao continente africano. Pelo nosso interesse nos países africanos, queremos conhecer os modelos brasileiros”, explicou.
De acordo com Helena, o curso superior, a ser lançado em 2015, requer profissionais que estejam perto das comunidades. “Cada estudante deverá ter logo no primeiro ano uma comunidade para acompanhar ao longo da sua licenciatura, para compreender e lidar com os problemas de saúde das populações e trazê-los à academia, recuperando a ligação que perdemos. Isso também será inspirador para a Universidade de Coimbra”, afirmou.
Outro caso apresentado pela professora é o de Moçambique, onde a pobreza é brutal. “Há crianças subnutridas e outras que ficam cegas por problemas simples como conjuntivite. A água disponível é poluída. Não é possível que pessoas vivam nestas condições”, lamentou. Ela contou que o Parque Nacional da Gorungosa, de beleza extraordinária, teve 90% de sua fauna destruída pela guerra civil. A professora espera que o esforço de recuperação do parque possa trazer um impacto positivo para a população local, principalmente no campo da saúde.
“É um desafio muito grande fazer projetos em questões essenciais para o desenvolvimento das comunidades. A ecologia e o ambiente nos territórios requerem o envolvimento das populações”, defendeu. A professora lidera uma Cátedra de Biodiversidade e Desenvolvimento Sustentável patrocinada pela Unesco, cujo objetivo é encontrar na educação projetos e modelos que promovam o bem estar geral das pessoas, seja onde for. “Saúde e educação gratuitas são fundamentais para a equidade social”, disse. Ela acredita que o trabalho em rede pode contribuir para a reaplicação de modelos de saúde e sustentabilidade em diferentes territórios, criando cursos e saberes. “O desejo de promover o bem estar deve ser o que move a ciência”, concluiu. Ao final do seminário, Helena assinou um convênio de cooperação entre a Universidade de Coimbra e a Fiocruz para a consolidação da Rede Ibero-Americana de Territórios Sustentáveis, Desenvolvimento e Saúde e o desenvolvimento de trabalhos conjuntos.
O pesquisador Edmundo Gallo, da Ensp, que coordena o Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis, lembrou que, historicamente, a ciência tem sido um mecanismo de dominação e não de emancipação. Ele defendeu a necessidade de se promover uma ciência crítica e uma ecologia com uma pauta política, voltada para a emancipação social, contextualizada na percepção das desigualdades e da assimetria de poder, na qual a saúde é vinculada à educação e à vida. A Fiocruz apoia as comunidades locais no desenvolvimento de saneamento ecológico com módulos ecossanitários, na qualificação de lideranças do Forum de Comunidades Tradicionais e na elaboração de um plano regional de desenvolvimento.
“Na Bocaina, o objeto em estudo é a vida. Trabalhamos a partir do real, e não do abstrato. Buscamos construir soluções a partir dos problemas identificados coletivamente, com foco no desenvolvimento de tecnologias sociais reaplicáveis para a transformação social. As soluções são construídas a partir de um diálogo permanente, que envolve especialistas e a comunidade. Também buscamos a integração da gestão do território com as prefeituras e órgãos de diferentes esferas de governo para uma gestão estratégica, além de um processo permanente de avaliação”, contou.
Representante do Fórum de Comunidades Tradicionais, Vagner do Nascimento, o Vaguinho, contou que o Fórum foi criado em 2006, junto com decreto 6040, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Ele falou sobre a campanha Preservar é resistir, lançada este ano, e exibiu o vídeo de divulgação da campanha. De acordo com Vaguinho, o diálogo das comunidades com poder público tem sido difícil e a campanha busca sensibilizar a sociedade e chamá-la para o debate.
“O território da Bocaina é um eixo que liga as duas maiores metrópoles do país. A Mata Atlântica exuberante da região tem sofrido muita intervenção pela grande influência do capital, como na área da energia, com usinas nucleares e agora o pré-sal. A privatização da floresta e a especulação imobiliária avançam e o modelo de turismo preocupa. Doenças como leishmaniose e anemia ferropriva vitimam as crianças. As políticas públicas não chegam lá, mas ao lado há grandes empreendimentos. O território precisa ser visto com mais respeito e sensibilidade. Tem um povo que historicamente vive e cuida do território, mas não tem sido ouvido, apesar da legislação prever isso. O Fórum faz denuncias, traz as demandas das comunidades e propõe alternativas para esse atraso que resulta do modelo de desenvolvimento que não atende a todos os cidadãos”, disse.
O vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, Valcler Rangel, disse que amplificar as lutas comunitárias é um papel fundamental da Fiocruz e que a instituição tem muito a fazer nas suas especialidades – ensino, pesquisa, desenvolvimento tecnológico e atenção à saúde. “Podemos fazer a interface entre teoria e prática, relacionando as questões com outras instituições e políticas”, afirmou.
Representando a Vice-Presidência de Ensino, Informação e Comunicação, o professor Milton Moraes lembrou que a cooperação da Fiocruz com a Universidade de Coimbra é extensa e deve ser capilarizada com ações complementares. Ele lembrou que a Fundação já formou mais de 20 mestres em Maputo, com a lógica de construção compartilhada do conhecimento. Moraes destacou ainda o papel da Fiocruz no plano Brasil sem Miséria de buscar responder a demandas específicas com ações necessárias à erradicação da miséria no país.
Na mesa de abertura, o diretor da Ensp, Hermano Castro, defendeu a necessidade de um modelo de desenvolvimento que não penalize as comunidades e seja verdadeiramente sustentável, de forma que a sociedade e o coletivo sintam o bem viver. Para ele, os governantes deveriam assumir estas bandeiras e os acadêmicos tem que aprender a se alimentar daquilo que a sociedade apresenta através dos movimentos sociais. O coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz), Paulo Buss, lembrou do papel importante que a Fiocruz teve no documento O futuro que queremos, da Rio + 20, que diz que a saúde contribui e é um indicador de desenvolvimento. “Só há sentido no crescimento econômico com o desenvolvimento integral da sociedade. Se não discutirmos desenvolvimento local não faz sentido o desenvolvimento. Iniciativas como esta, com as comunidades, precisam avançar. Indignação e justiça social devem ser o motor do nosso trabalho”, argumentou.
Foto da capa: Eduardo di Napoli
Agência Fiocruz, 15/09/2014