Saúde no centro da agenda de desenvolvimento

“É por meio da Saúde, de sua definição como direito, que a população se realiza enquanto nação, que se projeta no futuro, no trabalho, na sua capacidade de se realizar nas dimensões pessoais e profissionais. O setor está no centro da agenda de desenvolvimento”, afirma José Celso Pereira Cardoso Júnior, técnico em planejamento e pesquisa da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O economista, que participou do seminário “Iniciativas em Prospecção Estratégica Governamental no Brasil”, promovido pela rede Brasil Saúde Amanhã, ressalta nesta entrevista o decisivo papel do Estado no desenvolvimento do país: “a única forma de o Brasil superar suas dificuldades e organizar um processo de desenvolvimento é ter o Estado no centro do processo”.

 Qual a importância dos estudos prospectivos de futuro e como eles podem contribuir para a criação de uma cultura de planejamento de política pública?

 A abordagem prospectiva não deve ser um fim em si, pois ganha sentido à medida que está conectada a um projeto de desenvolvimento de país. Esta atividade se torna ainda mais importante em um contexto de globalização e de crescimento da complexidade, como o verificado na realidade brasileira, que exige um pacto em relação aonde queremos chegar enquanto nação e

à estratégia para isso. O estudo de futuro é uma das ferramentas do planejamento governamental que permite vislumbrar possibilidades, oportunidades, cenários e identificar possíveis constrangimentos nacionais e internacionais ao projeto de desenvolvimento consensuado. O instrumento é muito poderoso e útil para mapear o leque de possibilidades que o país tem a sua disposição, possibilitando ao governo alocar recursos financeiros, humanos e tecnológicos em uma determinada direção.

 O uso dessa ferramenta estratégica se traduz em ações para a população, nos territórios. O processo de desenvolvimento é complexo e se dá no presente, mas orientado por alguma visão de futuro desejável. Apesar de sua relevância, a prospecção estratégica ainda é pouco desenvolvida e difundida pelos órgãos do Governo Federal, que deveria se valer mais desse tipo de ferramenta para aprimorar a qualidade de seu planejamento. Está claro que muitas instituições brasileiras já têm constituída uma inteligência estratégica, tanto para a prospecção quanto para o planejamento. No entanto, falta centralidade política para esses trabalhos e sinergia entre as iniciativas de planejamento e prospecção em curso. O contexto de complexidade que estamos vivendo pede uma abordagem integrada de nossos desafios e esforços coletivos para definir caminhos para o desenvolvimento. E essa abordagem não deve ser setorizada, fragmentada. Deve ser, necessariamente, multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar.

 A partir do momento atual, quais os cenários futuros para a economia brasileira e quais os impactos possíveis para as políticas sociais?

 Mesmo se a democracia brasileira não estivesse sendo posta à prova, o cenário para os próximos 20 anos já seria suficientemente desafiador para a economia local. Estamos vivendo, em âmbito global, uma série de tendências que independem da vontade de países e governos nacionais, que afetarão a forma de inserção do Brasil no mercado internacional. Está em curso um movimento de hiperconcentração econômica que se dá, preponderantemente, junto aos países centrais, ou já desenvolvidos, como os Estados Unidos, a Alemanha e a China – que está despontando como nova e poderosa potência. Essa concentração ocorre no nível das empresas transnacionais e o Brasil não está neste rol de países hegemônicos. Esse processo está ampliando a assimetria existente entre os países ricos, medianos e pobres, agravando a hierarquização de poder em escala mundial. Esta dinâmica tem consequências importantes para uma economia como a brasileira, que tenderá a perder graus de liberdade, sendo impedida de decidir completamente o que deseja ou pode fazer.

 Do ponto de vista tecnológico, está em curso uma nova revolução: a da convergência tecnológica. A ciência moderna de ponta conseguiu desmembrar a matéria nas suas ínfimas unidades: a matéria física, no átomo; a matéria biológica, no gene. Esse tipo de desenvolvimento requer um investimento muito pesado em Ciência,Tecnologia, Inovação e Educação, recursos que estão disponíveis para poucos países. Quanto mais essas tecnologias estiverem concentradas em poucas nações ou empresas, maior será a assimetria de poder e de acesso a recursos. O Brasil tende a voltar a viver uma espécie de dependência tecnológica que marcou o desenvolvimento da economia nacional no começo do século XX e que, com muito esforço, foi minimamente superada. O desafio atual é maior do que o enfrentado no passado porque não se trata mais de copiar tecnologias existentes. Uma mudança de nível hierárquico nesse sistema depende da produção de inovação e conhecimento, muito mais difíceis de dominar.

 A concentração da Inovação, da Ciência, da Tecnologia e da riqueza tende a aumentar as iniquidades em Saúde, por exemplo, por meio da medicina personalizada. Como o senhor avalia esse desafio?

 Diante deste cenário, certamente aumentará a heterogeneidade da Saúde. O setor está no centro de todas essas disputas por, ao mesmo tempo, impactar e ser influenciado pela Economia; depender e modular o campo da Ciência, Tecnologia e Inovação; ser financiado por escassos recursos públicos e assumir o compromisso do acesso universal. São problemas complexos e difíceis de resolver. A sociedade brasileira é majoritariamente de baixa renda, não tem acesso a planos de saúde e depende do sistema público. O Sistema Único de Saúde (SUS) é, portanto, uma exigência no país, dado o perfil sociodemográfico e epidemiológico de sua população. Por outro lado, o setor é altamente dependente de investimentos de ponta, que o conectem à indústria e aos diversos serviços sociais e à qualidade de vida – uma ambição geral dos países.

 Esse cenário complexo depende fundamentalmente do Estado como organizador do processo de desenvolvimento e, inclusive, dos mercados privados de Saúde. O Estado deve ser o organizador do acesso da população, do financiamento, do investimento em Ciência,Tecnologia e Inovação. Dadas as suas características, no caso brasileiro é difícil conceber um formato que dê acesso universal à Saúde sem depender de um arranjo que tenha o Estado no centro, como ator principal. A Saúde não é um setor isolado dos demais. Ela sofre todos os impactos socioeconômicos da população, assim como afeta o desempenho e a configuração futura dessa população. É por meio da Saúde, por sua definição como direito, que a população se realiza enquanto nação, que se projeta no futuro, no trabalho, na sua capacidade de se realizar nas dimensões pessoais e profissionais. O setor está no centro da agenda de desenvolvimento.

 Como a discussão sobre o papel do Estado brasileiro pode, em longo prazo, transformar esse quadro de concentração de riquezas, conhecimentos e tecnologias?

 O Brasil, neste ano de 2016, está vivendo uma situação de ruptura da ordem democrática que afeta a configuração do Estado brasileiro e do seu poder de estabelecer uma agenda de desenvolvimento inclusiva, democrática, soberana e sustentável, como era a que estava em construção na primeira década de 2000. A conjuntura atual tenta convencer a população, por meio de variados artifícios ideológicos, de que o Estado social brasileiro não cabe no orçamento nacional. Isto é uma falácia. A sociedade brasileira – por sua heterogeneidade, complexidade, necessidades e carências – é que  não cabe no projeto liberal conservador que tenta se colocar como padrão de organização de Estado e de desenvolvimento do país.

 Logo ficará claro para a população que a única forma de o Brasil superar suas dificuldades e organizar um processo de desenvolvimento é ter o Estado no centro do processo. Não estou dizendo que todas as soluções dependem e passam exclusivamente pelo papel do Estado. Mas, no caso brasileiro, ele é, inevitavelmente, o agente central do processo de desenvolvimento.  Sem ele, o próprio mercado não existe e não funciona no país. É sua função focalizar e capitanear a política pública na linha da inclusão, da universalização. Se o Estado não o fizer, não haverá quem o faça. Não serão os agentes privados que irão promover a universalização da Saúde, da Educação, da Segurança Pública.

 O que falta para o Brasil caminhar nessa direção?

 Quando falamos que o Estado é central no processo de desenvolvimento, também estamos dizendo que ele precisa se organizar e funcionar de uma maneira diferente da atual. Existem três ideias fortes que pautam a reflexão sobre Estado e desenvolvimento. A primeira trata da necessidade de uma reforma de natureza republicana, que traga mais transparência aos processos decisórios, no trato da coisa pública de modo geral. É neste ponto que se concebe a agenda de combate à corrupção. Isso precisa ser encampado como uma parte da reforma de Estado, direcionando a esfera pública para as necessidades universais da população.

 A segunda ideia trata da questão da democracia. Não há como fazer uma mudança dessa envergadura sem a participação da maioria da população. A democracia não é apenas um valor em si, mas também um método de governo, por meio do qual as vontades da maioria da população se manifestam eleitoralmente e periodicamente. Por fim, a terceira proposição considera o próprio desenvolvimento como carro-chefe da ação do Estado. Ou seja, o Estado não existe para si próprio, mas como um instrumento para o desenvolvimento da nação. Nesse sentido, fortalecer as dimensões do planejamento, da prospecção, da gestão pública, do controle social – estratégias de organização e funcionamento do Estado – é fundamental para que possamos dar um salto de qualidade no século XXI.

Bel Levy
Saúde Amanhã
08/08/2016