Um grupo multidisciplinar de especialistas se reuniu na semana passada, na Fiocruz, para debater os dilemas relacionados à conjuntura política e econômica e às desigualdades territoriais para a organização do sistema de saúde brasileiro. O encontro aconteceu durante o seminário “Desafios da Regionalização e Conformação de Redes de Atenção em Contexto de Crise e de Desigualdades Territoriais”, realizado dias 12 e 13 de dezembro e organizado pelo Departamento de Administração e Planejamento em Saúde (Daps) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz).
Durante o evento, os palestrantes apresentaram o histórico de transformações socioeconômicas das últimas décadas, traçando um paralelo entre o caso brasileiro e a experiência de outros países latino-americanos. Trataram, também, da multiplicidade de agentes públicos e privados envolvidos na organização de redes de atenção à saúde no Brasil e discutiram tendências para o futuro. “A saúde do trabalhador é o motor não só da economia do país, mas também do Sistema Único de Saúde (SUS), que está sob forte ameaça diante do retrocesso que estamos vivendo no país”, ressaltou Hermano Castro, diretor da Ensp, ao abrir o evento, ao lado de Maria de Fátima Tavares Lobato, coordenadora geral do Daps, e Luciana Dias de Lima, pesquisadora da Ensp.
O seminário articulou pesquisadores e professores de diferentes áreas incluindo a economia regional, a geografia, a ciência política e a Saúde Coletiva. “Entendemos a regionalização como a incorporação do território nos processos que envolvem a formulação, a implementação e a gestão de políticas de saúde. A conformação de redes é fundamental para efetivar a regionalização. No seminário, valorizamos as contribuições de diferentes campos do conhecimento. Esse olhar mais abrangente é necessário e enriquece muito a discussão”, destacou Luciana.
“As discussões travadas durante o seminário partiram da perspectiva de uma atuação abrangente, intensiva e positiva do Estado na Saúde. No entanto, a aprovação da PEC 55, que impõe limite aos gastos públicos no setor pelos próximos vinte anos, indica um movimento contrário: a retração do Estado, inclusive em suas funções essenciais para a garantia dos direitos das pessoas”, comentou Luciana, após o encerramento do evento. Para a pesquisadora, os cenários futuros não são favoráveis para um sistema de saúde que deseja superar a fragmentação e as desigualdades no acesso. “O enfrentamento das desigualdades que se expressam no acesso à saúde exige uma atuação mais intensiva do Estado no território, com ampliação de investimentos, para que seja possível alterar a infraestrutura física do sistema de saúde que atualmente não favorece o acesso universal, equitativo e integral”, concluiu Luciana.
Experiências internacionais, planejamento regional e condicionantes das políticas
As pesquisadoras Asa Cristina Laurell, do Centro de Análisis y Estudos de Seguridad Social (Caess), no México, e Cristiani Vieira Machado, da Ensp, palestraram na primeira mesa do seminário, intitulada “Desigualdade e fragmentação de políticas e sistemas de saúde: a experiência da América Latina e a especificidade brasileira”, coordenada por Maria Helena Magalhães de Mendonça, do Daps. Asa ressaltou que a Saúde é considerada um terreno a ser conquistado pela acumulação de capital no âmbito da globalização neoliberal – lógica incompatível à da Saúde Pública. “Nesse contexto, a formação de redes, que pressupõe cooperação, é substituída pela competição típica da lógica de mercado. De 1945 a 1980, não havia o questionamento do direito à Saúde. Essa definição de bem privado é próprio do pensamento econômico neoclássico e de quem defende que o Estado é ineficiente e incapaz de prover serviços com qualidade”, explicou.
“As sociedades capitalistas têm contradições, que são explicitadas de forma vigorosa pelas políticas sociais. É importante entender quando a configuração das políticas sociais age no sentido de reduzir o impacto dos mercados sobre os indivíduos ou são desenhadas para reiterar as relações de mercado”, complementou Cristiani. A pesquisadora ressaltou, ainda, o contexto da trajetória recente de proteção social na América Latina, relacionando a temporalidade da redemocratização e os avanços de reformas neoliberais. “O tempo de maturação é importante para haver um realinhamento, uma mudança do status quo, não apenas na magnitude nos gastos com políticas sociais, mas principalmente para as reorientações delas nos sentidos mais redistributivos”, afirmou Cristiani.
A mesa “Desigualdades e diversidade territorial: implicações para o planejamento regional e a universalização do sistema de saúde no Brasil” explorou os principais desafios que se impõem à organização do sistema de saúde segundo a perspectiva das redes de atenção. Com enfoque territorial, o debate contou com a participação de Lenice Reis, do Daps, como mediadora, e de Antonio Carlos Filgueira Galvão, diretor do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), Fabio Betioli Contel, professor da Universidade de São Paulo (USP), e José Carvalho de Noronha, coordenador executivo da projeto Saúde Amanhã, como palestrantes.
“Instituições, redes e atores na condução de políticas públicas: desafios da governança regional do SUS” foi o título da terceira mesa, que reuniu Eduardo Cesar Leão Marques, da USP, Gastão Wagner de Souza Campos, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e Ana Luiza d’Ávila Viana, da USP, para discutir as condicionantes políticas do processo de regionalização e conformação de redes. “Múltiplos atores, governamentais e não-governamentais, têm influência sobre a formação de redes na saúde porque detém poder sobre o financiamento setorial e a prestação e regulação de serviços. Buscamos discutir os desafios atuais e as tendências que se aproximam neste campo”, comentou Luciana, que mediou o debate.
A última mesa – “A Atenção Básica e os desafios da integração regional de políticas, serviços e práticas” – abordou aspectos operacionais e organizacionais relacionados à coordenação da rede de saúde na Atenção Primária e nos diferentes níveis de complexidade. Cláudia de Brito, da Ensp, coordenou o debate. Palestraram Marcia Cristina Rodrigues Fausto, da Ensp, Rosana Kushnir, da Ensp, e Francisco Viacava, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnologia em Saúde (Icict/Fiocruz).