A incorporação tecnológica pode impactar os sistemas de saúde para o bem ou para o mal. Por exemplo, enquanto a inovação tecnológica melhora os serviços de prevenção, diagnósticos, tratamentos e reabilitação, também os tornam mais caros e menos inclusivos. Esse é um dos aspectos tratados nesta entrevista com Hudson Pacífico da Silva, pesquisador convidado da École Nationale d‘Administration Publique (ENAP), no Canadá, e membro de Região e Redes. “O problema é que o número de novas tecnologias lançadas pela indústria no mercado é crescente, seu ciclo de vida está diminuindo e o ritmo das mudanças está desafiando a capacidade dos gestores de decidir sobre sua incorporação nos serviços de saúde”, diz.
Região e Redes – Como a incorporação tecnológica impacta os sistemas de saúde?
Hudson Pacífico da Silva – As inovações tecnológicas desempenham um papel central na organização dos sistemas de saúde, pois influenciam a forma como os diversos serviços de saúde são prestados à população, assim como os resultados alcançados. Essas inovações abrangem um conjunto amplo de tecnologias que são utilizadas para fins de prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação, como vacinas, kits e reagentes para diagnóstico, medicamentos, equipamentos médico-assistenciais, procedimentos médicos e cirúrgicos etc. Também fazem parte dessas inovações os sistemas organizacionais e as tecnologias da informação e comunicação aplicadas na área da saúde. Os impactos da incorporação dessa ampla variedade de tecnologias nos sistemas de saúde são diversos. Incluem desde a oferta de novos serviços a partir da introdução de um novo exame diagnóstico ou medicamento, até mudanças no plano organizacional, a partir da informatização e integração de registros clínicos e administrativos.
RR – Apesar dos aspectos positivos associados à utilização dessas tecnologias, sua incorporação nos sistemas de saúde tem sido apontada como um dos fatores responsáveis pelo crescimento dos gastos.
HS – Isso ocorre porque as tecnologias em saúde estão, de modo geral, mais direcionadas à aplicação em meios diagnósticos e terapêuticos do que em meios que venham a baratear o processo interno de tratamento. Além disso, elas tendem a ser agregativas, ou seja, somam-se ao conjunto de tecnologias existentes, em vez de substituí-las. Por exemplo, diferentes métodos de investigação diagnóstica e diferentes tipos de medicamento para uma mesma patologia encontram-se disponíveis aos profissionais e usuários do sistema. O problema é que o número de novas tecnologias lançadas pela indústria no mercado é crescente, seu ciclo de vida está diminuindo e o ritmo das mudanças está desafiando a capacidade dos gestores de decidir sobre sua incorporação nos serviços de saúde.
RR – Qual o papel da regulação no processo de incorporação de novas tecnologias em saúde?
HP – A regulação desse processo é fundamental, por diversas razões. Primeiro porque é necessário que haja padrões de segurança e eficácia para garantir que a produção e comercialização de uma nova tecnologia não produzirá efeitos secundários danosos e irreversíveis à saúde da população. O uso da talidomida em mulheres grávidas no século passado, que resultou em milhares de bebês com malformações congênitas, é um exemplo clássico desse tipo de risco.
Em segundo lugar, a incorporação de novas tecnologias em saúde possui implicações sociais importantes, na medida em que afeta a distribuição de custos e benefícios entre os diferentes grupos sociais. Por exemplo, ao decidir incorporar um novo tratamento para um tipo específico de câncer que irá beneficiar uma parcela da população, o gestor de saúde também deverá decidir quais ações ou programas – que beneficiam outros segmentos da população – serão afetados por essa decisão, já que muitas vezes o orçamento impõe a seleção de prioridades.
Em terceiro lugar, uma parcela cada vez maior de tecnologias tem sido incorporada no sistema de saúde via estabelecimentos privados, cuja lógica de atuação tende a privilegiar a prática de uma medicina moderna e custosa num contexto de desigualdades e necessidades básicas em saúde. Dessa forma, o processo decisório não pode ser pautado somente pelos interesses de mercado das empresas que produzem e comercializam essas tecnologias ou pelas demandas de grupos de profissionais, que muitas vezes não convergem com as necessidades de saúde da população.
Por fim, num contexto onde os recursos para o financiamento da saúde não aumentam na mesma proporção ou velocidade, a adoção acrítica de tecnologias certamente levará os sistemas de saúde a um período crítico de sustentabilidade, em função do impacto orçamentário decorrente desse tipo de incorporação.
RR – De modo geral, qual o risco atual de aumento das iniquidades e desigualdades na assistência à saúde em função das inovações tecnológicas?
HS – O risco é elevado, pois as evidências sugerem que a agenda de inovações tecnológicas das empresas não converge com a agenda de necessidades e prioridades da política de saúde. Isso porque os processos de desenho das inovações são abertos a influências de agentes internos e externos, que priorizam certos problemas e não outros, e que possuem certa visão sobre qual tecnologia deve ser fornecida.
De um lado, os profissionais responsáveis pelo desenho das novas tecnologias em saúde se apoiam em diversos tipos de análises e projeções de mercado, e seu trabalho é fortemente influenciado por fatores internos à organização, como planejamento estratégico, lucratividade e participação de mercado. Entretanto, muitos estudos sugerem que esses processos são fortemente influenciados pelas demandas de diferentes grupos sociais, incluindo as autoridades públicas e os usuários, que estão envolvidos mais cedo nas discussões sobre tecnologias emergentes em virtude da existência de novas fontes de informação, do desejo dos governos em fazer com que determinada tecnologia seja lançada (criando condições para isso), da habilidade de grupos da sociedade civil ou de cidadãos atentos.
Existe, assim, uma arena sócio-política aberta e instável, na qual grupos de apoio e agentes econômicos estão em posição de influenciar o desenho das inovações. O resultado disso é que muitas dessas inovações possuem características que contribuem para o aumento das desigualdades no acesso aos serviços de saúde. Por exemplo, não são socialmente inclusivas em função do custo elevado, não são relevantes do ponto de vista das necessidades de saúde da população e não aumentam a autonomia dos usuários ou reduzem sua dependência de consultas com médicos especialistas.
RR – Como o Brasil vem se posicionando em relação a esses riscos e quais as políticas mais importantes?
HS – O Brasil vem adotando políticas e estratégias importantes para lidar com esses riscos, embora, a meu ver, ainda de maneira insuficiente. Existem duas políticas nacionais que tratam da questão das tecnologias em saúde no país: a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde (PNCTIS), aprovada em 2004, e a Política Nacional de Gestão de Tecnologias em Saúde (PNGTS), instituída em 2009.
As origens da PNCTIS remontam à 1a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde, realizada em 1994, quando surgiu o debate sobre a importância e a implicação do desenvolvimento científico e tecnológico na saúde, que veio a figurar na discussão política entre os diversos atores do sistema de saúde, da comunidade científica e da sociedade. Nesse evento, foi proposta uma agenda ampla sobre o desenvolvimento científico e tecnológico para o setor saúde e identificada a necessidade de elaborar uma política nacional de ciência e tecnologia em saúde.
A PNCTIS foi aprovada 10 anos depois, durante a 2ª Conferência Nacional de CTI em Saúde, e tem por objetivo contribuir para que o desenvolvimento nacional se faça de modo sustentável, apoiado na produção de conhecimentos técnicos e científicos ajustados às necessidades do país. Diversas estratégias foram previstas no âmbito dessa política e algumas delas foram implementadas com relativo sucesso, como a construção da agenda nacional de prioridades de pesquisa em saúde, o fortalecimento do esforço nacional em CIT em saúde e a difusão dos avanços científicos e tecnológicos. Entretanto, ela ainda não foi capaz de enfrentar desafios importantes, especialmente no que se refere à criação de mecanismos apropriados para superar as desigualdades regionais e à introdução de um círculo virtuoso entre saúde e desenvolvimento.
A PNGTS, por sua vez, teve sua origem nos diversos fóruns de debate que aconteceram no período 2007-08 nos campos do direito à saúde, da saúde baseada em evidências, da avaliação econômica e da gestão em saúde. Esses debates identificaram como ponto de partida a necessidade de institucionalização de uma política nacional com diretrizes gerais para orientar a implantação da avaliação, incorporação e gestão de tecnologias no sistema de saúde.
Eu mencionaria dois avanços principais no âmbito dessa política. O primeiro está relacionado com a produção, sistematização e difusão de estudos de avaliação de tecnologias em saúde (ATS) para subsidiar a tomada de decisão no âmbito do SUS. A iniciativa mais importante desse processo foi, sem dúvida, a criação da Rebrats – Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias em Saúde, em 2008. Essa rede, formalmente instituída em 2011, conta atualmente com cerca de 80 instituições que atuam no sentido de promover e difundir a ATS no Brasil mediante a execução de diversas atividades: produção e disseminação de estudos e pesquisas prioritárias no campo de ATS; padronização de metodologias; capacitação profissional na área; estabelecimento de mecanismos para monitoramento de tecnologias novas e emergentes etc.
O segundo avanço teve início em 2006, com a criação de um colegiado responsável por recomendar a incorporação ou retirada de produtos de saúde na lista de procedimentos do SUS. Esse colegiado foi substituído, em 2011, pela atual Conitec – Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Seu papel é assessorar o Ministério da Saúde nas atribuições relativas à incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde pelo SUS, mediante a elaboração de parecer que leve em consideração os benefícios e os riscos para a população brasileira no longo prazo, os custos envolvidos e o potencial de inovação tecnológica que a incorporação poderá introduzir no sistema.
Dentre os principais desafios da PNGTS, eu destacaria a necessidade de levar as atividades de ATS às esferas subnacionais do SUS. Isso criaria uma cultura de evidência científica entre os gestores estaduais e municipais de saúde. Outros desafios incluem a expansão da ATS na saúde suplementar, integrando com as iniciativas já desenvolvidas no SUS, a adoção de processos decisórios mais transparentes e a ampliação do engajamento dos usuários nas atividades de avaliação e incorporação de tecnologias em saúde.
RR – Qual o papel das regiões de saúde nesse quadro?
As regiões de saúde são espaços fundamentais no sentido de coordenar e integrar os diferentes estabelecimentos e serviços de saúde existentes no território, reduzindo as principais barreiras que podem atrasar ou mesmo inviabilizar a oferta de tecnologias já incorporadas ao SUS. De certa forma, elas deveriam se ver como sistemas de atenção à saúde em miniatura, porém capazes de prover a integralidade da atenção à saúde à população residente no seu território. Só assim o usuário estaria adscrito a uma região de saúde e portanto prescindiria de migrar em busca de atendimento especializado, como se vê hoje em dia.
Entretanto, atualmente as regiões de saúde não possuem um papel definido no âmbito das duas políticas que tratam da questão das tecnologias em saúde no país. Até o momento, não se tem notícia, por exemplo, de interação entre essas instâncias regionais e a Conitec, não havendo nenhuma demanda dessa instância de gestão em análise na comissão. Por outro lado, estados e municípios já estão representados no plenário da Conitec, via Conass e Conasems, e os aspectos que envolvem as responsabilidades tripartites, assim como as consequências positivas e negativas de uma recomendação, tendem a ser consideradas nas análises e discussões para uma incorporação ou exclusão de tecnologia no SUS.
RR – A regionalização e a incorporação regulada são compatíveis?
HS – Sim, desde que haja uma ação coordenada envolvendo as diferentes instâncias que participam desse processo. No Brasil, a existência de instrumentos para a gestão de um sistema regional de saúde (Plano Diretor Regional, Programação Pactuada Integrada e Plano Diretor de Investimentos) e de espaços de governança regional (Comissão Intergestores Regional) são aspectos facilitadores desse processo. Nas unidades da federação onde o gestor estadual possui mais condições de liderar esse processo, como é o caso de São Paulo, diversas iniciativas foram adotadas no período recente no sentido de aprimorar o processo de incorporação de tecnologias no estado.
São exemplos dessas iniciativas a criação da Coordenadoria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos na estrutura administrativa da SES/SP, a instituição do Conselho Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde, a criação do Centro de Tecnologias de Saúde para o SUS no âmbito do Instituto de Saúde (órgão ligado à SES/SP), a implantação do S-CODES, um sistema de informações sobre ações judiciais da SES/SP, a instituição da Comissão de Farmacologia vinculada à SES/SP e a ampliação e fortalecimento dos Núcleos de Avaliação de Tecnologias em Saúde em diversos hospitais que atendem o SUS (Rede Paulista de ATS).
No entanto, a incorporação regulada no plano regional tende a ser minada por diversos fatores que obstruem a capacidade de gestão do SUS nas regiões: baixo nível de cooperação entre os gestores municipais de saúde de uma mesma região, assim como entre os gestores municipais e o gestor estadual; grande rotatividade de secretários de saúde, implicando descontinuidades de políticas, ações e programas; recursos financeiros insuficientes para o desenvolvimento das ações de saúde programadas na região; baixa autonomia executiva dos escritórios regionais das instâncias estaduais; influência de políticas partidárias na tomada de decisão etc. Além disso, os gestores do SUS no plano regional praticamente não dispõem de informações úteis e apropriadas sobre as consequências clínicas, econômicas e sociais relativas às demandas de incorporação de tecnologias em seu território. Tudo isso torna esse processo bastante complicado.
RR – O que podemos apreender com a experiência do Canadá?
HS – O Canadá foi um dos primeiros países do mundo a reconhecer formalmente o valor da avaliação de tecnologias em saúde como ferramenta de apoio à introdução e ao uso de novas tecnologias no sistema de saúde. As primeiras preocupações sobre a sustentabilidade dos sistemas de saúde das províncias e territórios canadenses começaram a surgir no início dos anos 1980. Nessa época, muitas comunidades de pesquisa e de atenção à saúde publicaram papersdestacando a necessidade de uma abordagem sistemática e estruturada para avaliação de tecnologias em saúde no país.
Em 1988, o governo da província do Quebec criou o Conseil d’Évaluation des Technologies de la Santé du Québec (CETS), que depois mudaria o nome para Agence d’Évaluation des Technologies et des Modes d’Intervention en Santé (AETMIS). Alguns meses mais tarde, foi criada o Canadian Coordinating Office of Health Technology Assessment (CCOHTA), uma organização conjunta federal/provincial/territorial com a missão de produzir avaliações tecnológicas e coordenar a ATS em todo o país, visando minimizar a duplicidade de esforços.
Conforme crescia o interesse por ATS, diversas agências foram criadas em outras províncias canadenses, enquanto mudanças ocorreram naquelas já existentes. No Quebec, a AETMIS foi fundida com o Conseil du Medicament, o organismo responsável pela revisão de novos medicamentos para figurar na lista da província, dando origem ao Institut National d’Excellence en Santé et en Services Sociaux (INESSS). Em 2006, o CCOHTA foi renomeado e passou a se chamar Canadian Agency for Drugs and Technologies in Health (CADTH) para refletir sua nova missão de fornecer informações sobre as implicações clínicas e econômicas de medicamentos e outras tecnologias em saúde para os 13 planos de saúde das províncias e territórios. Dessa forma, a capacidade de produzir estudos de ATS e seu uso na tomada de decisão aumentou consideravelmente em todo o país ao longo das duas últimas décadas.
Apesar disso, é possível mencionar alguns desafios associados à experiência canadense. Por exemplo, estudos qualitativos mostraram que os principais atores envolvidos nesse processo reconhecem o rigor científico dos estudos e a credibilidade das agências de ATS, mas avaliam mais ceticamente sua autonomia política. Ao mesmo tempo, a habilidade das agências para introduzir mudanças nos sistemas de saúde é considerada baixa, principalmente em função do tempo necessário para produzir um relatório completo de ATS (um ano, em média) frente à urgência das necessidades por informação no processo de tomada de decisões.
Por fim, foram identificadas limitações organizacionais (ligadas à estrutura e organização de vários ambientes de trabalho), científicas (devido ao nível de conhecimento científico dos usuários) e materiais (relacionadas com a falta de recursos humanos, físicos e materiais) no uso dos estudos de ATS. Tais desafios sinalizam para o fato de que a ATS precisa ser entendida como apenas uma fonte de informação entre outras que são valorizadas e usadas em tomadas de decisão e formulações de políticas.