A inovação em saúde não é neutra

“Garantir o acesso universal da população ao sistema de saúde e às novas tecnologias não será possível sem democratizar os processos inerentes à dinâmica de inovação na Saúde”. A afirmação é da especialista Laís Silveira Costa, que integra o Grupo de Pesquisa de Inovação em Saúde da Fiocruz e investiga os cenários futuros para a democratização do acesso à saúde por meio da inovação. O tema recebeu atenção especial do periódico Cadernos de Saúde Pública, com o lançamento, em dezembro de 2016, do suplemento “Saúde, desenvolvimento e inovação no Brasil”. Nesta entrevista, Lais explica como os processos de desenvolvimento e incorporação de novas tecnologias estão alinhados ao projeto de desenvolvimento nacional, que pode ser orientado por interesses neoliberais ou pelas demandas sociais. “A tendência, no cenário atual, é a intensificação da exclusão. Em outras palavras, mantendo-se a falta de prioridade para o setor Saúde, a escassez de investimentos, o aumento da demanda e a adoção de trajetórias de inovação que favorecem a marginalização social, não há como ser otimista”, declara.

A inovação é estratégica tanto para a subordinação do conhecimento às demandas do mercado quanto para a garantia da sustentabilidade de um sistema universal de saúde?

A inovação em saúde não é neutra, pois responde a determinados interesses e necessidades em detrimento de outros. Como a capacidade de geração, uso e difusão de inovação é crescente e inerentemente relacionada à inserção competitiva internacional em uma economia globalizada, ela tem se orientado, regra geral, pela necessidade de acumulação característica dos sistemas capitalistas. Tal fato implica a crescente subordinação do conhecimento às demandas do mercado. Justamente por ser um campo intensivo em conhecimento, o protagonismo da Saúde na geração de inovação é muito grande. Por um lado, as inovações das últimas décadas têm contribuído sobremaneira para melhorar o bem-estar e elevar a longevidade da população. Por outro, existem interesses antagônicos que estão representados nas agendas públicas e nos fóruns decisórios e que resultam no uso de tecnologias associadas a efeitos indesejáveis ao tratamento ou, ainda, na reafirmação de um padrão de inovação que não se torna disponível para o conjunto da população.

Em estudo que realizei junto à pesquisadora Ligia Bahia sobre a dinâmica de incorporação tecnológica e de inovação nos grandes centros hospitalares brasileiros, constatamos um fluxo de recursos, já escassos do setor público, destinados crescentemente à atenção da demanda privada. Isto é parte do processo que vem constituindo um sistema de saúde cada vez mais desigual, tendência que vem se intensificando na conjuntura atual de crise fiscal. O tema é complexo e exige a compreensão das contradições das estruturas sociais mo­dernas, marcadas pela consolidação da ordem global neoliberal, em detrimento da sobera­nia estatal nacional e pelas transformações decorrentes que levam ao enfraquecimento dos Estados de Bem-Estar Social.

Como a abertura da Saúde ao capital estrangeiro vem influenciando esse cenário? Quais as perspectivas para as próximas décadas?

A abertura da Saúde ao capital estrangeiro é parte de todo esse processo, que tem viabilizado a formação de grandes oligopólios de prestação de serviços de bem-estar, o que pode aprofundar a tendência a sistemas de saúde segmentados e iníquos. A desigualdade no acesso às novas tecnologias, os diferenciais de exposição de riscos e o fluxo de recursos mobilizados para uma parcela restrita da população apontam tanto para uma correlação de forças assimétricas na arena da Saúde, quanto para o desenvolvimento e adoção de trajetórias tecnológicas que vêm acirrando as desigualdades sociais. Na atual conjuntura, há que se considerar os limites de uma política nacional ante a um cenário global assimétrico e a uma inserção subalterna nas cadeias globais de valor.

No tocante à agenda de inovação, a influência do capital estrangeiro sobre o padrão de consumo na Saúde favorece o fortalecimento dos interesses econômicos, ao garantir a introdução, no mercado, de inovações que não representam necessariamente o melhor ou o mais seguro curso de atenção à saúde. Crescentemente, os centros médicos e hospitalares organizam-se em termos mercadológicos. Em centrais de emergência e demais segmentos das redes de atenção, gerentes financeiros têm a palavra final sobre a do médico. O paciente é invisível, como se ele não fosse sujeito daquele serviço, mas um ser passivo diante da imposição de uma série de exames e procedimentos cuja necessidade não é avaliada a partir de sintomas e exames clínicos – e que nem sempre representam a atuação mais segura para o paciente. Além disso, como os recursos são limitados, desperdícios impõem a escassez para a grande maioria da população.

Em médio e longo prazo, como o desenvolvimento e a incorporação de novas tecnologias em saúde podem impactar a estruturação das redes de atenção?

A trama conformada pela interação e competição entre interesses públicos e privados aumenta bastante a complexidade da formulação de políticas para o desenvolvimento e a incorporação de inovação nos sis­temas de saúde. A escolha, a adesão e a disseminação de determinadas trajetórias tecno­lógicas condicionam a estrutura de redes de atenção, tornando a análise política imprescindível para compreender as contradições deste campo. Em um país grande e desigual como o Brasil, com um sistema de saúde universal, importa saber não apenas como serão produzidas e absorvidas as inovações, mas também como reverter as iniquidades no uso das tecnologias já incorporadas. Da mesma forma, é importante levar em consideração a necessidade de adequar as tecnologias às possíveis sinergias com os processos de atenção à saúde vigentes, às distâncias, ao pequeno porte de muitas das unidades públicas de saúde e às condições heterogêneas de vinculação a grandes centros assistenciais e de ensino e pesquisa.

A tendência, no cenário atual, é a intensificação da exclusão. Em outras palavras, mantendo-se a falta de prioridade para o setor Saúde, a escassez de investimentos, o aumento da demanda e a adoção de trajetórias de inovação que favorecem a marginalização social, não há como ser otimista. Em um cenário político diferente, com a retomada do investimento e a busca por trajetórias de inovação socialmente orientadas, o conhecimento poderia trabalhar pela democratização do acesso e pelo fortalecimento de um processo civilizatório que integre a universalização da saúde.

Nesse contexto, quais as perspectivas para a dinâmica de inovação em saúde nas próximas décadas?

No Brasil, a conjuntura atual adversa é agravada pela baixa capacidade produtiva e inovativa na Saúde. Nos últimos 15 anos, o Governo Federal intensificou e articulou ações de fomento à capacidade produtiva da Saúde, ao mapear os gargalos produtivos, incrementar o fluxo de investimentos, articular iniciativas e atribuir protagonismo ao Ministério da Saúde na definição das prioridades de alocação de recursos, a partir do uso do poder de compra do Estado e da orientação da demanda, dentre outros fatores. O direcionamento era o de investir em uma trajetória tecnológica voltada às necessidades da população. Todas essas iniciativas lograram êxitos, ainda que uma análise definitiva para dimensionar adequadamente o processo de transformação produtiva requeira a realização de exames mais acurados, dado o caráter recente dessas políticas.

De toda forma, e apesar dos esforços mencionados, o cenário não é nada alvissareiro. A crise política e econômica que o Brasil tem enfrentado nos últimos dois anos teve dentre suas consequências a mudança de orientação das iniciativas do Governo Federal, cujas prioridades passaram a refletir ações de cortes orçamentários dos setores sociais, dos de pesquisa e desenvolvimento, além de uma tendência à terceirização e à privatização. Essas iniciativas apontam para um cenário de agravamento da cisão no sistema de saúde brasileiro, para uma série de retrocessos nos esforços de fortalecimento da base produtiva e, portanto, na orientação social da trajetória de inovação na Saúde, com efeitos perversos sobre o acesso da população ao sistema de saúde e às tecnologias disponíveis.

A que critérios a dinâmica brasileira de inovação em saúde deve atender para garantir o acesso universal da população às tecnologias e aos tratamentos disponíveis?

Há um grande problema, sobretudo político: o usuário não tem voz. A decisão sobre as inovações a serem incorporadas é tomada em um ambiente de assimetria de informação e poder. O desequilíbrio de forças é muito grande. O Brasil tem um desafio que não parece possível de ser atendido nem hoje, nem nos próximos vinte anos. Temos uma janela temporal muito reduzida para viabilizar as transformações necessárias para responder à transição demográfica, com a suficiência de recursos e o aumento da capacidade produtiva, de modo que as inovações sociais se tornem parte integrante e imprescindível do sistema público de saúde. Garantir o acesso universal da população ao sistema de saúde e às novas tecnologias disponíveis não será possível sem democratizar os processos inerentes à dinâmica de inovação na Saúde. Isso envolve encontrar formas de favorecer e privilegiar valores e grupos marginalizados, entender as condições em que se estabelecem os processos de escolha das trajetórias tecnológicas e os limites da capacidade produtiva nacional.

Essa abordagem deve ser uma prioridade, para que seja possível orientar socialmente a produção e a inovação em saúde e empoderar os usuários de modo que, senão todos, ao menos uma gama mais vasta de interesses seja contemplada por uma agenda de pesquisa – e não somente aqueles que reproduzem o status quo. A despeito da conjuntura atual, em que observamos a subjugação dos propósitos da inovação aos ditames neoliberais, é ingênuo pensar em um futuro em que nos afastemos da inovação. Não creio que, no modelo contemporâneo de sociedade, possamos equacionar os desafios de sustentabilidade dos sistemas universais de saúde sem o alicerce da formulação de soluções criativas e de inovações postas a serviços de todos. O conhecimento deveria ser capaz de constituir instrumentos de transformação da sociedade, reconciliando liberdades mais amplas com formas substantivas de bem-estar material a serviço do conjunto da população. Na prática, porém, temos repetido o mantra do papel de mediador do Estado, como se o mesmo não fosse, também, uma arena de disputas, na qual raramente os interesses da Saúde Coletiva foram os vencedores.

Qual o papel da prospecção de futuro na dinâmica brasileira de inovação em saúde?

A rede Brasil Saúde Amanhã vem contribuindo sobremaneira ao mapear as mudanças, principais desafios, capitanear estudos de prospecção estratégica e tecnológica e retornar esses resultados para as macrodiretrizes e projetos do Estado brasileiro. Creio que com este cenário, bem mais adverso, a importância das iniciativas de prospecção se torna ainda mais proeminente. A releitura da conjuntura e dos determinantes estruturais que configuram uma situação de saúde preocupante no presente inspiram a formulação de cenários e a adoção de uma racionalidade pautada pela elaboração de alternativas futuras. Os desafios atuais, referidos à transição demográfica, à pressão de custos, ao aumento da incorporação tecnológica, à defesa de um sistema de saúde que seja democrático e sustentável, exigem uma renovação do entendimento dos condicionantes estruturais da relação entre os campos da Saúde, do Desenvolvimento e da Inovação.

Para tanto, esforços para a formação de conhecimentos sobre inovação em saúde precisam avançar bastante. Há uma lacuna que dificulta a compreensão da dinâmica de inovação (tecnológica ou não) nos serviços de saúde. Isso é grave pois limita a identificação de soluções possíveis diante dos desafios apresentados. Djellal e Gallouj têm alertado sobre a (falta de) legitimidade no retorno de resultados para a formulação de políticas de inovação, em especial nos países cujas economias sejam intensivas em conhecimento, assim como nos setores com estas características, como o da Saúde. É imprescindível alertar e propor medidas para que esses limites sejam superados. É fundamental que, no âmbito das iniciativas de prospecção, o conhecimento sobre inovação nos serviços de saúde se torne um vetor para a análise e a formulação de políticas para o fortalecimento da base produtiva e tecnológica da Saúde. Ao mesmo tempo em que cresce exponencialmente a importância das tecnologias em saúde, há um cenário de subordinação cada vez maior do conhecimento às demandas do mercado. Precisamos, agora mais do que nunca, de rotas alternativas para mitigar os efeitos da crise e identificar novos caminhos em busca da consolidação da democracia e da cidadania, conforme preconiza a Constituição Federal.

 

Bel Levy
Saúde Amanhã
06/02/2017