O debate sobre as inter-relações entre desenvolvimento e saúde existe, a rigor, desde que pensadores e formuladores de políticas econômicas e sociais e os médicos passaram a se perguntar sobre os efeitos das más condições de vida da população dos trabalhadores e dos pobres sobre sua saúde e a de suas famílias. Transcorridos mais de 170 anos, o debate continua, se aprofunda e se torna prática política institucional pelas mãos das Nações Unidas, que tiveram que responder aos pedidos de providências dos países pobres para a crítica situação econômico-social em que se encontravam a maioria dos países e populações da terra nos anos 80, fruto amargo da globalização neoliberal no mundo.
A resposta (tímida) da ONU foi estimular suas agências, programas e fundos (como a OMS, OIT, FAO, UNICEF, PNUD, entre outras) a realizarem conferências mundiais no transcorrer da década de 90 em torno dos objetos de reflexão e ação de cada uma delas, para preparar o mundo para o século 21; as conferências geraram informes e recomendações que, de alguma forma, foram aproveitados pelos países e, ao mesmo tempo, ajudaram a configurar a Declaração do Milênio, a Agenda do Milênio 2015 e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), resultantes da Cúpula do Milênio, realizada no ano 2000, por ocasião da 55ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque.
15 anos depois, a perspectiva mundial quanto à Agenda do Milênio foi de relativa frustração, pois uma grande parte dos ODM não foram alcançados, particularmente nos países mais pobres. Em 2012, na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), realizada 20 anos depois da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Eco 92), os Chefes de Estado e governo (ou altos representantes) de todos os Estados-membros da ONU lançaram como compromisso o documento O Futuro que Queremos, no qual convocam os países e a sociedade global para a construção da Agenda do Desenvolvimento 2030 e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Entre 2012 e 2015, um processo considerado por muitos como um dos mais participativos realizados no âmbito das Nações Unidas chegou à proposta de uma Agenda até 2030; o consenso quanto a 17 ODS, entre os quais um que se refere à Saúde (ODS 3); e uma agenda sobre o financiamento do desenvolvimento — a Agenda de Ação de Adis Abeba.
Como estão as coisas hoje?
Em que ponto nos encontramos, 18 meses após a aprovação da Resolução A70/1 da 70ª Assembleia Geral das Nações Unidas, intitulada “Transformando nosso Mundo: Agenda do Desenvolvimento para 2030 e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável”? Uma série de iniciativas globais positivas vêm sendo tomadas em diversas frentes, seja nas diferentes agências das Nações Unidas, seja em movimentos da sociedade civil, seja nos planos regionais ou nacionais, em diversos países. Entre elas, podemos citar: na agenda do clima, o Acordo de Paris (dezembro de 2015); a Estratégia Global para a Saúde das Mulheres, das Crianças e dos Adolescentes (2016-2030); na questão das moradias e seus entornos, a Habitat III (Quito, 2016), e muitas outras iniciativas complementares, em diversas áreas do desenvolvimento sustentável.
A Fiocruz, por meio do seu ex-presidente Paulo Gadelha, integra o 10 Members Group, nomeado pelo Secretário das Nações Unidas, para tratar da contribuição da ciência, tecnologia e inovação ao aperfeiçoamento e implementação da Agenda 2030 e dos ODS, e prepara um evento de alto nível para oferecer um conjunto de recomendações sobre C&T no processo do desenvolvimento sustentável.
Etapa também importante em execução, neste momento, é a definição dos indicadores para medir a execução das metas ODS. A Comissão de Estatística das Nações Unidas (UNStats), liderando um grupo inter-agencial (da ONU) e de especialistas (IAEG/SDG), definiu a lista de 232 indicadores para diversas metas dos ODS, visando ao monitoramento do progresso das mesmas, entre as quais 27 indicadores para a saúde.
Ao examiná-los, consideramos que são indicadores tradicionais, supostamente acessíveis na maioria dos países, como índices de mortalidade e morbidade. Lamentável que indicadores de saúde pública, capazes de captar o componente da vigilância sanitária e regulação, estejam ausentes, como a sugerir que esta dimensão não está efetivamente considerada no modelo de sistemas de saúde previstos no ODS Saúde. Não parece casual, porque é exatamente nesta função da saúde pública que se observa o embate entre os interesses privados da indústria e comércio com impacto potencial sobre a saúde e os interesses da população, teoricamente defendidos por um Estado democrático regulador.
O próximo passo importante para a Agenda 2030 e os ODS, na esfera global, será o Fórum Político de Alto Nível sobre Desenvolvimento Sustentável, que se realiza de 10 a 19 de julho de 2017, na sede da ONU, em Nova Iorque, no âmbito da reunião anual do Conselho Econômico e Social (ECOSOC) das Nações Unidas. O tema do evento será “erradicar a pobreza e promover a prosperidade num mundo em mudança”. O conjunto de metas a ser analisado em profundidade incluirá, além do Objetivo 17 — que será considerado todos os anos — também os objetivos 1 (pobreza), 2 (fome, segurança alimentar, nutrição e agricultura sustentável), 3 (vida saudável e bem-estar), 5 (gênero), 9 (infraestrutura, industrialização e inovação) e 14 (oceanos, mares e recursos marinhos). Os debates poderão ser acompanhados via internet.
Ameaças
Diversos eventos mundiais negativos trazem perspectivas sombrias para o futuro da Agenda 2030 e dos ODS. O meio de implementação fundamental da Agenda 2030 está contido no ODS 17, o qual reitera a “aliança para o desenvolvimento”, já presente no ODM 8, significando o financiamento solidário do desenvolvimento dos países mais pobres pelos países mais ricos com 0,75% do seu PIB de Ajuda Oficial para o Desenvolvimento (AOD), mas também com transferências tecnológicas em todas as áreas (agricultura, saúde, proteção ambiental etc.), fundamentais para a sustentabilidade global do desenvolvimento e também em cada país. A profunda crise econômica que explodiu entre 2007 e 2008 no circuito central do capitalismo global (Estados Unidos e países da União Europeia) tem sido invocada como a razão central para justificar a redução na AOD por parte dos países mais ricos.
De outo lado, a alçada ao poder, nos Estados Unidos, do ultraconservador Donald Trump, com suas agressivas políticas xenofóbicas e armamentistas, além do desprezo pela proteção ambiental em favor do crescimento econômico, mesmo que às custas da poluição total e do esgotamento dos recursos naturais do planeta, é um outro elemento fatal do quadro de desalento quanto às reais possibilidades do desenvolvimento sustentável que vem, pouco a pouco, tomando conta do planeta. A ameaça de Trump de retirar ou reduzir os repasses financeiros dos Estados Unidos à ONU, em geral e a cada uma de suas agências, a quem tocaria coordenar os esforços em prol do desenvolvimento sustentável e da concretização da Agenda 2030 e dos ODS, completa os ventos que vem do Norte. Nisto, o governo americano pode ser seguido pela onda conservadora que ameaça tomar conta da Europa, casos da França e o já concretizado Brexit.
Verdade que os movimentos sociais na nação americana têm dado sinais de importante vigor na resistência aos planos ultraconservadores de seu principal dirigente e algumas expectativas conservadoras não têm se confirmado na Europa, casos da Áustria e Holanda, que rejeitaram, pelo voto, a eleição de governos conservadores e descompromissados com o desenvolvimento sustentável e a solidariedade internacional.
Ações na América Latina e no Caribe
A mais importante iniciativa na área da saúde no desenvolvimento sustentável na região das Américas é a que está em curso no âmbito da Organização Pan-americana da Saúde (Opas): a elaboração da Agenda de Saúde Sustentável para as Américas 2018-2030, decidida pelos ministros da Saúde da região na 55ª Reunião do Conselho Diretor da Opas, realizada em Washington em setembro de 2016. Um grupo de trabalho de países, apoiado pelo Secretariado da Opas, está elaborando proposta preliminar desta Agenda, para ser apreciada na 29ª Conferência Sanitária Pan-americana, que acontecerá nos Estados Unidos, em setembro de 2017.
O documento está sendo construído com base na Agenda 2030 e ODS das Nações Unidas, na experiência e avaliação da Agenda de Saúde para as Américas 2008-2017 e no Plano Estratégico da Opas 2014-2019. Seu produto principal será um documento de política sobre a implementação da Agenda e dos ODS na região, particularmente quanto aos compromissos firmados pelo ODS 3 Saúde, indicando responsabilidades dos Estados-membro e do secretariado da organização, e compreendendo a coordenação interinstitucional, a cooperação e as alianças entre os países, assim como a coordenação intersetorial dentro dos mesmos.
Um estudo sobre os think-tanks e instituições acadêmicas da região envolvidos com a produção de conhecimento, a formação de recursos e a cooperação técnica para a implementação da Agenda 2030 e dos ODS nos países, está sendo desenvolvido pelo Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz), na qualidade de hub para a América Latina do projeto Think SDG, iniciativa global que inclui o Centro Internacional para o Desenvolvimento da Pesquisa (IDRC), do Canadá, o Instituto de Graduação de Genebra, por meio do seu Centro de Saúde Global, e parceiros na região, como a Aliança Latino-americana de Saúde Global (ALASAG) e as redes de Institutos Nacionais (RINSP) e de Escolas de Saúde Pública (RESP) da Unasul Saúde.
Ao lado da Unasul, outras estruturas de integração regional da América Latina e do Caribe, como a Comunidade Andina, o Mercosul, o Conselho de Ministros da Saúde da América Central e da República Dominicana (Comisca) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) ainda preparam posicionamento para, em conjunto, abordar a implementação da Agenda e dos ODS nas respectivas sub-regiões.
Já a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) teve o documento Horizontes 2030 todo voltado para a Agenda e os ODS, aprovado pelos Estados-membros, representados por seus Ministros do Planejamento, em reunião realizada na Cidade do México, em abril de 2016. Segundo a Cepal, numa perspectiva estruturalista de desenvolvimento, suas propostas centram-se em mudanças estruturais progressivas que aumentem a incorporação de conhecimentos na produção, garantam a inclusão social e combatam os efeitos negativos das mudanças climáticas, num impulso em direção à igualdade e à sustentabilidade ambiental.
Perspectivas no Brasil
O Governo Federal instituiu a Comissão Nacional sobre Desenvolvimento Sustentável por meio do Decreto 8.892, de 27 de outubro de 2016 (
https://goo.gl/U5Mv4k). A indicação dos integrantes da sociedade civil ainda está em curso, cabendo uma mobilização dos movimentos sociais para ocupar este espaço político que pode ser dinamizado para dar ao desenvolvimento sustentável brasileiro uma cara de inclusão, equidade e justiça social.
Contudo, não é isto que se delineia para o futuro, diante do conjunto de emendas constitucionais apresentadas pelo Executivo, nas áreas de previdência, trabalho e outros direitos, que se encontram ameaçados pelo teor das propostas. A nosso ver, tais emendas vão na contramão do compromisso formal do Brasil com a Agenda 2030 e os ODS, não só por seus efeitos imediatos, que já se fazem sentir, mas pelas perspectivas em longo prazo, que retiram dos brasileiros direitos conquistados e muito coerentes com os enunciados na agenda.
O Plano Plurianual 2016-2019 — previsto na Lei 13.249, de 2015 (
https://goo.gl/uibIuh) —, apresentado ao Congresso Nacional, deverá ser reformulado, e, se guardar coerência com as emendas constitucionais em debate no parlamento, será motivo de grandes preocupações, pelas orientações econômico-sociais que imprimirá ao desenvolvimento no país.
Um longo trabalho político precisa ser feito junto ao Executivo, Legislativo e, mesmo no Judiciário, demonstrando que as desigualdades que estão se ampliando — e mais ainda se ampliarão com as emendas constitucionais em exame ou já aprovados no Legislativo — poderão deixar o Brasil fora de um processo saudável, equitativo e inclusivo. Este é um papel fundamental para os movimentos sociais e das instituições acadêmicas. De outro lado, as governanças nacionais e global precisam ser transformadas com vistas à implementação de planos de desenvolvimento coerentes com a equidade e a inclusão social, em um contexto de desenvolvimento econômico que preserve o meio ambiente e os recursos naturais ameaçados.
METAS (Até 2030)
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Reduzir a taxa mundial de mortalidade materna a menos de 70 por 100 mil nascidos vivos;
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Acabar com as mortes evitáveis de recém-nascidos e de crianças menores de cinco anos;
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Acabar com as epidemias de aids, tuberculose, malária e de doenças tropicais negligenciadas; combater as hepatites, as enfermidades transmitidas pela água e outras enfermidades transmissíveis
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Reduzir em um terço a mortalidade prematura por doenças não transmissíveis mediante prevenção e tratamento, e promover a saúde mental e o bem-estar;
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Fortalecer a prevenção e o tratamento do abuso de substâncias aditivas, incluindo o uso indevido de estupefacientes e o consumo nocivo de álcool;
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Reduzir à metade o número de mortes e lesões causadas por acidentes de tráfego (até 2020);
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Garantir acesso universal a serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluídos o planejamento familiar, informação e educação;
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Alcançar a cobertura universal de saúde, em particular a proteção contra riscos financeiros, acesso a serviços de saúde essenciais de qualidade, e o acesso a medicamentos e vacinas seguros, eficazes, alcançáveis e de qualidade para todos;
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Reduzir substancialmente o número de mortes e enfermidades produzidas por produtos químicos perigosos e a contaminação do ar, água e solo.
Fonte: Revista Radis