Em queda em quase todo o mundo, a taxa de novas infecções pelo vírus da Aids teve aceleração de 11% entre 2005 e 2013 no Brasil, revela o relatório “The Gap Report”, do Programa Conjunto das Nações Unidas HIV/Aids (Unaids), divulgado ontem. No planeta — onde o total de pessoas infectadas está estável em cerca de 35 milhões —, houve diminuição de 28% no número de novos casos. O resultado é puxado pelo recuo em regiões críticas para a epidemia, como a África Subsaariana, onde a redução nas novas infecções chegou a 33%. Fora do continente africano, alertam membros da agência da ONU, a expansão do HIV ocorre impulsionada pela contaminação de indivíduos de grupos vulneráveis, sobretudo homens que fazem sexo com homens. O fenômeno inclui o Brasil.
O anúncio acontece quatro dias depois da Organização Mundial de Saúde afirmar que há um crescimento alarmante da doença em grupos de risco e recomendar o uso de antirretrovirais para todos os homens que fazem sexo com outros homens.
Para Luiz Loures, diretor-executivo adjunto do Unaids, há uma “nova onda” da doença:
— Nos países onde há avanço da epidemia, o crescimento é sobretudo entre os homens gays. Principalmente os jovens — afirma Loures. — É como se estivéssemos voltando no tempo, à epidemia que vimos nos anos 1980. Há uma contradição, já que esses grupos foram justamente os que começaram a mobilização em torno do combate.
CAI USO DE PRESERVATIVOS
Entre os motivos relacionados a esse crescimento, ele lista a discriminação, que dificulta o acesso a serviços médicos, e a redução no uso de preservativos, estimulada pela falsa ilusão de que a epidemia acabou. Loures também cita uma mudança de agenda do movimento LGBT, que teria se voltado mais às questões de direitos civis, afastando parcialmente a doença de sua pauta.
— O que me preocupa é chegar ao fim da epidemia deixando muita gente para trás, como os gays. A doença tem de acabar para todos — afirma Loures, para quem a recomendação de que todos os homens que fazem sexo com homens usem antirretrovirais como forma de prevenção, feita pela Organização Mundial de Saúde semana passada, é uma “arma a mais”, mas não resolve o problema.
Georgiana Braga-Orillard, diretora do Unaids no Brasil, chama atenção para a necessidade de renovar as campanhas de prevenção no país.
— O Brasil se enquadra entre os países que deram uma resposta cedo à doença A maioria deles teve uma queda no início da epidemia e, agora, um aumento. Há uma certa fadiga das pessoas vendo as mesmas mensagens sobre o tema há anos — avalia. — Os jovens não estão usando preservativos, principalmente os homens que fazem sexo com homens.
A expansão da taxa de novos casos não é exclusividade brasileira. O Chile teve um aumento ainda mais expressivo, de 31%. Já na América Latina como um todo, houve leve queda, de 3%. Em países como Filipinas e Paquistão, o avanço da doença chegou aos três dígitos, de 425% e 338%, respectivamente.
Com 200 milhões de habitantes, o Brasil concentrava, em 2013, 2% dos casos de HIV no mundo e 47% das ocorrências na América Latina. Ainda de acordo com o estudo do Unaids, o país registrou aumento de 7% nos casos de morte relacionadas à Aids entre 2005 e 2013. No entanto, mais de 40% da população infectada no país têm acesso a antirretrovirais.
Em nota, o Ministério da Saúde reconheceu a importância de atenção à prevenção, tratamento e diagnóstico dos casos. E sustentou que “a taxa de detecção de Aids no país está estabilizada em 20 casos a cada 100 mil habitantes, o que representa cerca de 39 mil casos novos da doença ao ano”. Atualmente, segundo o ministério, estima-se que 750 mil pessoas vivam com HIV e Aids no país, sendo que 123 mil desconhecem essa sua situação. O órgão lista ações desenvolvidas, como a alta de 40% no número de pessoas iniciando o tratamento com antirretrovirais no primeiro semestre deste ano, em comparação com o mesmo período de 2013. Segundo o texto, entre 2005 e 2013, o Brasil mais que dobrou o total de pessoas em tratamento: de 165 mil para 353 mil.
— Recebemos o documento com muita tranquilidade, os dados não nos chocaram. Eles são consistentes com os boletins do ministério — diz Fábio Mesquita, diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde. — Os dados do Brasil são proporcionais ao crescimento da população.
Membros de ONGs voltadas ao combate à doença, no entanto, criticam as políticas públicas conduzidas pelo ministério. Para Salvador Correa, da equipe de coordenação da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (Abia), o governo não tem conversado com a sociedade civil:
— Há uma necessidade de repolitizar o enfrentamento à epidemia. Tivemos alguns avanços, sobretudo no campo biomédico, mas isso acaba esbarrando em uma falta do diálogo com a sociedade. O governo tem lançado novas formas de combate, mas é necessário que o indivíduo opine sobre essas estratégias, que incluem de distribuição de camisinhas ao tipo de tratamento.
QUESTÃO RELIGIOSA ATRAPALHARIA
Jaime Marcelo Pereira, representante da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com Aids/HIV, aponta as assimetrias regionais das políticas públicas:
— Atualmente, a atenção é desigual nas regiões. Os municípios e os estados têm percepções diferentes sobre a política de saúde para Aids. Muitos prefeitos, por exemplo, não investem por questões pessoais ou religiosas.
O relatório divulgado ontem pelo Unaids descreve perspectivas para frear a doença. Segundo a agência, o controle da epidemia poderá ocorrer até 2030. Assim, o mundo evitaria 18 milhões de novas infecções pelo HIV e 11,2 milhões de mortes relacionadas à Aids, segundo a agência. Desde o primeiro boom no número de casos, na década de 1980, 49 milhões dos 78 milhões de infectados morreram. O relatório informa que US$ 19,1 bilhões foram investidos globalmente para combater a doença em 2013 e estima que serão necessários entre US$ 22 bilhões e US$ 24 bilhões para 2015.
O Globo, 16/07/2014