“Todas as economias, quando crescem, aumentam o gasto público”. A análise é do o professor Carlos Pinkusfeld Bastos, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que participou do seminário Desenvolvimento, Espaço Fiscal e Financiamento Setorial, em dezembro de 2016, ao lado dos também economistas Daniel Conceição, da UFRJ, Sulamis Dain, das Faculdades de Campinas (FACAMP), e Pedro Rossi, da Universidade de Campinas (Unicamp). O encontro foi promovido pela rede Brasil Saúde Amanhã e pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE), que transcreveu a palestra de Bastos.
Leia a transcrição da palestra de Carlos Pinkusfeld Bastos:
“Todas as economias, quando crescem, aumentam o gasto público. Trata-se da Lei de Wagner, o economista alemão Adolph Wagner (1835-1917). Quando se aumenta o PIB, cresce o gasto, porque aumentam os serviços oferecidos pelo setor público – Saúde, Educação, Previdência Social. Assim é a história da Humanidade. Se o Brasil, em 20 anos, diminuir 10% do gasto público sobre o PIB, haverá um crescimento de 2,3% – que é baixíssimo –, associado ao congelamento do gasto. Pode ocorrer uma mudança na composição dos gastos estaduais e federais. Como o gasto estadual não está preso pela PEC 55, e como vai aumentar a receita fiscal no estado, o estado vai gastar mais. É algo semelhante à República Velha: ganho primário exportador, com o estado mais forte que a federação.
O Brasil nunca foi um país muito original. Sempre acompanhou o que vinha acontecendo no mundo. No início do século XX, era um dos países mais pobres da América Latina – muito mais que Argentina, Uruguai ou Chile, por exemplo. Diferentemente do que ocorreu nesses países, no Brasil, o declínio de duas atividades econômicas deixou boa parte do país com baixa produtividade: a mineração, no estado de Minas Gerais, e a extração da cana-de-açúcar, no Nordeste. O Brasil era um país essencialmente primário exportador. Havia o novo complexo do café, que garantia uma taxa de crescimento alta, e esses dois grandes blocos que sofriam com a baixa produtividade. Mas o país era mais pobre devido à sua extensa população, e não pelo fato de nosso produto primário exportador ser pior que o dos outros. Essa discrepância entre a taxa de crescimento e renda per capita não foi tão visível na Argentina, por exemplo.
Até aí, nossa taxa de crescimento era de 4%, mais ou menos. Quando o mundo mudou em 1929, experimentando coisas exóticas – que o Brasil também experimentou –, houve um pequeno crescimento, de mais de 5%, indicando uma fase melhor, apesar das guerras. Depois da Segunda Guerra Mundial, assim como o resto do mundo, nos tornamos desenvolvimentistas. O principal objetivo da política econômica era alcançar taxas de crescimento elevadas e uma acumulação de capital federal. O Brasil foi um dos mais bem sucedidos países no período desenvolvimentista – sem resolver problemas estruturais, mantendo a desigualdade. Assim, chegamos à taxa de 7%.
Quando o mundo deixou de ser desenvolvimentista, na década de 1980, a taxa caiu brutalmente a 2%, o que, curiosamente, ocorreu no período da crise daquela década e do avanço neoliberal. Apesar de ter havido estabilização da economia e de a taxa de inflação ter caído brutalmente, não houve mudança significativa no crescimento. O nível de crescimento na década de 80 foi baixo. No período de 2004 a 2011, tivemos um soluço de crescimento, a economia deu um salto, chegando a uns 4,5%. Pela primeira vez na História, crescimento aliado a distribuição de renda e melhores serviços públicos.
Em 2011 começou a se desenhar a crise atual. Temos, hoje, a menor taxa de crescimento e o pior desempenho da História do Brasil moderno. O Brasil teve três grandes crises: a do período de 1929, a da dívida de 1980 e a do Plano Collor, em 1990. As duas maiores – a de 1929 e a de 1980 – foram crises de balanço de pagamento. Nesse caso, havia muito pouco a ser feito. O país tornara-se vítima de uma redução externa que limita o crescimento, tenta sair, como saiu com Getúlio Vargas, mas não consegue. A crise do Plano Collor é autoinfringida, assim como a atual. Isso é o mais dramático.
É muito difícil que a economia cresça em 2017. O PIB é calculado como uma média dos quatro trimestres. O valor do último PIB é levado para o ano seguinte, entrando nessa média. Por causa desse efeito arrasto, a economia precisará crescer muito para sair do zero, onde provavelmente permanecerá. No zero, há queda de quase 7% do PIB.
Como chegamos a isso?
Escrevi um artigo sobre as ilusões de se tentar repetir o que foi feito por Lula. Hoje, as coisas estão acontecendo de modo completamente diferente. No governo Lula, a taxa de crescimento do consumo estava rodando em torno dos 5%. Em 2011, no início do governo Dilma, há uma queda proposital, em 2013, uma tentativa de aumento e uma queda definitiva. A economia, antes de 2015, estava despencando.
Quando a economia sobe, o investimento sobe. Quando a economia cai, o investimento cai. O investimento estava indo bem até o consumo desacelerar. Observem que, quando o consumo cai, o investimento diminui drasticamente: o empresário iria investir para quê, para quem comprar? Dessa forma, o investimento reage adequadamente, corretamente.
Em 2002, a economia estava crescendo – embora não muito. Quando Lula aplicou o pacote recessivo, arrastou a economia para baixo. A economia cresceu significativamente em 2002 e 2003, e ele a arrastou para 1,5%. Mesmo assim, tudo ia bem porque Lula podia contar com o superciclo das commodities para reforçar a economia. O momento atual é diferente. Com uma economia já em queda, Joaquim Levy, nomeado ministro da Fazenda por Dilma, provocou essa tempestade perfeita, atingindo todos os componentes de demanda: aumentou a inflação, restringiu os gastos públicos, provocou a diminuição do salário real. E, infelizmente, na economia, quando as coisas começam a dar errado, só pioram. Quando se começa a diminuir a demanda, diminui-se o investimento, mais gente é demitida, menos crédito é tomado e o salário real cai ainda mais, porque a inflação acelera.
Nesse sentido, existem duas concepções analíticas. Para os marginalistas, o crescimento é restrito pela oferta escassa de fatores. A taxa de crescimento é dada pela oferta de fatores: se está crescendo pouco é porque há pouca oferta. Nesse caso, a oferta de poupança maior promove crescimento maior. Por isso, falam que “falta poupança”. O crescimento é também inviabilizado por não haver dólar, sendo necessário segurar a economia.
Existe ainda uma restrição política – e essa é a mais grave. O Brasil tem 373 bilhões de dólares de reservas internacionais. Por que, com tanto dólar, inventamos uma crise tão grave, a pior da História do Brasil? Quando você cresce muito, os trabalhadores ficam animados, querem mais coisas. E torna-se necessário colocar um freio. Essa é a restrição que eu chamo de política. Estamos totalmente restritos no lado da demanda. Não há nada, em termos de demanda, que aponte para um crescimento.
Existem componentes autônomos e indutores na economia. Por exemplo, se você aumenta a demanda, contrata mais gente, os trabalhadores consomem mais, tem-se um consumo induzido maior. Se você aumenta a demanda, o investimento privado também cresce, porque há aumento de oferta de capacidade produtiva, capaz de compatibilizar essa oferta com uma demanda maior.
Já os componentes autônomos crescem à frente. O gasto público, por exemplo, é autônomo, dependendo do governo; as exportações são autônomas, dependendo do resto mundo; a construção residencial é fortemente influenciada pelo crédito. Esses são os componentes que temos que olhar, se queremos fazer uma projeção. Precisamos analisar o comportamento desses componentes para verificar se algum deles aponta para uma taxa maior de crescimento na economia.
O setor externo é um dos componentes que puxam a demanda e que podem impulsionar o crescimento no futuro. Há países que são puxados pela exportação. Não é caso do Brasil. Os ciclos de crescimento do Brasil não são explicados pela exportação, como ocorre também com os Estados Unidos, por exemplo, e ao contrário do que ocorre na Coreia, que tem ciclos claramente impulsionados pela exportação.
Ainda que o Brasil seja puxado pela demanda, existe essa restrição externa. A crise de 1980 foi gerada pela falta de financiamento externo. A crise de 1929, foi também, entre outros fatores, uma crise de financiamento – o mercado financeiro internacional travou. Se há falta de financiamento, você não pode aumentar sua demanda; se você não tem crédito, não pode comprar um bem de consumo durável.
Um estudo sobre decomposição de crescimento mostra que, considerando cada componente de crescimento da demanda para ver o quanto impactam no agregado crescimento do PIB, observamos que, em 2003, o consumo despencou por causa do ajuste feito no governo Lula. O consumo do governo subiu um pouco, junto com a formação de capital, mas foram as exportações que seguraram a economia. O que promoveu um crescimento pífio, mas ainda assim positivo, do PIB? As exportações. Em 2004, quando o consumo se recupera, observem como o crescimento da economia muda, indo para 5,76%. E o crescimento das exportações não muda muito. O Brasil precisa do crescimento do consumo para apresentar uma taxa de crescimento elevada.
O problema atual é que o mundo não virá em nossa defesa. Foi a Ásia que possibilitou nosso super ciclo das commodities. No entanto, hoje isso não é mais possível. Observem que as exportações do Brasil seguem a exportações do mundo. Qual o fator mais importante para a exportação? O crescimento do resto do mundo. O Brasil se distanciou da tendência mundial. Não somente o mundo estagnou, como nós pioramos em relação ao mundo. O preço das commodities caiu drasticamente e nós começamos a agregar. Quando observamos os setores industriais, vemos que o mundo está crescendo e nós estamos caindo.
Nós não tivemos problema de balanço de pagamentos. Apesar de nosso déficit nas ações correntes terem começando a entrar numa faixa extremamente negativa, entrou dinheiro no país. Mais do que precisávamos. Acumulamos 373 bilhões de dólares, o que não é pouco. Temos uma crise doméstica sem ter crise de balanço de pagamento. Além disso, aparentemente, a restrição externa, por esse lado, não foi dada.
Tudo o que eu apresentei foi relativo a um cenário de estagnação. Não consegui apresentar componentes que consigam impulsionar a economia no mercado. Dessa forma, nos resta o gasto do governo. No entanto, deixamos a economia e seus outros componentes caírem tanto, que o gasto do governo terá que ser muito grande para reerguê-la. A capacidade de o governo tirar sozinho o país da crise não é tão grande, porque a participação dele não é tão grande no total do produto. Teríamos que ter um crescimento enorme para começar a sair da crise.
É pouco provável que o crescimento do gasto público seja acompanhado pelo crescimento da demanda e que se diminua o déficit. É mais provável que o déficit primário vá aumentar, o que não tem nada de anormal. É assim que o mundo funciona. É normal que haja déficit público – se não houvesse não haveria dívida, que é a contrapartida do déficit. A prova de que o mundo tem déficit é a existência da dívida pública na história da Humanidade e que nunca vai ser eliminada, por que ela faz parte do capitalismo. Sem ela, o capitalismo não funciona.
Se os juros forem reduzidos, no curto prazo, será necessário aumentar o déficit e a dívida. Essa é a primeira solução se quisermos começar a crescer – e, ainda assim, cresceríamos pouco.
Outra alternativa é a solução a Trygne Magnus Haavelmo, economista norueguês (1911-1999) que tem um texto muito simples chamado “Teorema do Orçamento Equilibrado”. Segundo o texto, é possível aumentar a carga tributária, aumentar o gasto e, ainda assim, ter um crescimento econômico, porque se tributar alguém que tem uma alta propensão a gastar e usar esse dinheiro, há aumento na arrecadação e, ao mesmo tempo, um aumento do gasto, que promove o crescimento econômico.
Quem tem alta propensão a gastar? Rico. Ou melhor, quem tem alta propensão a poupar? Rico. Cá entre nós, a carga tributária líquida dos ricos no Brasil deve ser negativa, porque eles pagam muito pouco imposto e recebem muita transferência de juros. Tributar os ricos e usar essa tributação para aumentar os gastos públicos é a única chance de começarmos a sair da crise sem haver o estouro da dívida pública ou crescimento muito grande do déficit primário, além de, preferencialmente, abaixar a taxa de juros.
Minha fala é pessimista porque isso não acontecerá. O governo não vai aumentar o imposto do rico no Brasil. Com esse Congresso aí, esquece. Mas não é tecnicamente impossível. É uma questão mais política do que técnica. Tecnicamente dá para fazer.
Fonte: CEE/Fiocruz