“É preciso construir a autonomia estratégica em saúde”

Domingo, 15 de março de 2020, o mundo enfrenta uma pandemia global do novo coronavírus, a COVID-19, e o jornal alemão Welt am Sonntag publica uma reportagem que repercutirá em todos os noticiários do mundo com uma denúncia assustadora: o presidente estadunidense teria oferecido US$ 1 bilhão para uma empresa alemã que vem desenvolvendo uma potencial vacina contra o vírus de forma a garantir que a mesma seja exclusiva dos Estados Unidos.

Enquanto Donald Trump se transformava na caricatura de vilão de desenho animado, o mundo descobria a importância da autonomia estratégica em saúde, tanto pelas intenções vilanescas de um líder nacional, como também pela forte reação do governo e da sociedade alemã.

Em 2015, a Fundação Oswaldo Cruz, por meio da iniciativa Saúde Amanhã, publicou um estudo (Complexo Econômico-Industrial de Saúde, Segurança e Autonomia Estratégica: para pensar a inserção do Brasil frente ao mundo) que mostra como poderíamos estar mais preparados para uma epidemia tão grave como a que vivemos.

São lições para nossos formuladores de políticas públicas, pois permitem respostas tanto a crises como a vigente, como para a pavimentação de uma verdadeira estratégia de desenvolvimento autônomo do Brasil.

Embora sido tentado de maneira errática em alguns governos recentes, a partir de 2015 com a introdução do grande pacto pela austeridade, decidiram nossos governantes com entusiasmado incentivo da maioria da classe empresarial que qualquer atuação do Estado era nociva e que o país tampouco precisaria construir uma base tecnológica e industrial forte.

Houve um entendimento de que a produção de commodities, industriais e agrícolas, eram suficientes para alavancar o desenvolvimento brasileiro e que podíamos aprofundar sem traumas o processo de desindustrialização brasileira.

No nosso estudo, alertamos sobre o incremento da vulnerabilidade do Brasil por conta do crescente valor de suas importações na área de saúde proveniente das mudanças demográficas, de padrões tecnológicos de medicamentos (maior demanda por biotecnológicos) e de equipamentos. Alertamos que uma política neoliberal tenderia a agravar ainda mais esse quadro.

O resultado foi ainda mais desastroso. O projeto austero e neoliberal dominante no Brasil desde 2016 levou a indústria farmacêutica brasileira a inexistir na prática.

Temos boas montadoras que produzem medicamentos a partir de matéria prima (Insumos Farmacêuticos Ativos – IFAs) importada em quase sua totalidade.

Alguém poderia imaginar que, porque nosso caminho eram os serviços, poderia nos faltar máscaras de algodão ou papel? Máscaras N95 para proteção dos contatos diretos?

Segurança Sanitária quer dizer que não podemos deixar o país refém de importações, muito menos dos mais fortes.

Ainda que muito se discuta sobre o ingresso do país na quarta revolução industrial, os passos para trás foram de tal ordem que temos dificuldades em responder aos desafios da primeira revolução industrial.

Não se produz no país máscaras de algodão em grande escala, o que se dirá de antibacterianos ou antivirais.

O nosso entendimento, expresso de forma mais ampla no estudo feito para a Fiocruz, é de que a segurança de saúde deve ser tratada a partir de uma perspectiva nacional, como um tema de segurança e desenvolvimento nacional.

Parece-nos, portanto, fundamental a garantia do acesso a recursos, financiamento e mercados na área de saúde, necessários à sustentação de níveis aceitáveis de bem-estar social e poder estatal.

Nesse sentido, a segurança de saúde deveria ser compreendida por nossos formuladores de política pública como a capacidade do Estado Brasileiro de produzir dentro do país os bens e serviços de saúde que atendessem às necessidades de sua população, de forma a universalizar o acesso não apenas em tempos de guerra ou paz, mas em situações de crises como uma pandemia global.

Logo, faz-se necessário o domínio de tecnologias, a disponibilidade de capacidade financeira e produtiva, e a possibilidade de mobilização de recursos em tempo hábil.

O país tampouco poderia depender de fontes restritas de importações, de forma que sua diversificação seria imprescindível, assim como a das rotas comerciais de abastecimento e fontes de financiamento.

É preciso um projeto nacional para a construção da autonomia estratégica em saúde.

Não se alcança este objetivo sem capacidade e coesão política interna para articular diferentes setores, principalmente com a possibilidade de constrangimentos e ações externas.

Ademais, a segurança sanitária possui interconexões com outros temas de segurança, como a segurança econômica, a segurança política, a segurança militar e a segurança alimentar.

A construção de um Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS) tem, neste contexto, um papel estratégico tanto no âmbito socioeconômico quanto político-estratégico.

Um projeto nacional que pense a autonomia estratégica e a segurança nacional deveria ter como um dos seus pilares um CEIS capaz de responder a todo tipo de crise, não apenas sanitária.

O desenvolvimento do CEIS, ao reunir um conjunto de tecnologias portadoras de futuro, pode não somente se conectar ao desenvolvimento da indústria nacional em geral, mas também possui estreita interligação com a base industrial de defesa.

Seria então o CEIS um vetor fundamental de crescimento econômico e teria papel decisivo na estabilidade interna e na segurança interna e externa do país.

Em situações como a atual crise da pandemia da COVID-19, um CEIS estruturado poderia diminuir a vulnerabilidade econômica e política do país.

Afinal, garantir acesso igualitário à saúde tanto aos mais ricos quanto aos mais pobres, em um país com as desigualdades do Brasil, é essencial para manter a estabilidade e coesão política e social.

Por outro lado, a ausência de acesso à saúde em contextos normais e mais ainda de epidemia podem impactar no funcionamento da economia e do Estado, e levar a instabilidades políticas internas.

Um ecossistema industrial na área da saúde teria a capacidade de responder aos principais desafios que se apresentam para os próximos meses.

Em uma conjuntura onde quase todos os fluxos internacionais têm sido interrompidos, poderíamos estar numa situação menos vulnerável a pressões internacionais e aos interesses (poder de barganha) de potências externas.

Essa orientação estratégica deve ser orientadora de políticas econômicas mobilizadoras de recursos e da priorização de investimentos públicos, que impulsionariam a demanda e o investimento do setor privado por toda a economia, em detrimento dos ditames de políticas macroeconômicas de “bom comportamento” que buscam agradar o “mercado” e desaceleram nossa economia, drenando recursos para o setor financeiro.

Além da pandemia, a economia mundial envia sinais de uma crise pelo menos tão severa quanto a de 2008.

O cenário geopolítico internacional está mais próximo do cada um por si do que da cooperação coordenada.

A combinação das crises sanitária e econômica, num cenário em que muitas divergências supranacionais podem acabar resolvidas na guerra, coloca o Brasil refém das escolhas de outras potências na ausência de um CEIS desenvolvido e estruturado.

Esta reflexão depende fundamentalmente de como se pensa o Brasil frente ao mundo.

Quais são os pensamentos que devem fundamentar uma estratégia nacional e soberana que não nos coloque refém de outros países.

Sem dúvida, isso passa por pensar nossa inserção a partir de nossos interesses, de forma pragmática, em um mundo cada vez mais multipolar.

No entanto, isso não corresponde à escolha do atual governo de completa subordinação a qualquer país, menos ainda aos interesses da maior potência global e do nosso hemisfério, os Estados Unidos, que sempre teve como projeto manter sua supremacia e limitar a ascensão do Brasil.

Ainda, o maior mercado (destino) para os bens industriais brasileiros, e que podem garantir a escala necessária para o desenvolvimento do CEIS, está na América do Sul.

Nossos maiores parceiros potenciais em termos de crescimento de mercado, universalização do acesso à saúde, desenvolvimento de tecnologias flexibilizando o regime de patentes do TRIPS, estão nos países do BRICS (Rússia, China e Índia).

Parece que no fim, deveríamos voltar a Quijano que nos lembra que “a colonialidade do poder ainda exerce seu domínio, na maior parte da América Latina, contra a democracia, a cidadania, a nação e o Estado Nação moderno”.

Raphael Padula é coordenador e professor da Pós-Graduação em Economia Política Internacional (PEPI) do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Gustavo Souto de Noronha é economista e professor da Universidade Estácio de Sá (UNESA).

José Carvalho de Noronha é coordenador Executivo da iniciativa de Prospecção Estratégica do Sistema de Saúde Brasileiro “Brasil Saúde Amanhã” da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ).

 

Fonte: Viomundo