“O direito à vida é o que melhor ilustra o desafio do envelhecimento: viver a vida, a vida com saúde”. A afirmação é da socióloga Dalia Romero, pesquisadora em Saúde Pública do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). Nesta entrevista, ela explora o tema do próximo seminário da iniciativa Brasil Saúde Amanhã, em abril, e do novo livro organizado pelo projeto, a ser lançado este ano: longevidade e políticas de saúde. Dalia apresenta um novo paradigma de envelhecimento saudável e aponta o Sistema Único de Saúde (SUS), a Atenção Primária à Saúde (APS) e a Estratégia Saúde da Família (ESF) como eixos centrais para o cuidado à saúde dos idosos. “Não é possível garantir envelhecimento saudável sem estado de bem-estar, sem políticas de proteção social, sem um sistema de saúde universal, público, gratuito e de qualidade. O fortalecimento do SUS e da Atenção Básica é o caminho para o futuro que desejamos”, defende.
O que mudou na forma como envelhecemos, no século 20 e agora no século 21?
O envelhecimento da população brasileira e a transição epidemiológica que o país atravessa chama atenção de pesquisadores em Saúde Pública há algum tempo. Mas, para além de seus efeitos na dimensão demográfica, é preciso olhar para o envelhecimento também como uma experiência individual. Mais do que isso, como um direito humano, associado ao direito à saúde, e que portanto deve ser garantido pelo Estado. No começo dessa mudança, ainda no século 20, os anos de vida que estávamos ganhando impactavam principalmente a sobrevivência infantil. Em todo o mundo, e também no Brasil, a melhoria das condições socioeconômicas, o avanço da ciência e as novas tecnologias de saúde, como as vacinas e as chamadas “tecnologias leves”, como o soro caseiro, resultaram em uma redução significativa da mortalidade infantil. Em um segundo momento, conseguimos diminuir também a mortalidade materna. em todo o mundo, a partir dos anos 1950, ampliamos o acesso a serviços de saúde. Tudo isso contribuiu para que, ao fim do século 20, a expectativa de vida aumentasse muito, embora esse indicador ainda seja bastante desigual.
Hoje, século 21, já estamos em outro lugar. Dizemos que é nos anos 20 que começamos a perceber as características do novo século. E o ano de 2020, que se tornou um ponto de inflexão na vida de todos nós, evidencia o grau de desafio deste novo período histórico: ganhar vida com qualidade. Tanto a mídia quanto a produção acadêmica começam a incorporar e a dar visibilidade a uma questão muito importante: para que serviram todas essas mudanças que vivemos ao longo do século 20? Para a gente ganhar anos de vida. Mas se não for uma vida com qualidade, qual é o sentido. Pela primeira vez na história da humanidade, quatro, cinco gerações estão convivendo juntas: o filho, o pai, o avô, o bisavô… É a primeira vez que conseguimos ter essa perspectiva e enxergar o futuro à nossa frente. E o que está acontecendo? Os jovens têm medo de envelhecer. Essa visão não pode ser apenas um posicionamento ideológico ou uma intenção das políticas públicas. Para ganhar vida com qualidade, envelhecer com qualidade, a ciência – e especificamente a epidemiologia e a demografia – precisa incorporar novos indicadores para monitorar as políticas públicas, incentivar o autocuidado e orientar a organização dos sistema de saúde, com foco no envelhecimento saudável.
Qual seria um novo paradigma de envelhecimento saudável no século 21?
Envelhecimento saudável é bem-viver. Uma questão crucial para tornar esse conceito realidade é a capacidade funcional, abordagem ainda muito crua no Brasil. A funcionalidade é a chave para se falar o que é saúde com qualidade de vida, pois quando há autonomia, há saúde. Quando geramos indicadores para avaliar a capacidade funcional, queremos saber qual é o grau de autonomia de uma pessoa em seu cotidiano: se consegue comer sozinha, se arrumar, sair de casa, ter uma série de atividades, uma vida ativa.
Para evitar a leitura do envelhecimento como tragédia inevitável, a Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs novos paradigmas e, no final da década de 1990, definiu o termo Envelhecimento Ativo. como o “processo de otimização das oportunidades de saúde, participação e segurança, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida que as pessoas ficam mais velhas”. Em 2020, criou o plano “A Década do Envelhecimento Saudável 2021-2030”, do qual o Brasil é signatário, como estratégia para melhorar a vida dos idosos, de suas famílias e comunidades. No livro que a iniciativa Brasil Saúde Amanhã lançará sobre longevidade, exploramos esse conceito para tratar dos principais aspectos sobre condições de saúde da população idosa brasileira desde a perspectiva da epidemiologia do envelhecimento.
Como as desigualdades sociais afetam a forma de se envelhecer?
Quando falamos em envelhecimento e desigualdades, precisamos enfocar a questão de gênero. Quem se ocupa de cuidar dos idosos da família, de um parente adoecido? São mulheres, em torno dos 50 anos, que assumem essa carga de cuidados. Muitas mulheres sofrem danos à saúde, envelhecem pior, porque dedicaram o seu tempo ao cuidado de outros. Quero colocar foco nesse aspecto, porque isso faz parte do pacote de envelhecimento saudável do país. Além disso, se é bem verdade que nós, mulheres, temos muitas desvantagens pelo acúmulo de problemas de saúde e cuidados em nossa experiência de vida, também é verdade que a população masculina sofre demais, tem menos ferramentas que as mulheres para envelhecer com saúde. Não é por acaso que a taxa de suicídio é seis vezes maior entre os homens. O Brasil tem poucos dados, mas sabemos que a expectativa das pessoas LGBT é muito baixa. Vivem, em média, até os 40 anos. E não morrem precocemente pela ocorrência de doenças, mas por agressão, violência, invisibilidade. Esse é um aspecto da desigualdade ao qual temos que prestar muita atenção.
No livro sobre longevidade que a iniciativa Brasil Saúde Amanhã lançará ainda este ano abordamos também a desigualdade no direito ao envelhecimento saudável pelo quesito raça/cor. Com dados do Sistema de Informações em Mortalidade (SIM) para 2019, mostramos que, ainda hoje, o direito a envelhecer é negado a determinados grupos raciais e étnicos no Brasil. A idade média à morte dos indígenas sequer alcança a faixa etária dos 50 anos. Eles vivem 28 anos menos do que os amarelos e 23 anos menos que os brancos. Negros, por sua vez, morreram, em média, 8 anos antes que a população branca e 13 anos antes que a população amarela. Ou seja: a conquista de ter mais anos de vida não se dá de forma equitativa entre os diferentes grupos sociais.
Nessa perspectiva do envelhecimento saudável, como deve ser a organização do cuidado no sistema de saúde?
Não é possível garantir envelhecimento saudável sem estado de bem-estar, sem políticas de proteção social, sem um sistema de saúde universal, público, gratuito e de qualidade. É uma bola de neve: para a população idosa, perder a sua capacidade funcional significa perder a sua saúde e isso leva, diretamente, à dependência de toda uma infraestrutura – a qual nem todos têm acesso. Por isso, o fortalecimento do SUS e da Atenção Básica é o caminho para o futuro que desejamos, em que todos têm acesso a formas de envelhecer com saúde. Para isso, o sistema de saúde deve priorizar a Atenção Primária à Saúde e ter uma Estratégia Saúde da Família forte. Deve trabalhar com o conceito de capacidade funcional, deve ter um olhar atento para os idosos e enxergar as desigualdades, a questão de gênero. Outro objetivo importante é evitar as doenças crônicas e, se houver doença crônica, melhorar a qualidade de vida. E isso só se consegue com organização social e políticas de proteção social. A Atenção Primária à Saúde é fundamental para isso também.
A Estratégia Saúde da Família tem impacto direto sobre a melhora da qualidade de vida da população idosa. Onde há boa cobertura, onde há bons programas de Saúde da Família, as chances de envelhecer com saúde são maiores. E isso vale não apenas para a pessoa idosa, mas também para seus familiares, para as pessoas que estão ao redor. A pandemia de Covid-19 nos mostrou, na prática, a necessidade de uma Atenção Primária à Saúde forte. Seu enfoque comunitário, os serviços de cuidado, a atenção domiciliar: tudo isso é fundamental para o enfrentamento de doenças transmissíveis e não transmissíveis. Nós vimos, na pandemia, que em lugares com bom acesso à Atenção Primária, idosos que estavam sozinhos em casa tinham o telefone do serviço de saúde, do agente comunitário, tinham para quem ligar e receber orientações sobre prevenção, com quem conversar e assim diminuir sua ansiedade, sua tristeza. O estado de ânimo da população também é fundamental. A solidão não é classificada como doença crônica nem como doença não transmissível. Mas se entendermos o conceito de saúde como capacidade funcional, o estado de bem-estar torna-se a chave para a saúde, e isso inclui a tristeza, o estado de humor.
Nos próximos 20 anos, quais as tendências para o envelhecimento no Brasil?
O direito à vida é o que melhor ilustra o desafio do envelhecimento: viver a vida, a vida com saúde. Por isso, o envelhecimento saudável requer um pacto social, um compromisso coletivo com a defesa e o fortalecimento da Estratégia Saúde da Família e do SUS. Para viver mais e melhor são necessárias tecnologias de saúde, condições sanitárias adequadas e, principalmente, um sistema de proteção social universal, capaz de cuidar das pessoas ao longo de toda a vida, para que envelheçam bem. Nessa perspectiva, o desafio para o Brasil é enorme. A tendência, infelizmente, é que o envelhecimento chegue cada vez mais cedo para os brasileiros, e com menos qualidade, devido ao desmonte dos sistemas de saúde e proteção social, em decorrência do avanço do neoliberalismo.
O modelo neoliberal que vivemos no século 21 diminui as chances de um envelhecimento saudável. As pessoas precisam ter dois, três empregos, cuidar de familiares idosos, convivem com a insegurança financeira: tudo isso ameaça o envelhecimento saudável. Políticas neoliberais, como o teto de gastos para a Saúde ou a reforma previdenciária, nos moldes do que aconteceu no Brasil, têm efeitos dramáticos sobre a qualidade de vida da população, sobre a possibilidade de exercer o direito à saúde e ao envelhecimento saudável. O que é certo é que, se continuarmos o retrocesso que estamos vivendo desde 2016, vamos perder qualquer possibilidade de esperança.
Bel Levy
Saúde Amanhã
22/03/2022