Valorizar os espaços de negociação regional e criar novos mecanismos de financiamento que privilegiem as regiões do país são algumas ações apontadas pela pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Luciana Dias, para que se possa avançar na organização e coordenação do sistema público de saúde no Brasil. Na primeira etapa do projeto Brasil Saúde Amanhã, ela analisou aspectos do arranjo federativo brasileiro e sua relação com o processo de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). Autora do artigo “A Coordenação Federativa do Sistema Público de Saúde no Brasil”, que integra o terceiro volume do livro “Saúde no Brasil em 2030: Diretrizes para a Prospecção Estratégica do Sistema de Saúde Brasileiro”, nesta entrevista Luciana Dias aponta também que o planejamento para aprimorar o SUS deve incluir mudanças nas estruturas dos órgãos gestores para fortalecer a formulação e a implementação de políticas. “Não basta criar espaços de negociação no âmbito regional. É necessário dar mais institucionalidade a esses espaços e criar capacidade dentro do Ministério da Saúde, das secretarias de Estado e das secretarias municipais de saúde para que formulem políticas com uma preocupação mais regional, territorial”, avalia.
De que forma o pacto federativo brasileiro influencia a organização do sistema de saúde?
O SUS é um sistema nacional de implantação descentralizada que se constitui por meio de uma rede de ações e serviços de saúde de natureza diversa que não se restringe aos espaços político-administrativos das esferas subnacionais de governo – estados e municípios. Por isso, a conformação da rede de ações e serviços no SUS é fortemente condicionada pelas relações de interdependência envolvendo os entes federativos.
As desigualdades nas capacidades de gestão e provisão de serviços no Brasil são imensas e, além disso, há uma diversidade de dinâmicas territoriais que trazem implicações para o setor da Saúde. Os aspectos que dizem respeito à coordenação federativa são fundamentais para a governança do SUS porque os acordos entre os entes governamentais são base para a constituição da rede de atenção à saúde no território nacional.
No capítulo publicado no livro do projeto Brasil Saúde Amanhã discutimos as relações que existem entre o arranjo federativo brasileiro – em suas dimensões política, administrativa e fiscal – e a política de Saúde. Este é um olhar não muito usual, que analisa como aspectos do sistema político do Estado brasileiro repercute na Saúde. Há trabalhos que analisam como se dão as dinâmicas de relações intergovernamentais na política de saúde, mas que não constroem um diálogo com a forma como o Estado brasileiro se organiza. Enfatizamos alguns aspectos da origem da federação brasileira e do desenho do pacto federativo pós-constituição de 1988.
Que aspectos você destaca sobre a coordenação federativa do sistema de saúde hoje?
Desenvolvemos espaços de negociação intergovernamentais que influenciam a formulação e implementação de políticas de saúde e instrumentos que permitem a formalização de acordos entre os entes. No âmbito dos estados há as Comissões Intergestores Bipartite (CIB), que têm representação do Estado e dos municípios. No âmbito nacional existe a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), com representação das três esferas de governo e hoje temos ainda as Comissões Intergestores Regionais. Esses espaços são importantes porque a maior parte dos entes federativos não tem condições de, autonomamente, prestar todos os serviços que a sua população requer. Como disse, a interdependência entre os entes é constitutiva do próprio SUS.
Hoje há o Contrato Organizativo de Ação Pública (Coap), que é uma tentativa de formalizar os acordos para a prestação de serviços no SUS no espaço regional. O Coap deve refletir o processo de planejamento e negociação nas Comissões Intergestores Regionais (CIR).
A política de saúde, por meio de regulamentação específica, também estabeleceu caminhos próprios para a repartição de competências e funções do Estado, tais como regras e incentivos que possibilitaram sua adaptação em nível estadual, e impuseram ritmos e situações diferenciadas ao processo de descentralização do SUS. Porém, não foram revistos os espaços e mecanismos institucionais no âmbito mais geral da federação para gerar as condições políticas e econômicas necessárias à coordenação federativa.
Talvez o avanço tenha sido maior no setor específico da Saúde do que no debate mais geral que envolve as questões estruturais do pacto federativo no Brasil. Nesse sentido, chama atenção que a Lei Complementar para fixação das normas para cooperação entre os entes não tenha entrado na agenda de discussões dos fóruns Legislativos em âmbito nacional, nem tenha sido objeto de votação do Senado, Câmara de representação dos estados por excelência e que deveria ter como foco as questões de interesse federativo. Houve avanços do ponto de vista da legislação dos consórcios, mas não um debate que envolvesse a regulação mais geral do pacto
Como outros setores podem impactar a coordenação federativa do SUS?
Todos os aspectos que dizem respeito às condições políticas, materiais e financeiras dos entes subnacionais no Brasil (municípios e Estados) influenciam a coordenação federativa do SUS. Questões que dizem respeito ao federalismo fiscal propriamente dito também têm impacto, como é o caso das regras que definem as competências de arrecadação de tributos e distribuição desses recursos. No âmbito do SUS, foram desenvolvidos uma série de mecanismos de transferência específica de recursos, mas existem outros dispositivos que impactam no financiamento da Saúde. É o caso, por exemplo, do Fundo de Participação dos Municípios, fonte principal de receita tributária para a imensa maioria dos municípios brasileiros e que gera recursos que são destinados ao financiamento da saúde.
A discussão da reforma tributária no que tange ao sistema de partilha fiscal impacta na saúde. Por mais que a gente evoque mudanças para esses mecanismos que fazem repartição de recursos no SUS – e eu sou adepta da visão de que eles poderiam incorporar formas de favorecer a repartição mais equitativa desses recursos – há limites para isso. Esses limites são dados pelas regras que conformam o sistema de partilha mais geral. Por isso afirmo que nossas lutas dizem respeito a uma reforma do Estado mais ampla: elas não se esgotam no setor Saúde.
Como é possível aprimorar a organização político-territorial no âmbito do SUS neste horizonte de 2030?
É importante valorizar os espaços de negociação regional e a perspectiva territorial nas próprias organizações de negociações federativas no âmbito do SUS e nas regras que permeiam a repartição de recursos – um eixo que avançou muito pouco. Também é necessário fortalecer essa perspectiva no processo de formulação e implementação de políticas. A coordenação de políticas nesse espaço regional é uma questão muito importante quando pensamos nas perspectivas do futuro. Hoje há questões que envolvem o fortalecimento da regionalização no âmbito do SUS, mas para avançar temos que fortalecer e dar maior institucionalidade aos espaços criados no âmbito regional. Além disso, é preciso criar mudanças nas estruturas, como Ministério da Saúde e secretarias de saúde, para fortalecer o processo de planejamento e formulação de políticas. Não basta criar espaços de negociação no âmbito regional. É necessário dar mais institucionalidade a esses espaços, criar novas capacidades dentro do Ministério da Saúde, das secretarias de Estado e das secretarias municipais de saúde para que formulem políticas com uma preocupação mais regional, territorial.
Também é preciso avançar na questão dos recursos financeiros. Hoje o conjunto de mecanismos de transferência de recursos privilegia as relações entre o Ministério da Saúde e os municípios. Os Estados participam desse financiamento diretamente com o custeio de serviços que eles mesmos oferecem e também criando formas de transferência específicas, mas não há, ainda, fundos regionais que possam ser utilizados pelos conjuntos dos municípios ou formas de transferências de recursos que privilegiem os acordos feitos no âmbito das regiões. Estes mecanismos não privilegiam a organização dos serviços nesses espaços na medida em que os recursos vão para os municípios muitas vezes ficam submetidos a acordos posteriores. Isso é algo passível de avanços a partir de um planejamento de longo prazo, para que tenhamos um cenário otimista e plausível, como foi proposto pelo projeto.
Já há algum desdobramento a partir desta pesquisa inicial?
Nesta segunda etapa do projeto Brasil Saúde Amanhã tenho contribuído pensando quais estudos seriam interessantes para apoiar a vertente da organização da atenção à saúde. Avaliamos que seria importante avançar nos levantamentos de capacidade de oferta e dos fluxos com a perspectiva regional, o que já está sendo feito. O objetivo é trazer subsídios para um planejamento no nível do Ministério da Saúde que valorize o aspecto territorial, regional. Este é um desdobramento das discussões que permeiam toda a área temática de organização da atenção à saúde.
Marina Schneider, Equipe Saúde Amanhã, 22/12/2014