Mito da responsabilidade fiscal: uma ameaça à universalidade do SUS

“O apego cego à responsabilidade fiscal é, na verdade, uma enorme irresponsabilidade econômica”, sentencia Daniel Negreiros Conceição, doutorando em Economia e Ciências Sociais na Universidade do Missouri, Kansas, Estados Unidos, e coordenador do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O especialista vê cada vez mais distante o cenário em que o mérito econômico prevaleça sobre o impacto fiscal nas decisões dos governos sobre gastos públicos e arrecadação – recomendação expressa no Texto para Discussão “Finanças funcionais e as possibilidades econômicas para o Brasil em um horizonte de 20 anos”, que assina junto ao pesquisador Bruno Negreiros Conceição. “Essa questão é absolutamente central para viabilizar as políticas na área da Saúde, na redução de desigualdades e em todas as iniciativas governamentais que se operacionalizam por meio de gastos públicos”, defende.

Como é possível realizar estudos prospectivos, de forma a antever estrategicamente o futuro? Quais os desafios desta abordagem para a Economia e a Saúde?

Infelizmente, o cenário mais otimista descrito no nosso texto é cada vez menos provável. Como hoje ocorre uma disputa absolutamente destrutiva e imprevisível no âmbito político, fica muito difícilfazer uma análise e traçar cenários para os próximos 20 anos, já que não conhecemos as consequências que o momento atual pode trazer. Se muitas instituições forem modificadas por conta de uma postura restritiva em relação à capacidade de o Estado realizar intervenções positivas na economia, projetos que consideramos importantes, como a oferta de saúde universal e de educação gratuita e de qualidade, serão inviabilizados. O esforço em realizar estudos prospectivos é absolutamente fundamental mesmo quando não nos ajuda a desenhar cenários futuros muito precisos. O momento, hoje, é de incerteza aguda. Ainda assim, a reflexão nos obriga a identificar problemas e elementos que impedem a produção de resultados desejáveis e a propor soluções, abrindo caminho para que possamos pressionar agentes na direção das escolhas mais funcionais.

Em uma perspectiva otimista para os próximos 20 anos, o Texto para Discussão sobre finanças funcionais aponta para um cenário em que a gestão macroeconômica não seja mais constrangida pelo compromisso cego com a responsabilidade fiscal no âmbito federal. No entanto, hoje, vemos um movimento contrário.

As iniciativas sociais acabam constrangidas por essa visão infeliz e incorreta de como a economia funciona, que está se institucionalizando na forma de leis e sensos comuns de maneira praticamente irreversível. O apego cego à responsabilidade fiscal é, na verdade, uma enorme irresponsabilidade econômica. Deixamos de ser capazes de construir hospitais, de realizar investimentos em novas tecnologias, de desenvolver conhecimento em certas áreas, simplesmente porque acreditamos falsamente que falta ao Estado dinheiro para realizar os seus gastos. Acredita-se que o governo central precise arrecadar recursos financeiros primeiro, para depois fazer investimentos, como se fosse uma dona de casa ou uma empresa.

Do ponto de vista lógico, entretanto, isso é absolutamente absurdo. A moeda que nós usamos, o real, é uma dívida pública. Ela precisa sair do Estado para que depois retorne a ele, sob a forma de impostos. Reconhecer essa lógica significa aceitar que o governo pode realizar gastos independentemente do resultado financeiro que ele obteve no período anterior, porque cabe a ele a emissão da moeda. O governo gasta criando moeda, assim como destrói a moeda quando cobra impostos. Não há para o governo qualquer restrição financeira como a que enfrentam os demais participantes da economia, exceto em razão de regras desnecessariamente restritivas. Em vez de perseguir a redução da dívida pública, faria sentido organizar o investimento público de modo que o resultado econômico do gasto fosse o melhor possível. As avaliações sobre o mérito das decisões fiscais do governo central tocariam pontos como os seus prováveis impactos inflacionários, distributivos e sobre o desemprego, e não o resultado sobre o balanço patrimonial do Estado.

Como essa diretriz se traduziria em políticas econômicas, em curto, médio e longo prazo?

Essa questão é absolutamente central para viabilizar as políticas na área da Saúde, na redução de desigualdades e em todas as iniciativas governamentais que se operacionalizam por meio de decisões fiscais do governo central. Se essa visão restritiva fosse abandonada, o governo poderia realizar gastos enquanto as condições materiais assim o permitissem. Ou seja, o limite para fazer investimentos na Saúde nada teria a ver com a existência de recursos financeiros do governo – uma vez que eles podem ser sempre criados -, mas com questões como: será que temos o cimento necessário para construir um hospital, mão de obra suficiente para desempenhar os trabalhos demandados, médicos para o atendimento na nova unidade? Da mesma forma que é uma bobagem que o Estado deixe de realizar gastos potencialmente benéficos por acreditar que não há dinheiro suficiente, é perigoso que ele não respeite limites materiais. Não adianta tentar comprar o que não existe, já que o resultado disso é a inflação de demanda. Apenas mais dinheiro não aumenta a capacidade de atendimento a pacientes. Se estão faltando médicos, precisamos nos preocupar em formar mais profissionais ou trazê-los de fora. E isso também exige gastos.

Entre os economistas esse debate já deveria ter sido superado, pelo menos desde 1936, com a publicação da Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de John Maynard Keynes. Hoje, vivemos uma crise econômica em que os capitalistas não enxergam mais oportunidade de vender o que eles têm para produzir. Então, a resposta é reduzir a produção, demitir trabalhadores, diminuir a compra de insumos, o que gera uma espiral recessiva. Dentro de um sistema sem intervenção, os detentores dos meios de produção gastam dinheiro apenas quando veem oportunidade de ganhar dinheiro com o investimento produtivo. A solução para a falta de compradores é que exista outro agente econômico que complemente o gasto agregado. Este papel seria do Estado que, na proposta de Keynes, deveria compensar a desaceleração econômica aumentando o seu próprio gasto, devolvendo assim o motivo para que os capitalistas voltem a produzir. Mas, para isso, é preciso entender que o governo não enfrenta restrições financeiras para gastar. Só percebemos isso a partir da compreensão de que a moeda é uma dívida pública, em vez de um ativo escasso do governo.

Considerando a perspectiva otimista proposta em seu estudo, o que muda diante da atual conjuntura do país?

Quando fizemos o estudo, imaginávamos que ainda teríamos espaço para implementar uma proposta mais funcional no Brasil. No entanto, o cenário atual é muito preocupante. Assusta-me muito a discussão da privatização de certos ativos públicos como forma de obter recursos para reduzir a dívida pública. Além disso, os cortes de investimentos são absolutamente assustadores e as propostas de enxugamento dos gastos públicos possivelmente inviabilizarão o projeto de saúde universal que tantos de nós consideramos indispensável a uma sociedade minimamente civilizada. Em outras palavras: faltarão recursos para a realização do mínimo em relação à universalidade que esperava-se garantir à sociedade brasileira.

Por isso, vejo as soluções baseadas em parcerias com o setor privado para oferecer serviços públicos como algo desnecessário e potencialmente destrutivo do ponto de vista da sociedade que gostaríamos de construir. O único objetivo de quem elabora uma política de saúde deveria ser promover a boa saúde da população. No momento em que as preocupações se voltarem para resultados financeiros, poderemos ser obrigados a abrir mão do que realmente importa. De um lado, estaria a eficácia do que propõe a política de saúde, que é promover atendimentos de qualidade para a maior parte da população. De outro, haveria a preocupação com reduzir custos e maximizar receitas. Os objetivos podem se tornar concorrentes. O Sistema Único de Saúde (SUS) já exigia um aumento do seu financiamento antes mesmo da adoção do conservadorismo fiscal pelo governo brasileiro. Qualquer iniciativa no sentido oposto impactará o sistema de forma muito negativa. Possivelmente, até inviabilizará a proposta constitucional de oferecer saúde universal e de qualidade para a população brasileira. Não haverá dinheiro para a nossa saúde e a consequência será o sucateamento do nosso sistema único.

Renata Leite
Saúde Amanhã
2o/06/2016